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terça-feira, 23 de junho de 2020

INFERNO VERDE PARTE 4 ( Um conto do universo Zé Gatão escrito por Luca Fiuza e ilustrado por Eduardo Schloesser).

Zé Gatão:

INFERNO VERDE.
01/03 a 15/04/20.
Parte 4:

      Em uma manhã nublada e abafada chegou às portas do grande templo de pedra um destacamento de fêmeas de jaguar armadas até os dentes. Os prisioneiros foram entregues. Não houve despedidas. Ao menos, Zé Gatão e Karoll não foram manietados. Silenciosamente, o grupo se internou na selva, seguindo o longo caminho para o Reino Jaguar.

1o Dia:
     A extenuante marcha durou a manhã inteira. Neste meio tempo, o sol devassou as nuvens escuras e densas. Uma luminosidade penumbrosa se imiscuiu entre as árvores, tonando o panorama em volta um pouco menos sombrio. O calor aumentou sobremaneira e os caminhantes sentiram o suor manando pelos poros e empapando as vestes. As guerreiras pintalgadas envergavam trajes curtos que consistiam em um saiote e um corpete atravessado no ombro esquerdo que terminava na altura dos seios, deixando à mostra seus ventres de carnes firmes. Roupagens leves, de um verde berrante. Nas cintas, pendiam espadas curtas. Portavam lanças afiadas e preso as costas um escudo metálico de formato oval. Nos pulsos braçadeiras de ouro puro. Karoll usava um top e um tipo de sunga, ambos de cor amarelo-ouro que contrastavam fortemente com a cor vermelha de seu corpo e de suas penas. Zé Gatão envergava uma calça marrom, blusa branca já bastante encardida de mangas curtas e calçava botas pretas grossas, próprias para se deslocar no mato.
   O sol estava no zênite, quando um barulho alto de galhos e ramagem se quebrando superou os ruídos naturais da hiléia. A chefe da pequena hoste de combatentes recomendou silêncio e imobilidade totais. As belicosas fêmeas apertaram com firmeza o cabo de suas lanças e a líder sussurrou para seus cativos que os matariam se exprimissem um único som! O ruído foi aumentando! Um ser avantajado e pesado se aproximava.
     Mais um forte estalido, de galhos se partindo se ouviu. Então surgiu uma resfolegante anta fêmea. Corpo coberto por uma bata de fibras vegetais que mal cobria a imensidão de sua gordura. Seu instinto e seu faro apurado avisaram-na que havia outros seres em seu caminho, mas não havia para onde ir na densidade da mata, senão em frente. Portanto, não se espantou muito ao deparar-se com o contingente de pintadas e a arara-vermelha. Surpreendeu-se apenas com o estranho felino acinzentado que nunca vira antes naquelas terras. Não teve tempo de refletir! O olhar faminto rebrilhando nos olhos das jaguares acendeu em seu cérebro o sinal de perigo! Aquelas felinas pintadas eram mortais inimigas de todas as antas! Um terror insano tomou seu espírito, mas antes que pudesse pensar em retroceder, já se achava cercada pelas feras! A jovem anta encarou-as aterrorizada! Um bufo desesperado escapou-lhe da garganta! Em alucinada súplica, clamou:
– Não! Por favor, poupai vós minha vida! Meus filhotinhos me esperam! O que será deles, se…?!
– Cala-te! Serás nossa refeição, pois! Não há como evadir-te! Guarda pra ti teus lamentos! Atacai, minhas guerreiras! Sem piedade! - Urrou a líder em um assomo de fúria! Impiedosa e brutalmente, as felinas enfurecidas se precipitaram sobre sua ululante presa, massacrando-a! Seus bramidos de dor, sufocados pelos aterradores rugidos de suas carnícifes! Ao fim de todo aquele horror, seguiram viagem, após o desmembramento da anta, levando suas melhores partes que seriam preparadas aquela noite. Zé Gatão e Karoll assistiram a tudo silenciosos. Era a Lei do mais forte! Não que Zé Gatão aprovasse aquela chacina, mas nada podia ter feito para impedi-la!
    
