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quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

FELIZ 2021 (com PHOBOS E DEIMOS)


 

Queridos e queridas, FELIZ ANO NOVO! Sei que para muitos, o ano que se encerra será o ano para se esquecer, o ano da mudança, das modificações de comportamento, do controle social (justificado ou não - eu diria que não), os tempos das focinheiras e a pavimentação do caminho para uma nova ordem que chega. Pena que meu universo antropomorfo em quadrinhos seja tão pouco conhecido pois muito do que ocorre hoje eu já discorria em minhas histórias tolas desde 1992. Mas deixemos essas questões, que os eruditos discutam e cheguem às suas conclusões, a nós, aqui embaixo, só resta continuar lutando para sobreviver. Mas que a nova década que se aproxima nos tragam melhores ventos, queira Deus!

Phobos e Deimos já é uma realidade, como comprova esse modesto vídeo feito pelo editor Marcos Freitas; ainda não chegou a mim, mas já começa a ser vendido modestamente, como é natural a um artista como eu que não é popular, não conhece pessoas importantes, não puxa saco, não paga jabá e - convenhamos - não se adequa ao politicamente correto e não defende pautas esquerdistas.   

Ao longo desses 15 anos guardados, amostras de Phobos passaram pela Conrad, Barba Negra, HQM (o editor Carlos Costa quase publicou mas os outros dois sócios da editoram não curtiam o meu trabalho, então não rolou), Devir.... e quase enviei à Mino mas desisti ao ler uma entrevista com os editores. Guardei e esperei e finalmente a Atomic resolver enlouquecer e botar na praça. Vamos ver o que rola. 

https://atomiceditora.lojavirtualnuvem.com.br/produtos/phobos-e-deimos-eduardo-schloesser/

Abraços fraternos desse seu vosso desenhista!


quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O NATAL DE 2020


Este Natal está particularmente triste para mim, bem triste. Fora ele, lembro de um, lá pelos idos de 1983, onde passei na rua, no período que fui militar e estava de serviço (talvez um dia eu escreva a respeito). Mas minha melancolia na data que os homens escolheram para celebrar o nascimento de Jesus em 2020 não se dá por luto, problemas financeiros ou de saúde, os motivos são os mesmos que me aborrecem já há uns tantos anos e que vem se agravando desde 2013, 2014 mais ou menos. Quisera eu poder falar sobre, desabafar ajuda a tirar a angústia da alma, mas devo me calar e esperar que o Aniversariante do dia 25 venha com a solução, porque neste caso, só Ele pode resolver, Ele é o autor dos milagres.  

No entanto, nem tudo foi contrariedade hoje, chegou uma encomenda com três bons quadrinhos que estava esperando há um tempo e HQs é, atualmente, uma das poucas coisas que ainda me alegram.  Também finalizei mais uma página de Zé Gatão - Siroco, terminar uma arte, uma página de quadrinho, nestes dias sombrios, para mim é uma grande vitória. 

Desejo a vocês todos que me acompanham neste blog um FELIZ NATAL, que celebrem em harmonia com os seus e não se esqueçam nunca do  Aniversariante, ELE é o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim de tudo.

Abraços e até semana que vem, se DEUS quiser!

domingo, 20 de dezembro de 2020

PHOBOS E DEIMOS EM LINHA DE MONTAGEM.

 

O livro que concebi a 15 anos atrás - e que guardei por não saber onde publicar - a cada dia se torna realidade. Já está em produção e acho que mais uma ou duas semanas estará prontinho para o público interessado.


Uma coisa que não comentei em postagens anteriores é que uma editora quase publicou Phobos e Deimos, foi a saudosa HQM, do Carlos Costa (pena que ele sumiu, era um cara muito gente fina), ele disse que gostou muito do material e queria publicar, mas os dois outros sócios nem quiseram saber. Normal, quem é ligado em quadrinhos mainstream não vai mesmo curtir o meu material que é o subsolo do underground. Acho que sempre serei esse cara que as pessoas preferem fingir que não existe ou que se lembram porque alguém comenta, "ah, eu li um gibi de um personagem chamado Zé Gatão, certa vez!" Aí o especialista diz: "sim, eu conheço o autor, não o vejo a muitos anos, não sei o que ele está fazendo no momento." Ora, vocês que fielmente me acompanham aqui sabem que publiquei A VIDA E OS AMORES DE EDGAR ALLAN POE e o O BICHO QUE CHEGOU À FEIRA, álbuns que tiveram certa divulgação entre os que me conhecem, se não foi alardeado é porque preferiram empurrar para debaixo do tapete (os motivos posso supor, e, saibam, não é paranoia). Mas isto não importa, a produção segue apesar de todas as minhas angustias e percalços. Logo teremos ZÉ GATÃO - SIROCO e mais tarde ainda, ZÉ GATÃO - CORTE PROFUNDO, além de um nova graphic novel com histórias bíblicas para 2021. 

E não pretendo parar por aí, se tiver mais um pouco de vida, penso em mais uma antologia com o título provisório de Sombras do Passado e mais um álbum de Zé Gatão. Veremos. Mas são planos, por hora, de concreto temos PHOBOS e DEIMOS. Os interessados podem acessar o link:

https://atomiceditora.lojavirtualnuvem.com.br/produtos/phobos-e-deimos-eduardo-schloesser/?fbclid=IwAR3OiXA61mNCHSO0YnLEKbkAEe59iQ7DaJPU2k06YmIeEw-rQclnKUJZ4-w

Abraços a todos e até as próximas novidades, se o bom  DEUS permitir!                  

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

ADEUS, RICHARD CORBEN!

 

Fiz 58 anos no último dia 5 deste mês. Três dias antes o grande Richard Corben se despedia desta vida. Mais um mestre (e porque não dizer amigo?) que se vai. Um parceiro de jornada não significa exatamente alguém com quem se tenha contato físico, Rich jamais soube que influenciou um anão aqui no Brasil na forma de criar seus quadrinhos, no entanto poderíamos romantizar dizendo que nos comunicamos através da arte, ele criava e eu degustava e estudava suas soluções para compor uma narrativa (entre outras coisas).                                                                                                                                                     

Bernie Wrightson partiu, Frank Frazetta idem. Agora Corben. Restam poucos que realmente respeito como os grandes em suas áreas. O que sobra para mim? Arnold Schwarzenegger, David Gilmour, Mark Knopfler, Tanino Liberatore e Olavo de Carvalho? Acho que é isso. E todos eles já bem velhinhos.  Este pensamento faz com que eu me sinta um pouco mais só. No entanto, é a vida

Bem, um texto sobre Rich se faz necessário, já postei algo sobre ele aqui:

 https://eduardoschloesser.blogspot.com/2010/09/minhas-influencias-richard-corben.html?fbclid=IwAR1b7Sl1OQSySRej1DGdiQrQy5joVmCVb5-8vVRA2Sh_nof25ylzUt7uTco

Então vou abordar algo diferente, vou falar dos quadrinhos dele e minha eterna falta de grana.

Rich sempre foi mal publicado no Brasil.  A primeira vez que me deparei com sua obra foi na revista Kripta da RGE, era um roteiro do Bruce Jones que versava sobre viagem no tempo. Fiquei gamado na hora, um preto, branco e cinza como aquele era totalmente inédito para mim. Como desconhecia a técnica usada eu tentei reproduzir com meus lápis 6B. Nunca consegui chegar aos pés (e isso até hoje), felizmente. Eu digo felizmente porque se tivesse logrado fazer como ele eu seria uma imitação barata, ele foi a maior influência mas através dele e dos outros já citados no blog eu encontrei minha própria maneira de criar minhas artes. 

A revista Kripta era acessível, eu tinha todas as edições que me interessavam (não era colecionador na época, me tornei mais tarde) mas só descobri o trabalho a cores de Corben na revista Heavy Metal com uma história do Sinbad. Era serializada e estas edições eu só podia babar em cima mas jamais comprar pois eram extremamente caras.

Den, criação maior de Rich também só pude apreciar folheando a Heavy Metal na livraria Sodiler.    Até que em 1989, meu old pal Luca, me trouxe da Inglaterra (país onde morou por um tempo) um álbum com a primeira saga do personagem. Foi um sonho realizado e sou grato ao velho irmão até hoje. 

Já em São Paulo, frequentando a Livraria Muito Prazer, uma comic shop (termo ainda não criado na época) eu me martirizava com os inúmeros títulos nas prateleiras e totalmente fora do meu alcance.

Me lembro que ao visitar a bienal de quadrinhos no Sesc Pompeia no início dos anos 90, no estande da Devir me deparei com o título Mundo Mutante. Pra mim, a melhor cor de Corben em um trabalho. Como sempre tão caro que só pude ficar na vontade.

Sobre Bloodstar já comentei em uma postagem por ocasião do falecimento do meu pai.

Com o tempo, sempre que os recursos permitiam eu agrega novos títulos à minha coleção de Corben, alguns foram presenteados pelos meus irmãos e por amigos queridos como Mira Werner. Muita coisa impressa ainda me falta, algumas consegui baixar da internet com boa qualidade, outras ainda são muito custosas para meus bolsos, como as reimpressões de luxo de Mutant World e Sons Of The Mutant World, os dois volumes do catálogo da exposição de Angouleme e Murky World, lançadas lá fora via financiamento coletivo.

Como podem notar, Richard Corben não apenas me influenciou artisticamente, ele esteve presente entre frustrações e alegrias.

É isso.

Vá em paz, Richard, até algum dia!

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

INFERNO VERDE - EPÍLOGO (Um conto escrito por Luca Fiuza).

