img { max-width: 100%; height: auto; width: auto\9; /* ie8 */ }

domingo, 16 de setembro de 2018

AMOR POR ANEXINS E OUTROS CONTOS (04).

Não sei exatamente como me definir, só sei que não sou uma pessoa boa, até que eu tento, procuro ser, mas no fundo no fundo eu me engano. Não fui bom filho, não fui bom pai, não fui bom irmão e não sou bom marido e nem um bom amigo. Sim, eu cumpro as minhas responsabilidades, luto para não deixar nada faltar em casa, pagar minhas dívidas e tento tanto quando possível ser educado e atencioso com todos que tem para comigo uma atitude de respeito e carinho, no entanto eu sei que isto não me torna uma pessoa boa. Eu tenho minha própria definição do que é ser bom e não vou traduzir aqui, não importa e dentro da minha definição, eu não me enquadro. Talvez por isto os bons moços, os bem sucedidos nunca me interessaram (meus irmãos não contam, meu amor por eles fala mais alto, eles sim são pessoas boas, tanto que me ajudam até hoje).
Sempre me senti menos desconfortável ao lado dos perdedores, dos refugos, não exatamente vítimas, mas aquelas pessoas que debaixo da casca de normal é um ente excluído. Vejam bem, não falo aqui de mendigos,  aleijados, negros ou homossexuais, estas coisas não me importam, não presto atenção nisto, gente é gente, não importa opção, cor ou deficiência, eu me refiro àqueles que não se enquadram no sistema cotidiano de vida, falo daqueles que nunca são convidados para as festas e fotos.
Tenho um profundo desprezo por drogados, bêbados, pedófilos, ladrões, valentões, assassinos e toda a sorte de filhos da puta. Eu conheci alguns e por força da circunstâncias tive de conviver por algum tempo mas só de ouvi-los falar já me embrulhava o estômago. Os altivos, os arrogantes, engravatados, que se orgulham do seu dinheiro e título de doutor eu sempre quis distância. Boa parte da minha adolescência eu vivia cercado de tipos assim, os meninos mimados, gordinhos filhos da vovó. Adoravam exibir seus brinquedos caros, suas roupas de marca, suas viagens ao exterior, mas ao levar um escorregão e esfolar o joelho choravam aos berros como se a perninha estivesse sendo amputada.

Hoje eu me lembrei do Jerry. Em 1978 meu primeiro ano do segundo grau foi um dos períodos mais estranhos que eu tive na vida. Antes éramos aquele grupo de três ou quatro que não fazia parte dos bem sucedidos e sonhávamos com nosso futuro brilhante ao lado das meninas que cada um estava a fim, e elas, claro, nem sabiam que nós existíamos mas nós nos enganávamos que éramos amados por elas. Já no segundo grau era diferente, na idade de 16, 17 anos, a inocência nos abandonava, já dava pra discernir mais ou menos como eram de fato aqueles que nos circunvizinhavam e noventa e nove por cento me causavam repúdio. Foi o primeiro ano em que estudei em um colégio pago, era o Santa Rosa de Brasília e era uma empresa de freiras. Foi um inferno na minha vida (não pelas freiras, que fique bem claro). Eu vivia com vergonha pois as mensalidades estavam sempre atrasadas, meu pai em sua dureza habitual não conseguia dar conta de atualizar, mas eu sempre era chamado na diretoria para levar carta de cobrança pra casa.
Em algum post passado eu comentei que naqueles tempos o segundo grau no Brasil era "profissionalizante", se me recordo bem haviam três modalidades a escolher: enfermagem (parece brincadeira), contabilidade (era isso mesmo?) e desporto. Como eu gostava de artes marciais (embora fosse bunda mole), levantar pesos e correr, optei por este último. Todos os esportes ensinados e praticados eram os de equipe: futebol, voleibol, basquete e handebol. Eu odiava a todos. Nunca me dei bem em grupo. Eu e a bola sempre fomos inimigos um do outro. Talvez eu tivesse algum problema de coordenação motora, sei lá, mas eu não conseguia dominar aquele objeto esférico em nenhum dos esportes onde ela era o foco. Eu era muito ruim e não sabia trabalhar em equipe por mais que eu tentasse. Sempre era um dos últimos a ser escolhido para os times e rezava para que a maldita bola não viesse até mim, quando acontecia eu procurava me livrar dela o mais rápido que podia, jamais conseguiria uma finalização então não me metia a besta. Meu time quase sempre perdia, embora ninguém me acusasse - afinal eu era um zero para eles - eu me sentia culpado por não contribuir efetivamente. Raramente haviam provas de circuíto ou corrida de longa distância, sempre que íamos para a quadra ela para pegar na bola e para mim isto era um tormento. Havia uma piscina lá mas nunca se falou em natação, não sei porque. Outra tortura era aprender as regras daquilo tudo, afinal o profissionalizante era um antepasso para a faculdade de Educação Física. Dividiam, claro, os times em masculinos e femininos.