Por horas a fio, o grupo caminhou como sombras entre as sombras da selva luxuriante. Choveu copiosamente durante o percurso, o que não deteve a marcha.
     Somente no fim da tarde, a líder guerreira resolveu parar junto a uma pequena cascata para passarem a noite que se aproximava. Uma enorme e rústica tenda de folhas e galhos foi montada. A chuva tinha passado, mas assim que o sol sumiu no horizonte, novo temporal desabou.
    Felizmente, todo mundo estava protegido e seco no interior daquela habitação provisória. As partes da anta foram assadas em uma fogueira e devoradas até os ossos, ferozmente pelas fêmeas de jaguar. Zé Gatão recusou-se a comer daquela carne e junto com Karoll contentou-se com as suculentas e nutritivas frutas que vicejavam em toda parte.
    A líder determinou turnos de guarda e ordenou que a chamassem para o último turno antes da aurora. O felino cinzento namorou a ideia de tentar escapar em algum momento da madrugada, mas desistiu, ao considerar que seria um gesto inútil pelas razões que já havia antes discutido com Karoll. Além disso, estava chovendo a cântaros. Era melhor repousar. Conservar as forças. Amanhã seria um novo dia e então quem sabe…?

2o Dia:
   O dia raiou relativamente fresco. Nuvens pesadas podiam ser vistas pairando sobre a cascata pelas nesgas do céu que se podia entrever entre a copa das árvores gigantescas, as quais criavam um portentoso cenário de vegetação exuberante e esmeraldina naquele rude ambiente. O som intenso da cascata, a cair por séculos sem fim de seu cimo até misturar-se às cristalinas águas do rio era uma bela canção a oferecer um falso sentimento de idílio aos incautos dos inúmeros perigos que poderiam surgir de uma hora para outra naquele aparente paraíso terrestre. Devaneio utópico para muitos civilizados que poderiam vir a perecer tragados pela dura realidade daquele mundo de espantos! Não era o caso de Zé Gatão, menos ainda dos quem com ele estavam! Filhos da selva, ali nascidos e criados. Por certo, terminariam suas existências de maneira violenta nos muitos tipos de morte que se lhes ofereceria a desalmada jângal! O felino cinza, por sua vez, era um sobrevivente! Mais do que nunca, o lado selvagem de sua herança genética estava sendo um diferencial! Se fosse apenas um ser civilizado, já estaria morto! Sem armas e sem recursos tecnológicos não duraria um dia naquele ambiente insano, destituído de qualquer uma das referências padronizadas de onde havia vindo. A pobre Karoll era um exemplo vivo do mal que a Civilização faz para os moradores das matas! Perdera parte de suas capacidades de funcionar adequadamente e só estava ainda respirando por pura sorte!

    Após uma ligeira refeição matinal, o inusitado bando se preparou para deixar o acampamento e prosseguir a caminhada. Ao andar uns poucos metros adiante, sentiram um odor intenso, picante, o qual adentrou pelas suas narinas sensíveis, fazendo o grupo estacar! Logo, a criatura que exalava aquele olor pungente deu-se a conhecer, elevando-se da vegetação cerrada, diante dos viajantes, uma imensa taturana de fogo eriçou as cerdas negras e emitiu um pavoroso guincho! O ser medonho coleou, pronto a abater-se sobre suas pretensas vítimas! Era um inseto que comia folhas, mas não se furtava de comer carne! Conhecido por ser um caçador feroz era considerado um dos maiores flagelos, dos muitos a infestar aquelas plagas! Caso alguma de suas cerdas encostasse no corpo de outro ente, a queimadura seria tal qual contato com um ferro em brasa, podendo até ser fatal!


   As guerreiras jaguares sacaram de suas agudas espadas e empunharam à frente seus escudos! Zé Gatão manejou seu nodoso cajado que felizmente não lhe havia sido tirado! Avançaram os felinos, deixando que Karoll ficasse para trás, encostada a uma frondosa árvore! Muda! A tremer, aterrada! A batalha foi algo inominável! Agilidade felídea contra a pura brutalidade primal! A taturana investia furiosamente, tentando agarrar seus algozes com suas mandíbulas destruidoras ou atingir a pele destes com as enormes cerdas urticantes! Em vão! Zé Gatão e as fêmeas de jaguar evitavam os ataques e golpeavam de volta! As lâminas cortantes das espadas causando estragos sangrentos naquele imenso corpo, trêmulo pela dor que o acometia, em razão dos profundos ferimentos, aumentados pelas violentíssimas pancadas do cajado do felino acinzentado!