 Um dia escaldante e radioso se iniciou. E a seu tempo, a noite novamente se anunciou. Era a véspera do sacrifício. Sob a orientação dos sacerdotes, Zé Gatão trocou seus trajes locais por uma veste cerimonial. Foi alimentado com os mais puros e delicados manjares jamais antes provados. Néctares de frutas e flores exóticas a adoçar-lhe a língua e atiçar sentidos e percepções desconhecidas! Um leve torpor a tomar-lhe corpo! A esta sonolência foi lentamente se entregando, mergulhando em uma escuridão mais densa do que a da própria noite que descia sobre a selva imutável! Sentiu que se achava na Casa Escura, onde Ela habita, nas dependências do Grande e sacro Templo! A grande deusa, Serpente Emplumada das antigas lendas do povo Jaguar.

    Ouviu-lhe a voz a entoar um cântico aproximando-se, acompanhada por uma luminosidade suave, semelhante aquela que há no quarto de crianças pequenas para que não fiquem nas trevas! O tom de voz da deusa serpente era adocicado, ainda assim, sentiu o felino acinzentado um arrepio! Um frio n’alma! Uma sensação de perigo que não conseguia definir! Lá estava a fantástica criatura! Como a flutuar sob a luz de tom azulado ali reinante!

– Ó felino de fora! É chegada a hora do ritual derradeiro! A definitiva purgação de teu espírito para diante de mim apresentar-te na pedra do sacrifício amanhã à noite, estando a Lua alta no céu! Ouça tu! Vais agora enfrentar-me! Vais lutar num nível além do físico e do mero espiritual! Se perderes, só teu corpo carnal sobreviverá! Mas não serás mais do que uma casca vazia! Tudo o que és e poderias ter sido perecerá!

    Zé Gatão concentrou-se profundamente, em silêncio! Nunca em sua existência fugira de um combate se não houvesse outra maneira! Se tinha que cair, cairia dando socos e pontapés como sempre tinha sido desde que aprendera a se defender e sobreviver às adversidades deste mundo!

A     enorme serpente, em um movimento coleante, avançou! Fauces escancaradas! Zé Gatão saltou, evitando o violento ataque! Não houve esforço! Não sentiu dor! Era como se o felino fosse um dínamo de energia! Movia-se de maneira rápida, precisa, sem as limitações do corpo físico e assim, igualmente o era para sua adversária! Combatiam em um plano existencial muito além da compreensão, mas mesmo ali espreitava a própria Morte! Presente! Palpável! Soberana!

    Como num torvelinho monstruoso, a cobra circulou em torno do grande gato! A cada momento mais próxima, num enleio fatal! Logo o felino gris se viu envolto pelos poderosos anéis do ofídio e com a velocidade do pensamento, o bote, o qual só não o colheu pela cabeça porquê suas mãos com a força de um torno agarraram o réptil, num aperto selvagem que fez os olhos arregalados de espanto, da fera quase saírem das órbitas! A língua bifurcada retorcia-se, projetando-se da goela escancarada num protesto mudo! A cabeçorra a sacudir brutalmente na tentativa de libertar-se. À medida que Zé Gatão aumentava a força do estrangulamento, a cobra também exponencialmente exercia pressão sobre o corpo musculoso do felídeo! Como não estavam no mundo carnal, o sofrimento físico inexistia! Era um verdadeiro embate de titãs! Dando um forte repelão, a serpente adiantou-se, a letal peçonha rebrilhando nas pontas de suas presas ameaçadoras! Lentamente, achegando-se aqueles espantosos dentes, cada vez mais próximos do pescoço tensionado do Gatão! Quando tudo parecia perdido para o felino cinzento, este deu um tranco para frente, soltando repentinamente a serpente! Demonstrando uma coordenação de movimentos impressionante, ao mesmo tempo que a libertava, seu punho direito encaixou um soco poderoso e tão potente que arrancou os enormes dentes venenosos da serpente pela raiz! A cabeça imensa foi jogada para trás! Mas numa rápida oscilação voltou-se para o gato, sorrindo! A dentição horrorosa crescendo como que por encanto na dantesca bocarra! O gato retesou os músculos hercúleos e em uma expansão explosiva expulsou de si o disforme corpanzil da serpente aterradora! Esta investiu de frente, tentando morder! Recebeu uma rápida sequência de murros pesados no crânio, atirando-a para trás! Zé Gatão como uma máquina trituradora, batia sem pausas, de baixo pra cima, lateralmente como se esmurrasse um saco de areia próprio para o treinamento de boxe!

    Dando um giro impossível pelas leis da física, a cobra gigante contornou pelo lado esquerdo do felino tentando atacar por trás! Em um galeio inesperado, o felino taciturno saltou, erguendo-se no ar em um movimento giratório sobre si mesmo, indo parar bem no lombo de sua atacante! Escalou-a rapidamente e desceu cascudos violentíssimos sobre aquele horripilante vértex! Como um edifício colossal, desabou o ser viperino! Mas a vitória ainda não estava consolidada! Enquanto caía, a criatura reptiliana deu um corcoveio forte, desalojando o Gatão e antes que ambos tocassem um solo de aparência diáfana a cobra surgiu por cima do gato, sendo o felino, brutalmente picado pela besta pecilotérmica! Um urro pungente estrugiu da goela do grande gato, enquanto violentas contorções o acometiam! Logo entrou em agonia quase de ordem física! Sua vista ficou turva! E quando voltou a enxergar estava em seus aposentos, na cama! Uma repousante luz violeta o cobria e uma sensação de languidez, o tornara indefeso como um filhote recém-nascido! Estava nu! Então, a voz da deusa serpente encheu-lhe os ouvidos, o coração e a mente!

– Estás purificado em sua totalidade, ó felino de outras plagas! Demonstraste força, coragem e sobretudo não te deixaste dominar pela raiva! Foste um combatente sagaz e pragmático! Não te esqueças, porém! Estavas lutando contra forças além de tua imaginação! Só não enlouqueceste por causa de minha divina benevolência para contigo! Agora descansa! Tu és privilegiado! És o primeiro e único a ter para ti mais de uma vez, a atenção de uma deusa.

    O Gatão suspirou esgotado. Não tinha como afirmar se o que passara tinha sido real ou ilusório. Sabia que grandes e velhas serpentes possuíam poderes místicos! Muitas eram pitonisas, tendo o dom da adivinhação e da clarividência. Esta era muito mais! Mas uma deusa? Aí já era forçar a barra! Contudo, para os jaguares ela o era! E isto era suficiente para o desejarem o imolar num rito de sangue! Adormeceu quase que imediatamente! Sono sem sonhos! Uma quase morte! Mas ao despertar no alvorecer de um novo dia, percebeu que o encontro com a Megera da foice tinha apenas sido adiado.

   O dia chegou com fortes chuvaradas, acompanhadas do onipresente calor abrasador que assolava as regiões de selva. O grande gato se sentia descansado, bem-disposto e faminto naquela manhã. Logo, diligentes serviçais felinas daquela curiosa raça rajada vieram trazendo o desjejum. Um canecão de chocolate sagrado, acompanhado de fruta-pão cozida, ovos mexidos de harpia e para finalizar um tipo de camarão lacustre enorme, assado na brasa. Segundo lhe disseram, um ser descerebrado. Comeu até se fartar.

   Uma hora depois, o jovem sacerdote Quéktolpec apareceu e convidou o felino gris para um passeio nas dependências do Templo, ao qual chegaram por meio de uma passagem secreta. A mesma, os conduziu para a praça central da ciclópica edificação. Área bem arborizada, mas protegida das intemperes por um teto translúcido. Nos dias de sol, permitia a passagem da luminosidade, mas devido ao mau tempo, tochas acesas nas paredes davam ao ambiente um ar penumbroso e um pouco assustador.

– O dia é chegado, ó felino de fora…! Como te sentes?

– Não posso dizer que estou pulando de felicidade, Quéktolpec.

– És corajoso! Acompanhei espiritualmente com meus irmãos de culto, o teu embate com a própria deusa! De fato, és o Enviado, pois até então o “Combate Purificador” lícito o é, somente para os Escolhidos dos deuses e tu o és!

– Se você diz…!

– Não acreditas?

– E isto realmente importa?

– Não! Que dúvida não haja! Foste escolhido pela própria deusa! Nem aos sacerdotes ela dedica tanta atenção quanto a ti o fez! Teu Destino estava escrito nas estrelas! Não foi o acaso que aqui te trouxe! Leste os sacros códices! As palavras ali registradas a fogo vêm do Mundo Espiritual ao carnal como linhas norteadoras de Tudo o que Existe!

   O felino meneou a cabeça, numa concordância muda! Não adiantava discutir diferentes visões de mundo com aquele jovem! Aliás, com nenhum habitante daquela fantástica urbe! Tinham suas próprias crenças! Profundamente enraizadas ao longo de séculos! Talvez milênios! O Gatão pensou: como seria o dia do inevitável confronto entre aquela Sociedade antiga e o chamado mundo civilizado? A seu ver, nada de bom resultaria! Fatalmente, aquele modo de vida seria destruído em nome da ganância pelas fabulosas riquezas encontradas, da pseudociência que a estudaria e sobretudo, das “Luzes Civilizatórias”, apresentadas como redentoras para um “povo selvagem e ignaro!” Mais uma das tantas e lamentáveis ironias, a permear o tragicômico Teatro da Vida!