Eu só tinha dois amigos, bem, amigos é modo de falar, eles colaram em mim, meio que nos atraímos uns aos outros, dois perdedores e imbecis como eu, um deles que quase não falava com ninguém, um tipo meio índio que apesar da baixa estatura tinha um físico privilegiado e jogava futebol muito bem, podia ser um dos garotões populares se não fosse meio doido da cabeça. Num dia conversava normal, no outro parecia zangado e amuado como se algum de nós tivesse feito mal a ele. Era burro demais pra estudar e vivia colando nas provas, ele conseguia escrever capítulos inteiros dos livros em minúsculos papeis que ele colocava entre os dedos. Sempre tirava notas boas (menos em matemática) e nunca sabia nada de coisa alguma. Eu já citei este cara em posts passados. O outro sujeito definitivamente era um fodido na vida, baixinho, magrelo, óculos de grau, falava muito mas nada que fosse relevante. Todos nós usávamos moletons esportivos com tênis e ele vinha com sapatos vulcabras. Era zoado até pelos moleques do primário. Eu, se possível fosse, ficaria invisível na sala. Sentávamos nas últimas carteiras. Éramos os desprezados. Lógico, haviam outros Zés Manés, mas existem muitos tipos de medíocres, nem todos combinam entre si.

Certo dia surgiu o Jerry. Bom aspecto, falante, parecia inteligente e com boa educação, logo se tornou a atração da sala, as meninas sentavam perto dele e logo se enturmou com o "bocão", "camelo", "minotauro", Marco e Paulo, esses os fodões do primeiro ano (não recordo dos demais). Tinham duas meninas que se destacavam na sala, a Márcia e a Chilena, obviamente a chamavam assim por seu país de origem, era magra e tinha um lindo rosto e cabelos negros longos e lustrosos, ela nunca sequer olhou na minha cara. Márcia era mais baixinha com quadris largos, cabelos castanhos bem claros na altura dos ombros. Ela, por motivo que desconheço, gostava de conversar comigo. Sempre que ela vinha falar, eu discretamente colocava uma das mãos à frente do nariz para não sentir seu forte hálito matinal.
Certa manhã ela bocejava muito e exibia um aspecto de fadiga.
- Tudo bem, Márcia?
- Que nada, não consegui dormir.
- Porque?
- Passei a noite cagando! Comi um sarapatel e não caiu bem, fiquei a madrugada toda mijando pela bunda!

O Jerry se ufanava de ser bom nos esportes e tudo mais, no jogo de futebol ele vinha todo paramentado, com uniforme de seu time, joelheiras, caneleiras e chuteira oficial. Nunca acertava um drible, um passe, muito menos um gol. Eu lembro bem que ao tentar uma jogada de craque ele conseguiu dar uma bolada na própria cara, até hoje rio sozinho rememorando o fato. Pouco a pouco as pessoas foram percebendo a farsa do Jerry. Suas bravatas e mentiras. Em suma, ele chegou todo cheio de banca mas não passava de um bosta. Não demorou para o desprezarem. Não era mal aluno, mas em pouco tempo ele migrou das primeiras carteiras para as últimas onde ficávamos. Me dava bem com ele. Com o mínimo de conversa não precisei ser psicólogo para perceber que apesar de ser classe média aquele garoto era carente. Filho único, não tinha atenção dos pais. Não era a minha situação mas eu me identificava com ele, muito mais do que com o Paulo ou o Marco, caras que falavam comigo mas eram de uma outra linhagem, dos populares e bem quistos pela maioria. Jovens que tinham um futuro meio planejado. Aposto que viraram funcionários públicos ou bancários. Eu não jogava neste time, no time dos que iam às reuniões de família ou confraternizações de fim de ano da firma.

No final daquele ano minha vida iria piorar muito. Eu iria embora de casa para me aventurar no Rio de Janeiro atrás da primeira namorada. Mas esta história eu já contei.


A arte de hoje é mais uma do livro de contos do Artur Azevedo.

Boa noite e boa semana a todos!

11 comentários:

  1. Ah, lembrei que foi na 5ª série que tive minha primeira paixão recolhida por nunca ter me declarado, chamada Silvana. Eu era tímido demais e tonto (tinha 12 anos!), mas ouvia dela que gostava de mim. Me sentia um Doug Funny gamado na Patty Maionese, antes que o desenho existisse. Quando completei 13, até ganhei um beijo dela (no rosto!)... mas durante uma corrida na aula de Educação Física, levei uma rasteira e quase quebrei um braço. Só ganhei uma contusão.
    Na mesma época tinha aqueles colegas babacões que também monopolizavam a quadra e que ás vezes, implicavam principalmente comigo, dentro e fora da sala de aula.
    Pois é...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, meu caro, as memórias de nossa infância e juventude rendem boas histórias. Hoje elas parecem venturosas e até doces, mas na realidade foram amargas e só nós podemos dizer o quanto. Falam que essas situações, algumas parecendo até ritualísticas, fazem parte de um aprendizado. Para mim, sinceramente, elas não me prepararam para nada, hoje, já velho, vejo o quanto tudo aquilo só me fez mal e não me ingressou em uma, digamos, sociedade. Espero que você tenha tido melhor sorte.