   Em meio à luta, a líder das guerreiras matizadas escorregou e uma das terríveis cerdas resvalou em sua perna direita! A infeliz soltou um lamentoso rugido, caindo de lado, tornando-se vulnerável ao ataque de sua titânica agressora! Como um relâmpago, Zé Gatão largou seu cajado e agarrou o cabo da espada que escapara das mãos crispadas da felina. Em um movimento brusco e ascendente, arremeteu contra o corpo da taturana, desferindo um profundo golpe que arrancou sangue do desafortunado inseto! Sangue grosso, de um verde-escuro, banhou o corpo do felino! Contudo, este não parou de golpear, abrindo novas feridas naquela carne convulsa! As negras cerdas fremindo violentamente! Da goela escancarada da criatura saía junto com um lancinante bramido, uma nojenta baba amarelada, enquanto sua cabeçorra oscilava de um lado para o outro em movimentos descoordenados! Imerso em seu sofrimento, o ser colossal permitiu que Zé Gatão fosse resgatar a líder tombada, ao que parecia, inconsciente. Tomou-a rapidamente nos braços e se afastou da refrega, precipitando-se para junto de onde estava Karoll, ainda mesmerizada pelos acontecimentos! Resmungou entre dentes: - Cuide dela! Em seguida, retornou ao combate. Mesmo seriamente ferida, a taturana ainda era mortal! Conseguiu pinçar uma das guerreiras entre suas ferozes mandíbulas e seccioná-la! Cada metade da infeliz caiu para um lado! Em desespero, o felino cinzento tomou de uma das lanças caídas e com toda a força de seu braço a arremessou contra a cabeça da enorme fera! A aguda lâmina atravessou o horrível cocuruto indo sair do outro lado junto com uma chuva de sangue verde e possivelmente partes do cérebro daquela coisa! Indescritível foi a agonia da besta-fera!

   O corpo titânico deu um corcoveio brutal e sem uma única vocalização desabou ruidosamente ao solo! Permaneceu por algum tempo estrebuchando de maneira espasmódica, descompassada, pois já não havia sistema nervoso central para o comandar, uma vez que aquele cérebro já estava morto!

    Extenuado, Zé Gatão e as guerreiras pintadas deixaram-se cair ao chão para por instantes repousar da batalha animalesca que tinham empreendido para sobreviver! Porém, um grito de Karoll fez com que erguessem a cabeça e encarassem a ave carmim com surpresa: - Temos que sair agora! Logo chegarão as formigas carniceiras, atraídas pelo cheiro de sangue! Nos devorarão junto com a taturana! Pelos deuses! Temos de ir!

    Não houve o que discutir! Uma padiola tosca foi rapidamente feita para acomodar a líder desacordada! Partiram sem tardança, se internando na mata fechada. Logo, estavam a salvo em uma clareira e de lá ouviram à distância primeiro o som de um tropel e depois o horrível ruído do frenesi alimentar das formigas carniceiras. Eram figuras bizarras. Usavam armaduras metálicas. Atarracadas, de tonalidade vermelho ferrosa! Corpos compactos, longas antenas, seis patas, abdome proeminente, antenas delgadas e mandíbulas cortantes como serras! Durou pouco aquela selvagem glutonaria!

    Em pouquíssimo tempo, boa parte da taturana de fogo foi consumida! O que sobrou foi conduzido por industriosas operárias ao formigueiro distante! As cerdas negras também foram levadas para algum uso desconhecido. Só quando apenas os murmúrios costumeiros da brenha imperavam, os felinos e a arara respiraram aliviados.

    Naquele mesmo local, foi armada uma grande tenda protetora, guardada por uma chusma de guardas ferozes! A perna queimada da líder foi diligentemente tratada por Karoll com a ajuda de duas guerreiras mosqueadas. Um chá de ervas curativas foi cuidadosamente ministrado de hora em hora e a doente permaneceu mergulhada em uma semiconsciência. Ao cair da tarde, ela despertou e pediu a presença de Zé Gatão e de Karoll junto ao seu leito improvisado. Neste ínterim, uma violenta tempestade caía, entremeada de relâmpagos e trovões aterradores!

    Diante da líder, felino e arara ouviram as seguintes palavras: - Obrigada a vós! Por tuas ações é que ainda vivo! Tu, ó cinzento és de fato, um poderoso e galante guerreiro! Por nossos costumes, quem tomba em combate deixado é à própria sorte. Talvez minhas guerreiras tentassem resgatar a mim, devido à posição de comando que exerço, mas não é o usual! Tu, um estranho de outras terras arriscaste a vida para salvar a mim! Jamais o esquecerei! E agradeço eu a ti também bela ave! Tu me trataste e curaste as dores! Por vosso olhar, percebo a muda pergunta! Não…! Embora lamente eu, não tenho o poder de vos libertar! Nossa deusa que tudo vê e tudo sabe, haveria de vingativamente punir-nos com a MORTE!

    Zé Gatão e a arara ficaram em silêncio. Seria inútil dizer qualquer coisa. Ao menos, a partir daquele momento não seriam mais tratados como prisioneiros. Talvez aquele acontecido pesasse ao seu favor e ao de Karoll quando adentrassem no estranho Reino Jaguar! Uma solução haveria de ter e Zé Gatão não desistiria de a encontrar!