   Karoll despertou assustada! Afinal tinha chegado o fatídico dia! Naquela noite, seu amigo seria sacrificado! Se ela pudesse, trocaria de lugar com ele! Por mais que fosse medrosa e amasse a própria vida, não hesitaria! Não pode deixar de pensar que o Gatão se irritaria bastante, caso ouvisse tal disparate! Era corajoso, galante e apesar de casmurro, a ave encarnada sabia que ele gostava dela e nunca permitiria que tomasse o seu lugar! Mesmo sabendo que após a morte dele, sua existência seria segura e feliz no Reino Jaguar, não conseguia conformar-se. Grossas lágrimas escorriam por suas faces, o bico, normalmente sorridente, distorcido pelos soluços silenciosos! Ouviu as vozes do casal de filhotes reais a chamá-la! Recompôs-se a custo! Enxugou os olhos e tentou sorrir! Não queria toldar com sua tristeza a felicidade pueril das crianças felinas

    A cidade santuário estava agitada! Não se falava em outra coisa, a não ser no grande sacrifício ritual há muito esperado! Quando o coração ainda quente e pulsante do Enviado fosse arrancado de seu peito, o Reino Jaguar entraria numa nova era de prosperidade eterna! A terrível desgraça profetizada por antigos Adivinhos, não se abateria sobre o Império! Não haveria mais dor, sofrimento e os deuses caminhariam benevolentes entre os mortais, como tinha sido na aurora dos tempos! Não haveria mais a presença da Morte e não mais rituais de sangue! Este precioso líquido vital seria derramado pela vez derradeira! Ao amanhecer, a própria Benapatóchi se sentaria no alto do templo sob o esplendor do sol nascente, para guiar os povos felinos de toda a selva! Daí em diante, o Império Jaguar cresceria além das matas, absorvendo todos as nações! Inclusive as das terras do Enviado cinzento, cujo hausto final esta noite seria o início de uma vida de hedonismo perene, como doce néctar caído dos céus!

    Zé Gatão se achava recolhido em um imenso aposento do Templo Sagrado, onde estava ocupado em fazer exercícios e movimentos das lutas marciais que conhecia e treinara por toda a sua vida. Em sequências pré-determinadas movia-se, realizando posições variadas de ataque e defesa. Espírito concentrado! Mente limpa de sentimentos conflituosos. Era espantoso como seu corpo grande, maciço tinha tanta leveza, graça e suavidade! Ao mesmo tempo, demonstrava uma enorme força, capaz de quebrar ossos e romper músculos, caso algum daqueles golpes atingisse algum oponente. Os olhos do felídeo estavam fechados, mas ele sentia o ambiente em todas as suas nuances! Ouvia os menores sons e detectava os mais tênues odores. Estava de costas para a entrada. De repente virou-se como um relâmpago e seu punho direito arremeteu à frente, parando a poucos centímetros do rosto de Quéktolpec! O Gatão abriu os olhos encarou o rosto impassível do sacerdote.

– Quase que te arrebento a cara, sacerdote!

– Muito duvido eu que o farias, ó Enviado! Tu dominas completamente teu corpo e tua mente!

– Para sua sorte, amigo!

– Falta pouco para o anoitecer, ó Consagrado! Dois guardas ficarão postados na entrada deste aposento e quando a Lua estiver alta no céu te conduzirão ao altar!

– Não para me casar! - O sacerdote não entendeu o gracejo e o Gatão se arrependeu de tê-lo feito! No fundo de sua alma, apesar de todo o preparo, estava tenso! Seria medo da morte? E se fosse? Não tinha porquê envergonhar-se! Como qualquer um queria viver! Poderia dominar Quéktolpec e talvez os dois guardas! Mas não uma cidade toda! Era preciso calma! Talvez fosse melhor aceitar! Afinal, ninguém vive para sempre!

    Os últimos lampejos do sol poente, tingiram de tons avermelhados a cidade santuário. Uma linda noite estrelada brindou a selva com a magnitude de sua beleza! Logo uma Lua cheia monumental ergueu-se lentamente no firmamento, inundando as cercanias com sua luz fantasmagórica.

    O felino cinza estava sentado na cama em posição de Lótus. Horas antes, Quéktolpec mandou que colocassem um braseiro ali, cuja fumaça perfumosa inundou o local de maneira relaxante e agradável. Neste ínterim, uma linda fêmea de jaguar envergando trajes diáfanos entrou pela porta! Parou diante do cinzento e disse num tom de voz mavioso: - Cá vim para servir-te, ó Consagrado! Dar-te-ei teu postimeiro prazer carnal como o ordenaram os deuses! Vem! Hoje serei tua e tu serás meu!

   Sem saber nem o porquê, Zé Gatão entregou-se! O que sentiram ambos e como foram os momentos seguintes e suas peculiaridades, fica até difícil de descrever! Ao fim daquele idílio erótico, a fêmea o deixou e o Gatão meio extenuado, largado no leito, não pode deixar de compará-lo à última refeição de um condenado à morte!

    Bem alto no céu, nosso satélite refulgia como prata polida! As preliminares do ritual se dirigiam para o seu clímax! A população fechada em suas residências, orava diante de seus altares, onde pequenos braseiros fumegavam essências inebriantes. No Grande Templo, só a Casa Real tinha permissão de participar pessoalmente dos ritos principais comandados pela casta sacerdotal.

   Uma nova dupla de guardas juntou-se aquela que estava postada diante da entrada do recinto, no qual o felino gris, até então habitara. O grande gato se viu cercado por uma pequena escolta de ar compenetrado. Saíram para a área externa do templo e pararam diante de um altar cerimonial. Estes mesmos guardas, manietaram o felino cinzento à pedra, de costas, braços e pernas bem abertos.

   Enquanto observava os preparativos para o macabro ritual que poria fim à sua existência, o Gatão ficou a pensar: Por que razão não reagira e se deixara levar até ali? Começou então a refletir sobre as beberagens que tomara e aos odores que aspirara! Tudo foi para torná-lo dócil, o suficiente para que não resistisse e se conformasse com sua “sina!” Mas ainda havia nele uma centelha vital que protestava e se recusava a aceitar simplesmente morrer! Que o fazia disposto a lutar! Mas era tão fraca, tão tênue…! Se sentia frágil, desamparado, sem energia! Vontade de dormir e nunca mais acordar! Libertar-se finalmente das agruras do viver e talvez, se houvesse outra Vida, reencontrar os entes amados que já se foram…! Sua mãe querida! Sua adorada Tigresa…! Lá no tão propalado Paraíso! Prometido por diversas Religiões…! Viveriam em Felicidade Eterna! Não! Não podia acabar assim! Por mais dura que fosse, a Vida lhe era muito cara! As cordas! Se conseguisse rompê-las! Mas estão tão apertadas! O Gatão voltou a cabeça e viu sobre si o Naskaar! O sacerdote sacrificial, de punhal em riste! Olhos faiscantes! Quase em transe! Pela primeira vez, Zé Gatão teve medo! O medo do desconhecido! Fruto da incerteza que permeia todo ser vivo quando se vê diante do inexorável! A lâmina do punhal ergueu-se ameaçadoramente! Porém, com um gemido surdo, o Naskaar desabou em cima de Zé Gatão e a arma mortal escapou-lhe entre os dedos crispados, indo cair barulhenta e inofensivamente no chão de pedra! Ao mesmo tempo, uma tropa de guerreiros assomou, irrompendo como um furacão tropical!

   De zarabatana na mão, ergueu-se Izayana, do ponto em que se ocultara para usar a arma de sopro! Habilmente, cortou as cordas que cingiam o Gatão e de um pequeno frasco, deu-lhe uma poção estimulante de efeito imediato, bem como uma espada afiada! Munido de intensa carga de energia explosiva, o felino acinzentado ergueu-se! Com seus salvadores abriu caminho entre os atônitos sacerdotes e os guardas do Templo que não tiveram como reagir ao avanço feroz! Tomando um rumo preestabelecido que dava diretamente na selva, desapareceram nas trevas reinantes!

   Só quando o sol se ergueu no horizonte é que uma expedição punitiva foi enviada atrás dos fugitivos! Chefiava-a, o Capitão-mor, reconduzido às suas funções! O indivíduo tinha ganas de alcançar Izayana e os outros! Para matá-los! Especialmente, a guerreira! Seu ódio por ela não tinha limites e teria mais prazer ainda em estripar aquele estrangeiro! Causa principal de sua ruína! O Capitão era um excelente rastreador! Contudo, não conseguia encontrar pistas de suas presas! Era como se alguma força estranha o cegasse, fazendo-o andar em círculos!

   Enquanto seus perseguidores se afastavam, tomando caminhos errôneos, o Gatão, Izayana e a pequena tropa que os acompanhavam pararam à beira de um afluente do grande rio. Ali estavam mais alguns guerreiros e quem diria! Karoll que ao ver o felino tristonho, caiu em seus braços, chorando de pura alegria!

– Você está vivo! Quando Izayana mandou me tirar do palácio real, ontem à noite…! Eu não soube o que pensar! Eu…!

   Zé Gatão deu um dos seus raros sorrisos e aninhou a gentil ave em seus enormes braços, beijando-a na testa. Dois guerreiros, trouxeram uma piroga escondida na folhagem. Colocaram-na na água. Todos embarcaram e se afastaram velozmente, rio abaixo! Ainda ouviram urros enfurecidos e alucinados na margem! Era o Capitão-mor que chegara atrasado, vendo impotente, sua caça escapar-lhe entre os dedos das mãos em garra, tal era a fúria virulenta que o animava!

   Por quase três horas, a piroga seguiu pelo afluente, até chegar numa passagem para o enorme rio principal. Durante o trajeto, Izayana pôs o Gatão a par de certas situações. Suas palavras foram as seguintes:

– Agindo estamos nós sob as ordens da deusa serpente. Na noite anterior ao teu sacrifício, teve Ela visões proféticas! E em sonhos a mim revelou!

“ Uma grande catástrofe se abaterá sobre o Império Jaguar em um futuro ainda distante! Povos do teu mundo civilizado se abaterão sobre o Reino e o destruirão! Tua imolação não adiaria ou impediria este porvir! Além disto, Ela viu teu futuro, o qual nada tem a ver com os desígnios dos deuses desta selva! A deusa nos encarregou então, de salvar-te e buscar um novo santuário em um determinado vale, escondido entre as montanhas. Ali uma nova geração florescerá! Nova vida! Novos costumes! Sem mortes inúteis, desigualdades sociais ou sacrifícios de sangue! Benapatóchi será nossa única protetora abençoada! Benevolente e não mais oculta em Templos Sagrados, sob a tutela de uma casta sacerdotal! Viverá entre nós, pois ela abrirá mão de sua potestade para se tornar um ser carnal! Ela ainda será poderosa! Mas seremos nós como iguais!”