      Excluir
  2. Vixe, também me lasquei a mais não poder, na escola. Época detestável! Mas o que importa aqui, Schloesser, é o que você não quis dizer: o que é ser uma boa pessoa? Certamente, não pode ter nada a ver com nunca ter errado. Pra mim, está mais relacionada a reconhecer erros, tentar corrigi-los, evitar repeti-los e procurar não dar novas mancadas. Fora isso, o importante é manter o carinho por todos os que sofrem e lutam para melhorar, incluindo nós mesmos. Parabéns pela ilustração!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oh, Carla, obrigado por seu comentário sempre tão positivo! Você eu sei que é uma pessoa boa. Sabe, nesses dias esses desabafos tem sido muito necessários, creia, não venho aqui em busca de piedade, é apenas descarrego do mais honesto possível. Pode parecer cretinice minha mas prefiro pensar que não sou legalzinho e tentar melhorar do que me jactar de uma bondade que estou a anos luz de um dia possuir. Mas acredite, eu faço o meu melhor, na vida e na arte. Vem mais descarregos por aí, quem sabe?

      Forte abraço, minha amiga!

      Excluir
  3. O ARTISTA RAFAEL ANDERSON DEIXOU ESTA MENSAGEM EM MINHA PÁGINA NO FACEBOOK A RESPEITO DA POSTAGEM DESTA POSTAGEM. ANEXO AQUI COM MEUS MAIS SINCEROS AGRADECIMENTOS A ESTE GRANDE DESENHISTA! ABRAÇOS, MEU AMIGO!

    " Rafael Anderson Art Excelente texto, Eduardo. Engraçado perceber como alguns "estereótipos" são recorrentes na sociedade, mas tenho a impressão que vivemos numa época de "Jerrys". As pessoas, principalmente nas redes sociais, tentam sempre passar a imagem de extremamente felizes, engajadas, inteligentes, altruístas e etc. Quando na verdade criam um pastiche de uma vida idealizada por uma realidade momentânea (O mundo das hqs tá cheio de gente assim). Cara, É difícil se "enquadrar" no mundo, principalmente nessa fase da vida, lembro que as hqs e a Sci- Fi me fizeram achar o meu lugar no mundo, porém não me identifico nem um pouco com o público atual dessas mídias/gêneros. Hoje, penso que essa é uma das funções de se construir a sua própria família: Ter e criar seus iguais. Acredito ser esse um bom modo de suprir essa solidão supostamente inerente ao homem. Em relação a você ser uma boa pessoa, te digo, só o fato de você refletir sobre isso já te coloca bem à frente dos demais que não conseguem enxergar e muito menos refletir as próprias mancadas. Num mundo onde as pessoas precisam escrever virtualmente (o termo correto seria copiar e colar) que possuem divergências "morais" com quem pensa diferente, só para poder projetar em terceiros sua própria imoralidade e se autoconvencer de que é uma pessoa melhor do que realmente são, isso vale ouro . Por fim, continue publicando seus textos e desenhos, são uma das poucas coisas que valem a pena acompanhar por aqui. Forte abraço, meu amigo."

    ResponderExcluir
  4. Sempre bom ler seus textos, Eduardo. Eu escrevi mais coisas, mas apertei uma tecla e perdi tudo sem publicar...
    Grande abraço!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Poxa, Gilberto, que pena, queria ter lido o que você perdeu. Chato quando isto acontece, né? Mas obrigado por sua visita e comentário!

      Abração!

      Excluir
  5. Ser adolescente foi e ainda é tentar ser mais fodão entre os fodões. Quem está fora deste padrão é o saco de pancada dos outros. São como animais marcando território e suas presas são os adolescentes que não se enquadram neste padrão pra lá de filho da pura, pois adolescente é cruel e não tem piedade. Fase de vida complicada. Feliz para uns e um calvário para outros. Tudo passas, contudo e ficam as lembranças e as marcas para o Bem e para o Mal.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Só tem verdades no seu comentário! Endosso. Obrigado por sua visita.

      Excluir
  6. Farsas são difíceis de se manter. Cada vez mais. Há muitos Jerry (Jerries?) entre nós.

    ResponderExcluir

RESENHA DE ZÉ GATÃO - SIROCO POR CLAUDIO ELLOVITCH

 O cineasta Claudio Ellovitch, com quem tenho a honra de trabalhar atualmente (num projeto que, por culpa minha, está bastante atrasado) tem...