   O felino gris, deu mais um de seus poucos sorrisos! A velha cobra era mesmo sábia! De maneira inteligente desconstruiria o mito criado em torno de si e poderia viver em paz entre aquele povo felino, tendo pago com juros a proteção que lhe ofereceram ao longo dos séculos! A Antiga Ordem cairia, como tinha que ser! A vasta e maravilhosa Cultura dos jaguares não se perderia e seu legado permaneceria! Livre por enquanto, da sanha dos rapaces deste mundo! Izayana perguntou se o Gatão gostaria de se juntar a ela e viver para sempre no vale escondido. O felino agradeceu, mas respondeu que ele não pertencia à selva! Queria ser livre para ir e vir como sempre fizera! Karoll seguiria com os jaguares! Era bem-vinda! Não seria mais só e não teria mais medo! E o melhor! Ainda permaneceria nas matas que tanto amava! Zé Gatão abraçou a todos e partiu na piroga! Rumo à Civilização! Cheia de contrastes! Mas era seu mundo e não poderia continuar fugindo dele! Com pesar, se separou dos seres mais amigos e fiéis que jamais encontrara! Vislumbrou uma lágrima nos olhos de Izayana e de Karoll! Por um momento, quis reconsiderar! Mas não podia! Era como um navio perdido no Oceano! Uma criatura sem Pátria, a vagar pela Terra! Separam-se, portanto, para encontrar seus próprios Destinos.

    A cidade santuário estava em polvorosa! A dita expedição punitiva voltou de mãos vazias! O Capitão-mor foi responsabilizado! Apesar de ter lutado como fera acuada, amarraram-no ao altar do sacrifício, visando aplacar a ira dos deuses, que fatalmente se abateria sobre o Império! O Capitão acabou imolado! Seu coração palpitante, arrancado do peito aberto à faca! Não houve choro nem vela que demovesse a Casa Real de assim o proceder!

    Desde então, a grande deusa serpente silenciou, não atendendo mais aos apelos e às preces dos sacerdotes! A gigantesca cobra recolheu-se aos subterrâneos do Templo! Em lugar inacessível e desconhecido! Lá, mergulhou em um longo sono, do qual apenas despertaria quando da aproximação da Grande Catástrofe! Impiedosa devastadora no denominado Fim dos Tempos!

   Apesar de tudo, a vida não se alterou grandemente no Reino! Se uma divindade se calava, havia tantas outras a venerar! O profético dia da Derrocada Final ainda estava distante no tempo e as gerações atuais não o veriam! Nem disso saberiam, pois os sacerdotes preferiram jamais revelar suas terríveis visões do futuro!

   Lentamente, Izayna, os seus e Karoll seguiram pelos caminhos da jângal até um ponto, onde canoas costumeiramente ali deixadas, os esperavam. Tomaram-nas e sumiram nos meandros de um pequeno rio. Se eventuais perseguidores viessem, perderiam logo sua pista!

   Longe, no meio do enorme rio de águas barrentas, o Gatão manejava com habilidade sua piroga! Sempre temera e detestara cobras! De repente, sentiu um toque sutil em sua mente! É como se alguém sorrisse para ele em seu íntimo! Uma onda de paz o tomou. De alguma maneira, ele soube que seu agradecimento chegara até a grande serpente! E ele aprendeu que qualquer ser pode mudar! O carinho e a veneração do povo jaguar, mataram o rancor e a desconfiança que a cobra tinha dos mamíferos e os cuidados da assim chamada deusa Benapatóchi para com o felino gris, inclusive salvando-lhe a vida, o fizeram mudar! Pelo menos, em relação aquela serpente de aparência tão monstruosa, mas de coração bondoso! O felino se descontraiu e remou com mais tranquilidade! Breve o sol ia se deitar ele precisava encontrar um bom lugar para passar a noite, antes da longa jornada de volta à Civilização.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

UM POUCO MAIS SOBRE PHOBOS E DEIMOS

Boa noite a todos! 

Realmente ando bem afastado do blog, mas não porque eu queira, tem me faltado tempo e também a velha inspiração de outrora. 

Na verdade também tenho medo de ficar repetitivo, minha vida anda mais rotineira do que sempre foi, tudo se resume a sentar aqui e trabalhar, sair para pagar boletos na lotérica ou fazer compras. Nada além disso. Uns dias de tormenta, outros de sol....e a vida segue na mesma batalha para continuar com o nariz acima da água, as vezes sem espaço para respirar. 

Não sei dizer se todo o esforço dos anos passados renderam frutos pois ainda não os colhi de fato, apenas uns pomos um tanto verdes. O futuro dirá. Talvez eu nem esteja vivo para testemunhar. Bem, pouco importa agora.

Phobos e Deimos demorou 15 anos para contemplar a claridade, uma primeira edição de poucos exemplares deve estar entrando em gráfica na semana que vem. Como será a recepção só Deus sabe. Eu queria ser otimista mas esta não é a minha natureza por mais que eu tente.

Este vídeo criado pelo amigo Elton Borges mesquita mostra algumas cenas e propagandeia a pré venda que está com desconto legal e frete grátis.

Vou atualizando vocês a medida que a coisa avançar.

Grande abraço a todos!




 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

PHOBOS E DEIMOS EM BREVE!!!!


Foi em junho de 2010 que comentei sobre este livro (concluído cinco anos antes) e acho que foi um texto até legal, que fala um pouco sobre o mercado de quadrinhos na época (na boa, não mudou nada, desde então). Pra conferir é só acessar este link: (http://eduardoschloesser.blogspot.com/2010/06/phobos-e-deimos.html).

Bem, dez anos depois da tal postagem, Phobos e Deimos vai finalmente sair pela Atomic Editora, se tudo der certo, em dezembro. Seria bom para mim terminar este ano atípico com uma publicação que estava sufocada em meus envelopes por todo este tempo. 

Tudo está se esfarelando muito rápido, nem sei se todos os meus planos concernentes às minhas artes se concretizarão. Zé Gatão-Siroco ainda segue no limbo (mas vou concluir e publicar, se Deus quiser).

Surgindo mais novidades, vou postando aqui.

Fiquem todos bem!

  

domingo, 25 de outubro de 2020

ZÉ GATÃO - INFERNO VERDE, PARTE 7 (um conto de Luca Fiuza ilustrado por Eduardo Schloesser).

16/05 a 16/08/20.
Parte 7:

     Ao chegar às maciças e impressionantes escadarias do pétreo Palácio, Izayana e seu grupo foram conduzidos por um sisudo serviçal ricamente paramentado. Caminharam por uma infinidade de corredores colossais. Pararam por fim, em uma ante sala e ali se quedaram a aguardar, enquanto o criado desaparecia de vista. Enquanto aguardavam, outro lacaio aproximou-se, servindo silenciosamente água fresca e alimentos leves. Ânfora, taças e pratos, forjados em ouro de alta qualidade e pureza. Não havia garfos e facas. Comia-se com as mãos, sem a preocupação de antes higienizá-las. Zé Gatão não se importou. A refeição foi consumida com apetite e a água cristalina saciou a sede. Logo depois, Izayana e o que sobrou de sua tropa foram chamados para uma audiência com a Realeza na grande sala do Trono. O felino cinzento e Karoll deixaram-se ficar na ante sala, aproveitando para descansar da longa jornada. Felino e ave não trocaram palavra. Karoll apenas olhou apreensiva para Zé Gatão e este manteve-se tranquilo. A ele e sua amiga emplumada nada mais restava, se não esperar.
      Neste ínterim, na ampla sala do Trono, estava ocorrendo uma audiência. Diante do rei e de sua rainha, majestosamente acomodados em assentos de espaldar alto, feitos de ouro, cravejados de diamantes, rubis e esmeraldas cintilantes, a guerreira Izayana, chefe da Guarda Real, relatava as peripécias da longa viagem, no sentido de trazer a oferenda sagrada, representada por um estranho felino cinzento de outras terras. Uma oferta inesperada de seus vassalos, os Panteras Negras. Izayana asseverou que o felídeo de cor cinérea havia se revelado um grande e valoroso guerreiro, cuja a coragem ímpar possibilitara o bom termo da arriscada e perigosa missão, determinada por suas
Magnificências. Estas, escutaram atentamente a explanação da guerreira pintalgada. Quando Izayana terminou de falar, o rei ordenou que sem tardança, trouxessem o estranho e sua companheira psitaciforme à sua presença. E assim foi feito.
      Introduzidos no majestático recinto, ave e felino se depararam com o olhar inquisitivo do casal soberano. Zé Gatão sentiu que estava diante de poderosos governantes divinizados, por uma questão profundamente cultural dentro daquela sociedade. Eram vistos e se entendiam como Filhos do próprio Sol. Não havia a empáfia da megalomania e sim uma certeza, advinda da posição sagrada de ambos, naquele microcosmo perdido em meio à selva luxuriante. Eram altivos, sem demonstrar prepotência. Eram obedecidos por direito de mando, decretado por suas terríveis divindades. O rei dirigiu-se aos recém-chegados em um tom de voz profundo e até agradável:
– Ó estranho cinzento de fora, minha Chefe da Guarda Real muito bem te ti falaste, como grande guerreiro que arrostastes grandes perigos de forma corajosa e galante. Portanto, apesar de teu destino imutável, nem tu e nem tua acompanhante como escravos sereis tratados. Tereis vós dignos aposentos no palácio e livre acesso à cidade santuário. Tu, ó cinzento, mais do que oferenda divina, serás um hóspede de destaque. A arara carmesim, como habitante da selva está desobrigada a permanecer entre o povo jaguar. Noto eu, contudo, pelo olhar que ela prefere ficar a teu lado. Como honrado guerreiro que és, conto com tua não tentativa de fuga. Caso se dê, a ordem será matar-te de imediato, antecipando teu sacrifício à deusa serpente! Em verdade, tal se dará daqui a “duas luas.” Tu serás sacrificado no grande altar sagrado do palácio, onde teu sangue há de verter copioso, para apaziguar a ira celestial da Mãe de todos, a clemente e poderosa Serpente Emplumada. Zé Gatão ficou em silêncio. Seria então dali a quinze dias…! Karoll estremeceu de pavor e olhou para o felino cinza. Este, sereno, a acalmou com um olhar, imperceptível aos demais.
     Após a audiência, Zé Gatão e Karoll foram conduzidos a um gigantesco aposento, onde caberiam famílias inteiras em seus imensos espaços. Se livraram sofregamente, dos trajes sujos, rasgados e impregnados de suor que usavam e entraram em uma piscina de pedra cheia de água corrente, bastante refrescante, alimentada por uma fonte canalizada por um aqueduto que partia das montanhas nevadas à distância. A água estava cheia de pétalas de flores e ervas aromáticas. Felino e ave entraram juntos na piscina, deleitando-se com aquele banho delicioso! Karoll, embora satisfeita, não conseguia deixar de enviar olhares receosos e preocupados ao amigo. Zé Gatão entendeu a mensagem e disse simplesmente:
– Amanhã, vamos dar uma volta turística pela cidade para conhecer suas belezas. Que lhe parece?
       Karoll concordou, entendendo que não poderiam conversar livremente. Poderiam estar sob vigilância. Inclusive, no passeio do dia seguinte. A ave encarnada não quis mais pensar sobre isto! Resolveu agir como o Gatão e usufruir daquele momento esplendoroso de poder tomar um bom banho! Custava a crer que houvesse criaturas vivas, não afeitas à tão gostosa forma de higienização e relaxamento.
         Uma hora depois, vestiram roupas locais, ali deixadas previamente para o uso. A vestimenta de Karoll consistia em uma saia comprida e camisa larga de algodão, coberta com um lenço multicor, para tapar os ombros. A camisa em particular, tinha flores bordadas de cores alegres. O traje do felino taciturno era composto por uma calça larga de fibra vegetal. Peito descoberto, exibindo sua potente e pronunciada musculatura. A calça era enfeitada com cores e bordados, dando um toque colorido e alegre à indumentária. Em fim, roupas frescas e agradáveis aos olhos. Aproveitaram o resto do tempo para repousar, tirando um sono tranquilo, algo impossível na jângal.
     Ao cair da noite, foram convidados para cear com os soberanos e a nobre elite que compunha a Corte. A refeição foi alegre e descontraída, sem a solenidade grave da audiência. O felino gris, notou um olhar significativo da rainha em direção a ele. Fingiu nada perceber e registrou o fato como algo que poderia ter algum significado futuro.
      Os alimentos eram verdadeiros manjares se comparados à alimentação frugal que tiveram os recém-chegados, em seus longos dias na hiléia virginal. O vinho era suave, semelhante a um néctar, feito de uvas, cultivadas e colhidas na base das grandes montanhas. Izayana também estava no recinto monumental e longo sentou-se perto dos seus dois amigos para conversar. Também lá estava, o como sempre carrancudo, Capitão-mor, o qual dirigiu um virulento olhar em direção a Zé Gatão. Este o encarou bem nos olhos e a expressão desdenhosa do felino cinzento, fez com que o Capitão engasgasse com seu vinho, devido a um violento acesso de cólera, pela silenciosa afronta que lhe foi nada sutilmente endereçada! Tossiu sem fôlego, o que suscitou em uma pilhéria por parte da rainha, fato que deixou o indivíduo ainda mais agastado! Conteve-se porém, suportando calado a galhofa de quase todos os presentes! Karoll, entretida em uma conversa com Izayana, nada notou. Zé Gatão não achou graça e viu que ganhara um perigoso inimigo. O felino acinzentado deu de ombros. Preocupar-se-ia com isto, no devido tempo.
      Quase ao final da lauta ceia, o casal reinante se retirou para seus aposentos. O Gatão e Karoll aproveitaram para fazer o mesmo. Não sem antes ter a informação da própria Izayana de que ela seria a acompanhante durante o passeio pela cidade santuário, na manhã seguinte. Tal fato, agradou o felino gris. Era melhor estar com uma amiga do que com alguém desconhecido. Ainda assim, seria cauteloso em suas atitudes. Não por desconfiar da guerreira pintada, mas por uma prudência básica, característica de seu temperamento arredio e desconfiado. Uma vez em seus aposentos, felino e ave se recolheram após um breve desejo de boa noite. Desta vez, o sono do gato foi leve, quase como na selva. Seu instinto de preservação estava ativado ao máximo! Sabia que não havia risco imediato contra sua vida, já que era uma oferenda sagrada à deusa Serpente Bepnapatóchi. Contudo, não podia descartar alguma ação sub-reptícia, por parte de seu mais recente inimigo, o Capitão-mor da Guarda Real. Se quisesse viver até o dia do sacrifício naquele estranho reino, era mister estar diuturnamente atento.
   A noite correu sem percalços. Bem cedo, de manhã estavam Zé Gatão, Karoll e Izayana tomando a refeição matinal. Um detalhe que chamou a atenção de Karoll e do Gatão foi que antes de comerem, uma oncinha bonita e esguia provou dos alimentos antes deles. Izayana explicou que a jovem felina era a Provadora Oficial. Sua incumbência era literalmente degustar toda a iguaria e bebida servidas à realeza como prevenção contra possível tentativa de envenenamento. Neste caso, seria ela é que morreria no lugar do casal governante, ou de qualquer membro pertencente à Casa Real. Embora horrível de se pensar, era uma precaução justificada, muito comum também no mundo do felino, só que em outros tempos, nas Cortes do passado distante e naturalmente naquela. Imediatamente, o grande gato descartou o uso deste expediente contra ele. Se tentassem matá-lo antes do dia fatídico, ao qual fora condenado, seria por certo, de outro modo. Até então, sua sina estava definida previamente, desde o momento em que deixando o Reino dos Panteras Negras, afundou-se nas trilhas da exuberante selva para chegar até onde atualmente se achava.
     Instantes depois, saíram do grande palácio de pedra para o forte calor do sol daquela linda manhã. As ruas estavam apinhadas. À medida que caminhavam em meio aos habitantes que olhavam com curiosidade para o felino “de fora”, Izayana ia explicando fatos de sua poderosa Cultura, identificando as construções públicas, residenciais e cerimoniais. O Gatão ouvia com atenção, guardando cada palavra e procurando desde já, localizar rotas de fuga. Karoll, ao contrário, a tudo olhava entre maravilhada e assustadiça, sentindo-se esmagada pelo esplendor daquela cidade-estado! Vetusta, em sua magnificência! O lento caminhar, os levou às proximidades do posto da Guarda Real, pelo qual passaram, quando de sua chegada à cidade santuário. Os soldados guerreiros vieram rodeá-los, prestando efusivas homenagens à Izayana, chefe desta Guarda de Elite. Um único elemento dentre os demais, não agiu da mesma forma. O nefando Capitão-mor. Soturnamente, encarou a todos com evidente desprazer. Sua voz rascante e meio sussurrada se fez ouvir em meio às palavras de júbilo dos outros guerreiros:
– Cinzento…! Se tu não fosses o enviado esperado para aplacar a ira dos deuses…matar-te-ia como o maldito infiel que és! Ao menos, terei eu o prazer de ver-te manietado e sangrado em holocausto à Grande deusa, como o mero ofertório que és!
    O sorriso irônico na face de Zé Gatão quase levou o guerreiro à loucura e sua ameaça fez-se vazia de significado! Arfando, segurou com a mão crispada o cabo da espada! Antes que a desembainhasse, porém, Izayana adiantou-se dizendo em tom calmo, mas incisivo:
– Chegaste ao limite do tolerável, Capitão-mor! Teu atrevimento e deselegância não mais impunes permanecerão!
– Que todos se coloquem à parte! - continuou – Eu mesma darei a merecida lição a este biltre desleal! E desde já, Capitão, destituo a ti de tuas atuais funções! Oficial já não o és e nunca mais o serás! Ficarás confinado à prisão por um tempo determinado neste posto, de onde sairás somente como mero serviçal, nos cuidados e na limpeza diária deste mesmo local!
– Jamais! Matar-te-ei antes, Izayana! Desleal és tu que preferes um estrangeiro a teu próprio povo!
– Guardas! Se o ex-Capitão me derrotar, o que falacioso o é, minha anterior ordem deve ser cumprida à risca! A morte, negada lhe deve ser! Seria um prêmio, justificado só a um verdadeiro guerreiro!

   Aquilo foi excessivo para o sentimento amargo de humilhação que já acometia o não mais oficial! Soltando urros doentios, precipitou-se sobre a onça guerreira, brandindo hábil e mortalmente a sua espada! Izayana evitou facilmente o alucinado ataque, bloqueando a brutal investida do adversário! O violento clangor do combate, atraiu uma multidão significativa para as imediações do posto da Guarda. Imediatamente, o destacamento de soldados guerreiros impediu que o povaréu se aproximasse muito, de modo a não atrapalhar os contendores! O felino gris não pode deixar de se impressionar com a destreza, daquelas duas máquinas vivas de combate! Cada fibra voltada para a luta, em movimentos perfeitamente coordenados. Izayana demonstrou maior habilidade e em um movimento difícil de acompanhar, desarmou seu oponente, o qual logo sentiu o gélido contato da lâmina opositora encostada em sua jugular! O derrotado felídeo pintalgado se viu forçado a largar sua espada. Foi brutalmente agarrado por seus ex-subordinados e confinado, solidamente manietado, em uma das celas graníticas do posto.
     Uma ovação apaixonada se elevou da multidão, acompanhada pelos brados da soldadesca em êxtase! Izayana sorriu condescendente e convidou o felino acinzentado e a arara a prosseguir o passeio. Zé Gatão precisou cutucar a ave encarnada para que se movesse, profundamente abalada pelo ocorrido!
     Ao entardecer, voltaram ao palácio. Como tinham almoçado em uma das tantas tavernas da cidade santuário, arara e felino dispensaram a refeição oferecida por um dos tantos serviçais escolhidos para atendê-los. A guerreira Izayana se despediu. Contudo, antes que saísse, um mensageiro régio, felídeo branco de área montanhosa, entregou-lhe um comunicado vindo do soberano. Era um convite para que Zé Gatão na manhã do dia seguinte participasse de um ritual de purificação espiritual. O acinzentado aquiesceu. Retirou-se o arauto e outro servo, um pequeno gato orelhudo de tez pardacenta e ar vivaz, os conduziu ao amplo aposento onde estavam instalados. Banharam-se e foram cedo repousar das canseiras daquele longo dia.
     Amanheceu sob forte e pesado temporal. A alta umidade do ar, potencializou o calor sempre reinante. Após a refeição matinal, uma serviçal, oncinha de ar delicado, veio buscar Zé Gatão para o ritual. Karoll foi levada por um pequeno lacaio, um lagartinho esverdeado de movimentos elétricos, para conhecer e fazer companhia aos filhotes reais, na área mais íntima e reservada do palácio de pedra.
     O felino gris foi conduzido a um grande cômodo onde o esperavam três sacerdotes ricamente paramentados. Gentilmente, o gato grande foi convidado a se acomodar em um banco de pedra, no centro do vasto aposento. Logo, se achou rodeado pelos três ritualistas jaguares. Cada um, lhe deu para beber, uma aromática e distinta infusão, em diferentes taças de ouro puro. As mesmas, ricamente adornadas com pedras de alto grau de preciosidade. O sabor de cada uma das beberragens, provocou estranhas e variadas sensações no Gatão. Desde tremores intensos nos membros superiores e inferiores, calor e frio extremos pelo corpo todo. A última sensação foi um delicioso torpor que trouxe uma tranquilidade interior nunca antes sentida pelo felino. Parecia que todas as suas dores, dúvidas, medos e sofrimentos lhe tinham sido suavemente arrancados da alma! Em seu íntimo, porém, sabia ele, ser algo temporário! O que era e como havia sido forjado pela Vida, continuaria com ele até seus últimos dias.
     Enquanto prosseguia o longo ritual, os sacerdotes entoavam um cântico ritmado e monótono, que evoluiu para uma canção maviosa que lembrava o gorgear delicado, das aves canoras. Pareceu a Zé Gatão que seu espírito estava se separando de seu corpo físico, soerguendo-se para um outro nível, além das percepções da existência material. Um silencioso e luminoso torvelinho dominou seus sentidos! Viu-se em outro aposento, fora do palácio ciclópico! Sentiu-se no interior do Grande Templo Sagrado, onde era proibida a presença dos impuros, ou de meros mortais. Sua essência incorpórea, penetrou em um ambiente dominado por densas trevas! Silencioso, solene. E nesta escuridão, vislumbrou o cintilar de olhos enormes, reptilianos! Ouviu um sibilar que continha estas palavras: - Felino enviado…! Logo tu estarás devidamente purificado de corpo e alma! Então será a hora de nos avistarmos…! Não temas! Sinto eu, o medo e o ódio que carregas dos seres da minha espécie! Tens tuas razões, reforçadas por tua SINA! Repito! Nada temas! Prepara-te em espírito para este encontro! Teu corpo já o está, mas o resto depende exclusivamente de ti!
    A voz silenciou. Incrivelmente, o Gatão não sentiu maldade alguma naquelas palavras, pelo contrário! Por trás daquela voz, havia uma sabedoria além de sua compreensão! Sabia ser notório que certas grandes serpentes eram tão sapientes, quanto raríssimas. Criaturas consideradas mortais e odiosas! Apesar do medo atávico que ainda experimentava, seu ódio ao desconhecido réptil, arrefeceu um pouco! E uma onda de tranquilidade o inundou, proveniente do ser oculto sob o manto da escuridade. Lentamente, sua alma imortal reuniu-se outra vez ao seu corpo mortal, não sem causar um forte choque, como se da liberdade voltasse ao cárcere!
     Tomado por forte sonolência, o Gatão, auxiliado pelos sacerdotes, foi deixado em uma sala contígua para repousar em uma cama granítica, mas macia, devido a um grande colchão recheado de penas de aves coloridas. Ali, o grande gato entregou-se a um sono reparador que duraria quase a tarde inteira.
    Neste ínterim, Karoll estava brincando com os filhotes reais. Foi amizade à primeira vista! Era um casalzinho muito educado e carinhoso. Em meio aos divertidos folguedos e às risadas alegres, ficaram sob o discreto, mas vigilante olhar da aia monárquica, uma onça um pouco acima do peso, muito agradável, a qual tratou a arara com bastante familiaridade. Karoll relaxou e entregou-se aquele idílio, meio esquecida do medo constante que sentia naquela cidade gigantesca! Contudo, no fundo, não conseguia se desligar da verdadeira razão de estarem ali! Seu amigo, o Gatão seria brevemente ofertado em sacrifício à sanguinária deusa serpente que regia os destinos daquele reino! Precisavam os dois, de alguma maneira escapar deste fado cruel. Durante a pausa feita para o almoço, ficou a dar tratos à bola, buscando uma saída! Mas por mais que refletisse, não conseguia ter nenhuma boa ideia. O gato cinzento era muito inteligente e Karoll contava com ele para alcançar o Livramento! Se ele morresse, ela ficaria para sempre prisioneira naquela espécie de gaiola dourada. Tal constatação, sombreou sua face, mas o casal de filhotes em sua inocência pueril e a avantajada aia em sua bondosa ingenuidade, nada notaram.
    Aos poucos, Zé Gatão começou a despertar daquele sono magicamente induzido. Ergueu-se ainda estremunhado. Uma bela serviçal felídea, em trajes diáfanos serviu-lhe água fresca e silenciosamente, o guiou por um corredor que terminou em uma sala suntuosa, onde em tronos dourados se achavam o monarca e sua esposa. Ambos saldaram o recém-chegado com um breve sorriso. O monarca disse em tom calmo e cordial:
– Estás agora purificado, ó Enviado! És portanto digno do beneplácito da grande deusa serpente e seus favores! A partir de agora ficarás conosco, que somos os diletos filhos do Sol fulgurante, até o ansiado dia, no qual te apresentarás diante do altar no Templo Sagrado e verterás teu sangue, hoje livre dos pecados deste mundo para honrar nosso povo e conquistar a proteção eterna das divinas forças regentes da Ordem e do Caos. Tanto no mundo físico quanto no espiritual.
    O gato fez uma curvatura de cabeça. Poderosa era a magia dos sacerdotes. A compreensão daquela estranha Cultura como nunca havia se descortinado diante de seus olhos. Tinha a impressão que era parte daquele dinâmico universo, quase como se tivesse ali nascido e crescido. Portanto, um lado seu estava até conformado com o porvir. No entanto, uma pequena centelha de seu ser se contrapunha, e lhe dizia que tinha que sobreviver! Situação irônica! Em muitos momentos de sua vida desejara morrer, descansar das labutas, das tristezas e decepções! Mas um forte instinto de conservação animal, o fazia lutar contra todas as adversidades e continuar por mais um dia. Era a razão a lutar com o instinto! Normalmente, o segundo sempre vencia.
     A convite do casal monárquico, sentou-se com ele, em uma grande mesa de pedra alva como a neve. Em seguida, dois musculosos felídeos escravizados, pintalgados, mas de tez negra serviram uma fragrante bebida escura, em taças esmeraldinas. O casal de monarcas ergueu as suas, de modo ritual, sendo prontamente imitados pelo Gatão. Disse o rei:
 Xocoatl,1 a bebida sagrada! Oferta dos deuses! Podendo ser ingerida apenas pelas divindades, rebentos seus e purificados como tu! Beba conosco, pois, ó Enviado!
     A saborosa bebida foi consumida com vagar e evidente prazer. Depois, o cinzento e o casal soberano foram passear por um amplo jardim interno, onde linda e exuberante vegetação, composta também de flores enormes e perfumosas, cresciam protegidas da chuva intensa que caía lá fora, desde a aurora.
    Naquele ambiente tranquilo e agradável, caminharam, conversando. Então, a rainha indagou:
– Ó Enviado, os sacerdotes falaram que durante tua purificação, te avistaste em espírito com Benapatóchi, a deusa…serpente emplumada que rege do Universo o Destino! És tu um privilegiado! Somente eu e meu real esposo, como filhos diletos do Sol temos tal honraria! Como é lícito que tu, mero mortal, ainda que consagrado tenha tido tal deferência?
– Talvez por seres um valoroso guerreiro e não um escravo!
O monarca continuou:
– Até então, as oferendas nossas aos deuses consistiam de escravos ou de outros povos felinos submetidos ao Grande Império, em geral, fêmeas jovens e virgens ou machos saudáveis de forte constituição física. Contudo, na Cosmogonia2 Jaguar, um Enviado dos deuses, um dia viria para honrar e se entregar à Benapatóchi, deusa serpente, criadora e mentora de tudo o que há!
Pela primeira vez naquele monólogo solenemente sussurrado, Zé Gatão indagou com voz alta e clara:
– Vossas Majestades têm a certeza de que sou este dito personagem?
Foi a rainha quem respondeu:
– Em todos estes anos de sacrifícios de sangue aos vários deuses e deusas do panteão sagrado, nunca Benapatóchi se interessou por nenhuma das ofertas feitas, pois a ela só a máxima oferenda seria aceita! À tua chegada, os nossos sacerdotes identificaram a ti como o Esperado, descrito nos Divinos Pergaminhos: um ser poderoso, vindo de terras distantes, olhar de quem muito viveu! Alma perdida nas sombras da dor, mas, ao mesmo tempo, pungente! Guerreira! Tu o corporificas! Dúvida não há!
Um intenso brilho havia nos olhos da soberana, bem como na voz, uma paixão que mexeu com o felino gris! Que incrível povo era aquele! Em seu íntimo estava quase a se entregar sem protesto, ao ritual que lhe tiraria a vida! Loucura! Pensou! Mas queria a Morte, sempre a quis! Seu abraço gélido e final! Descansar, por fim, das tribulações do viver!
Ficaram por um momento, silenciosos. O monarca felídeo então, falou:
– Ficarás nesta especial área do palácio até a sagrada noite do ritual de ofertório no Templo de Benapatóchi! O maior da cidade santuário! À noite, te guiaremos nós, na última cerimônia de purgação a fim de que imaculado, possas tu te apresentares diante da deusa no momento que está a se aproximar!
Quis saber, o felino gris:
– E Karoll, a arara-vermelha?
– Nada temas, ó Enviado! Ela será para todo sempre a Guardiã dos Augustos Filhotes que um dia hão de herdar este Império. Enquanto vida tiver, nenhum mal lhe há de suceder! Tens a minha palavra!
     O grande gato foi conduzido a um enorme cômodo, onde o esperavam bebidas frescas e alimentos suaves. O majestático casal o deixou a sós. Uma grande e convidativa piscina de águas frias, lhe trouxe alívio do forte calor sempre presente e ali relaxou, satisfeito. Depois, comeu, bebeu e logo no enorme leito, entregou-se ao descanso. Sentia-se seguro, embora sobre sua cabeça pendesse a faca ritualística sacerdotal! Não a temia, porém! A princípio, receberia sorridente, o golpe mortal! Se prevalecesse seu natural instinto de conservação, então lutaria com unhas e dentes por sua vida! Decidiu pensar nisto quando de sua proximidade! Melhor seria por enquanto, analisar todas as possibilidades! Havia algo de estranho nos modos na soberana! Um jeito que acendeu uma luz amarela em seu espírito vigilante! Um diferencial que precisaria depressa entender! Decisório talvez, no desenrolar dos acontecimentos presentes e futuros! Quem sabe?
     O forte temporal diurno cessou ao cair da noite. Uma brilhante e enorme lua cheia dominava o céu estrelado. Zé Gatão despertou, se sentido bem descansado. Um dos sacerdotes veio buscá-lo. O felino acinzentado foi levado a uma grande câmara cerimonial. Dispostos pelo aposento havia vários tapetes finamente trabalhados, cujo o posicionamento, formava um triângulo. No centro se achava um braseiro aceso que exalava um odor adocicado. Junto do braseiro, um outro sacerdote aguardava em silêncio. Por uma porta, à direita da qual, tinha entrado o Gatão com seu circunspecto acompanhante, penetrou naquele recinto, o casal real. Acomodaram-se os majestáticos cônjuges, lado a lado, cada qual em seu tapete.
O sacerdote do braseiro, adiantou-se, dizendo:
– Ó divina deusa Benapatóchi! É chegada a hora da última fase da purificação, da qual participarão o Enviado, assim como os dois: filho e filha diletos do Sol, Governantes do Povo Jaguar! Te glorificamos, ó poderosa e em teu nome, esta cerimônia tem início!
    O ritual começou ao som de cânticos melodiosos, mesclados com orações contritas, por todos realizadas, menos por Zé Gatão. Embora conservasse uma atitude respeitosa, estando de certa maneira versado na liturgia, daquele culto, pertencia a outra realidade e mesmo a magia poderosa que lhe dera conhecimento e compreensão dos usos e costumes daquele povo, não era suficiente para transformá-lo em um deles.
      Ao término das preces, uma bela jovem e imaculada felídea em vaporosos trajes brancos, trouxe em um recipiente de cerâmica, uma certa quantidade de fungos espetados em palitos de fina prata. Cerimoniosamente, entregou o receptáculo para o sacerdote do braseiro. Em seguida, auxiliou-o a passar os palitos com os fungos, um a um na fumarada cinérea que do braseiro se elevava. Ao contato com a fumaça, a tonalidade branca do agárico, mudava para o pardacento e um odor acre, podia ser sentido no ar. Então, a jovem distribuiu os fungos entre os presentes, com a instrução de os mastigar lentamente. Um pequeno copo de cerâmica avermelhada foi também entregue a todos. O mesmo continha um vinho suave e adocicado que servia para minorar o sabor amargo dos fungos e ajudava a relaxar mentes e corpos. Enquanto mastigava o seu quinhão e bebericava aquela espécie de néctar alcoólico, o felino gris começou a sentir um torpor. Primeiro na língua. Depois o mesmo tomou-lhe o corpo, trazendo consigo, uma forte sensação de relaxamento.
     Aos poucos, sentiu uma vertigem como se estivesse caindo em um abismo sem fim! Não houve medo, simplesmente foi se entregando aquela inusitada experiência, sem nenhuma resistência. Uma escuridão densa e profunda foi se imiscuindo aos poucos e em meio a ela, sentiu as presenças do rei e de sua esposa, bem como uma outra presença muito vívida que exalava grande poder! Era Benapatóchi, a serpente emplumada que surgia diante deles, em meio a uma esplendorosa luz azulada, afastando as trevas e comunicando aos três felinos um sentimento de paz e tranquilidade! O Gatão achou que se estendesse a mão tocaria na cabeça enorme da serpente, que os olhava inquisitivamente. Seria real? Ou apenas uma alucinação provocada pelos fungos sagrados? Quem o poderia dizer?
    A “deusa”, como que flutuando diante do Gatão e seus acompanhantes, dirigiu-se aos presentes. Sua voz penetrando fundo em suas essências, vinda de toda a parte e ao mesmo tempo de lugar nenhum: - Ó majestáticos filho e filha do Sol…ó Enviado de outras terras! Purificados estais vós, o suficiente para que tua deidade se dirija a vós, descendo da Onipotência ao mero Plano Mortal! Um particular colóquio faz-se necessário entre MIM e o Enviado dos deuses. Assim, o casal real vai retornar ao Mundo dos Viventes e lá aguardar meus divinos ditames por meio dos sacerdotes sagrados! Assim diz Benapatóchi! Mãe de todos e inconteste Rainha do Universo!
     Como que por encanto, o casal real esvaneceu-se, tal qual névoa sob o calor do astro-rei. Zé Gatão, voltou-se para a gigantesca serpente, a qual tornou a falar, dirigindo-se a ele, somente. Começando com a linguagem empolada ali reinante, mas aos poucos ficando mais solta, quase como o falar do mundo civilizado: - Ó grande felídeo de plagas longínquas…! Tua “deusa” sabe que és formidável e galante guerreiro, como nunca se viu até então, nesta selva! Ah! Crês tu que não sou eu exatamente o que afirmo ser…! Em verdade, não te afirmarei e nem o negarei! Tu és sagaz o suficiente para ver além dos ritos e das meras aparências. Sou eu no entanto, velhíssima e sapiente e tu o bem sabes, pois conheces ofídios de minha categoria, embora raros sejamos neste mundo! Minha espécie é temida e odiada pelos seres de sangue quente como você! E reconheço que há razão para tal, pois somos inimigos viscerais desde a Criação do Universo, por razões que se perderam nos meandros do tempo…!. Nisto também acreditava eu, quando há éons sem conta encontrei refúgio do ódio e da perseguição dos mamíferos entre os antepassados do povo jaguar…! Meu próprio ódio a todos as criaturas homeotermas extinguiu-se e adotei este povo antigo, sua Cultura, sua linguagem, em fim, os seus costumes, sendo eu devido a minha aparência e inteligência, aceita como uma entidade divina do panteão sagrado de deuses e deusas pelos séculos subsequentes, me tornando para os jaguares, Benapatóchi, a serpente emplumada encarnada na Terra! Oh! Não pense que os iludi! Já era eu sem o saber, parte integrante de suas crenças religiosas e minha aparição, apenas corroborou as velhas profecias de…digamos, minha esperada volta! Tive séculos para aumentar meus poderes e sabedoria de maneira exponencial! Estamos aqui reunidos de modo imaterial, enquanto nossos corpos físicos permanecem no mundo carnal! Sua mente cheia de dúvidas está. Não as sanarei, ainda assim…!

Tão pouco falarei de seu futuro, o qual se descortina diante de mim, graças a meus dons de pitonisa! Sinto que você intui, então que não morrerá aqui! Mas como sabe perfeitamente, o passado é o que já foi, portanto, imutável! O presente é o que é…! O futuro é como uma estrada desconhecida, de várias rotas…! Posto isto, nossa conversa está encerrada! Não mais nos encontraremos! Volta você ao palácio…! Volto eu para o grande Templo Sacro, onde você antes nas trevas, e apenas em espírito, teve um vislumbre da minha forma corpórea! Adeus, ó felino de longe! Não queira mal a este povo, apesar do destino que te aguarda!
    Em meio a uma espiral de sensações, o felino cinzento despertou, totalmente a sós em seus aposentos, estendido em seu leito…confuso! Muitas perguntas e nenhuma resposta a turbilhonar em sua mente e assim adormeceu suavemente.
    Algumas horas após, o amanhecer, o felino cinzento despertou. Parecia que havia dormido por séculos. Se sentia bem descansado e na verdade, faminto. Neste ínterim, uma mimosa serviçal, em verdade uma delgada jaguatirica adentrou no recinto. Portava uma bandeja com uma refeição que consistia de frutas frescas, dentre elas, algumas bananas. Uma ânfora de água fresca e uma taça grande, ricamente adornada de pedrarias preciosas. Tudo de prata da maior pureza. O felino agradeceu, a gatinha fez uma mesura e retirou-se apressadamente. O grande gato concentrou-se então, a atender os anseios mais primais do seu organismo e praticamente, devorou as frutas e esvaziou a ânfora d’água. Assim que terminou, a jovem jaguatirica ressurgiu como que por encanto e prestimosamente, retirou a bandeja com as migalhas da refeição, ânfora e taça vazias.
     Pouco tempo depois, um jovem e robusto jaguar entra no aposento. Enverga a indumentária típica dos sacerdotes. Em uma voz modulada e agradável, apresenta-se. Chama-se Quéktolpec. Traz consigo uma pequena pilha de códices,3 a qual entrega nas mãos do felino taciturno, recomendando que a leia cuidadosamente. Afirma o religioso, que aquele dia será dispensado para leitura e meditação. O gato gris não será incomodado. Terá pausas para as refeições e descanso. No princípio da noite, receberá a visita de uma sacerdotisa para um último ritual de aceitação dos usos e costumes religiosos do povo jaguar, bem como a da benevolente tutela espiritual da deusa serpente no seu viver, até o sacro instante do sacrifício final.
   Uma manhã carrancuda e chuvosa surgiu. Um frio gélido se fazia sentir, penetrando nos ossos, forçando cada habitante que se atrevia a sair à rua a bem proteger-se com vestimentas de lã alva, de lhamas montesas, escravizadas. Camelídeos especialmente criados para fornecer vestes a seus amos felinos. Indumentárias apropriadas para estes raros momentos, quando os ventos glaciais desciam das altas montanhas nevadas a leste, se derramando impiedosamente sobre a região, acompanhados de uma gelada chuva fina e intermitente.
    Com o corpo curvado sob a força das rajadas que gemiam lúgubres ao se imiscuírem entre as ruas e habitações da urbe santificada, Izayna caminhava penosamente em direção ao posto da Guarda Real, onde estava confinado o ex-capitão-mor daquela importante e tão honorável corporação. Aguerrida e poderosa instituição, cuja missão era proteger o Reino Jaguar das ameaças tanto externas quanto internas à sua integridade secular.
    Ao aproximar-se do local de destino, a guerreira foi saudada silenciosa e respeitosamente pelos sentinelas. Com um breve movimento de cabeça e um leve sorriso, a onça retribuiu o cumprimento de seus comandados. Adentrando pelos umbrais da pesada construção de pedra, encontrou uma das guerreiras remanescentes da grande expedição, na qual foram buscar o estranho felino cinzento para o ritual sacrificial, no distante reino Pantera Negra, tributário do Império Jaguar. Estavam a conversar animadamente, quando de um cômodo adjacente, emergiu o decaído ex-oficial, rebaixado ao papel de um simples serviçal. Silente, mas cioso de seus afazeres, varria o chão, organizava o ambiente, trazendo tudo esmeradamente limpo. Não levantou os olhos para Izayana. No entanto, esta sentiu o ar crepitando, enquanto um evidente e surdo ódio fervilhava no coração do outrora poderoso personagem! Pertencente a uma respeitada e antiga família guerreira, seus parentes protestaram junto aos canais competentes. Solicitaram uma audiência com o casal soberano. Foram contudo, atendidos pelo grão-vizir. Este se dignou a afirmar que a punição fora branda por parte da chefe da Guarda Majestática! Pelas Leis do reino, o insolente, desrespeitoso e hoje lacaio, deveria ter sido sangrado como um porco do mato, sem a menor comiseração.
    A fabulosa cidade santuário era uma grande metrópole incrustada no meio da selva e todos os dias, desde as primeiras horas da manhã, uma intensa atividade despertava em seu interior! Industriosos, seus habitantes trabalhavam em diversas áreas que iam do artesanato à ourivesaria e também a lapidação de pedras preciosas! O grande império Jaguar comerciava com outros povos felinos a ele submetidos. Não havia o conceito de dinheiro. Era uma verdadeira troca de favores entre os habitantes, baseada mais na palavra dada do que na assinatura de documentos, embora o houvesse em certa medida. A Sociedade era altamente hierarquizada. Cada qual conhecia sua posição e o seu papel dentro da coletividade. Os casos muito graves eram resolvidos pelo grão-vizir e bem raramente, a Casa Real interferia nestes assuntos do cotidiano. Não existia pobreza. O Estado de cunho teocrático geria equilibradamente o administrativo e o social. Não havia desemprego. O saneamento básico era superior! A imensa urbe possuía um eficiente sistema de esgoto subterrâneo, onde os dejetos eram reaproveitados na agricultura. A água era limpa e abundante! A selva e os campos cultivados montados em estruturas semelhantes a degraus de uma escada monstruosa, forneciam o alimento. Aliás, bem variado. Eram consumidos tubérculos de diversos tipos, milho, tomates, cebolas e uma cenoura agigantada, mais nutritiva do que a cenoura comum. A caça fornecia carne e a anta, a capivara e certos pequenos símios era os seres mais procurados sendo preparados, bem como, servidos, tanto em casas de família como nos restaurantes e tavernas. No geral era uma Sociedade quase perfeita, mas tinha também suas idiossincrasias, como já foi visto em algumas situações, desde a chegada do Gatão e de Karoll aquele reino escondido.
    O casal de filhotes reais, tomava seu desjejum. Como de costume tinham acordado bem cedo. Karoll se achava em um aposento próximo, preparando uma nova rodada de brincadeiras para aquele dia. A arara era muito imaginativa e de todas as babás que os filhotes já tiveram era a melhor! Logo o casalzinho se juntou à alegre e paciente ave! Brincaram o dia todo, só parando para fazer as refeições e tirar uma sesta nas horas mais quentes. No fim do dia, a rainha apareceu e ficou deliciada com o grau de intimidade que suas crias tinham com a nova ama-seca. Com a entrada da soberana no recinto, todos os serviçais se curvaram, Karoll, inclusive. Com um gesto de afabilidade, a potentada dispensou as formalidades de praxe e tal qual uma mãe comum abraçou com carinho seus amados infantinos que sequiosos correram para os braços da mãe que pouco viam, devido aos afazeres do cargo que ocupava. Sorrindo, a soberana disse que o rei viria amanhã cedo ter com os filhotes, ainda que fosse por pouco tempo. Após a saída da rainha, as brincadeiras continuaram do ponto onde tinham parado. Apesar da alegria e descontração, Karoll não podia deixar de pensar no seu amigo Gatão. Soubera que ele estava isolado e que estava passando por rituais purificadores. O dia fatal se aproximava! Não para ela, mas para o grande gato! Soubera que morrendo ele, seu destino era viver no Reino Jaguar até o fim de seus dias. Teria segurança, proteção e o carinho do casalzinho real! Mas a que preço! Preferiria fugir dali, ao lado de um Zé Gatão vivo! Esta incerteza, este temor eram as únicas coisas que a entristeciam em meio aquele feliz devaneio que ora experimentava.
     Aposentos reais. O rei e sua esposa conversavam. A noite caía. Os archotes nas paredes ardiam mansamente, trazendo uma luz fugidia ao ambiente. A rainha foi a primeira a iniciar o colóquio:
– Sinto a ti pensativo estes dias, esposo meu…!
– De fato, real esposa! Muito pensado tenho eu no Enviado dos deuses! No felino cinzento que de longe veio.
– Ser pitoresco…!
– Mais do que isto! Um grande guerreiro, um animal íntegro! Talvez o amigo e aliado que falta a mim e a ti! Não seria subserviente como todo mundo, mas um quase igual!
– O fato de não ser nobre e filho direto dos deuses não diminuem o cinzento perante os olhos meus! Não viste como a deusa serpente por ele se interessou! Excluindo a nós de parte do ritual sagrado em espírito!
– Tens razão, minha rainha! Se pudesse eu, o liberaria do sacrifício e convidaria o nobre guerreiro a viver entre nós, coberto de altas honrarias!
– Também eu o apreciaria, mas não podes contrariar o Destino!
– Bem o sei, minha dama e pela primeira vez, o lamento!
    Enquanto falavam, alheio a este diálogo, o Gatão terminava de ler o último códice entre maravilhado e intrigado com aquela Cultura, tão velha e ainda assim pujante! O que os estudiosos e arqueólogos do seu mundo dito civilizado, não dariam para estar ali, no seu lugar!
    Fora do palácio, no límpido céu noturno ergueu-se uma maravilhosa lua cheia amarelada que a medida que subia no firmamento estrelado, assumia uma tonalidade prateada, derramando sua luz fantasmagórica sobre a cidade santuário escondida na jângal.

Mais um capítulo se encerra. O DESTINO e a MORTE estendem cada vez mais suas mãos gélidas e pútridas em direção a Zé Gatão! A Parte 8 vem aí!


1 Derivada do cacau. Bebida amarga chamada xocoatl, geralmente temperada com baunilha pimenta É a origem conhecida do chocolate.
2 Conjunto de doutrinas, princípios (religiosos, míticos ou científicos) que se ocupa em explicar a origem, o princípio do universo de acordo com determinada Cultura.
3 Conjunto de placas feitas de madeira, articulado por dobradiças, constituindo uma espécie de livro.

A SAUDADE É MAIS PRESENTE QUE NUNCA

   No momento que escrevo essas palavras são por volta das 21h do dia 21 de abril. Hoje fazem três anos que o Gil partiu, adensando as sombr...