    Três longos dias e noites passaram acampados naquele local, até que a líder sarapintada estivesse em condições de retomar a marcha. Neste período, Zé Gatão aprendeu mais um pouco sobre a Cultura daquelas criaturas felídeas. Para os moldes civilizados podiam ser consideradas inocentes, quase infantis em um certo modo. Não sabiam falsear, acreditavam na palavra dada! Eram poderosas no amor e no ódio! Sem a nebulosidade e a sutilidade dos citadinos do mundo do felino cinzento. Eram brutais! Mas não eram seres perversos. Mesmo os seus sanguinolentos ritos sacrificiais tinham uma razão de ser dentro do seu modo todo particular de perceber o mundo à sua volta, ainda que para um dito esclarecido aqueles cerimoniais parecessem inaceitavelmente bestiais! O nome da líder era Izayana. Era vivaz, inteligente e uma lutadora indomável. Prometeu que dentro do possível, falaria em favor da vida do felino gris. A felina perguntou o que retinha Karoll ali. Não seria sacrificada, talvez fosse tratada como um animal de estimação por algum nobre que por ela se interessasse. Disse a gata pintada que se desejasse, a ave poderia partir. Karoll deu a clássica resposta que já tinha virado um mantra: – “Aonde o Gatão for, eu irei!” - Todo mundo sorriu, menos o Gatão.

5o Dia:
     Amanheceu incrivelmente ensolarado e terrivelmente quente! A caminhada foi dura! A tarde já ia avançada quando fizeram pausa a poucos metros de uma velha ponte de madeira e cipós que cruzava um imenso precipício do qual não se via o fundo, envolto em densa bruma. Izayana achou melhor que passassem a noite naquele ponto. O sol estava prestes a se deitar e seria perigoso tentar atravessar a ponte sob as sombras da noite. Zé Gatão concordou. Estavam todos muito cansados e famintos. Um repouso noturno seria de bom tom. A grande tenda de galhos e folhas foi construída, a fogueira acesa com a gordura da anta que ainda havia sobrado. A contragosto, as felinas mosqueadas tiveram que se contentar com as suculentas e variadas frutas que vicejavam em torno. O Gatão e Karoll comeram aquelas iguarias com deleite! Além de nutritivas eram deliciosas ao paladar!

     No lusco-fusco do fim do dia, um som potente de muitas passadas se fez ouvir junto com o forte matraquear de vozes assombrosas em tom chiado! Alarmados, Zé Gatão, Izayana e suas guerreiras saíram da rudimentar tenda, onde se abrigavam. Da profusa folhagem, assomou um pequeno enxame de formigas escuras! Eram avantajadas e não usavam nenhum tipo de vestimenta a cobrir-lhes os corpos! Pareciam vespas, em seu formato corporal! Pela primeira vez, o felino acabrunhado sentiu temor na voz da líder, quando esta bradou:
– Tec-tecs! Cuidado, Gatão! A picada destes insetos causa uma dor intolerável! Peguem as armas! Depressa!

    Apesar do ambiente já umbroso, a aguçada vista dos felinos conseguia divisar suas inimigas que se reuniam ameaçadoramente em posição de ataque! A pobre Karoll ficou escondida na tenda, contendo-se a custo, para não lançar aos ares agudos gritos de pavor! Uma das guerreiras pintadas ficou com ela, no caso de alguma formiga penetrar na tenda por outra via que não a entrada.

    O fragor do embate poderia ser ouvido à distância! Munidos de espada e
escudo posto à frente, Zé Gatão, Izayana e suas belicosas companheiras se lançaram furiosamente contra as terríveis formigas, as quais evidentemente, não esperavam tal reação de suas pretensas vítimas, pois todas as criaturas da selva as temiam! Com golpes certeiros de espada, os felidae iam abrindo claros nas hostes dos artrópodes! Quando estes investiam tentando picar a carne de seus verdugos, encontravam o duro em frio metal dos escudos que arrebentavam suas fortes mandíbulas, provocando uma dor tão atroz que os deixavam expostos às destrutivas e cortantes lâminas das espadas, as quais desciam inclementes, decepando cabeças e membros como o alfanje que sega o trigo pronto para a colheita!

    As formigas foram dizimadas completamente! De repente, um grito rouco vindo da tenda tosca chamou a atenção de Zé Gatão! Karoll estava em perigo! Como um tornado, o felino acinzentado retorna à habitação transitória! Divisa ao adentrar, a protetora da arara tombada ao solo, a estrebuchar! O corpo tiritante cheio de calombos protuberantes, despontando como monstruosas erupções em sua pele manchada! A enorme formiga já estava quase sobre Karoll! A ave muda! Encolhida, conformada talvez com seu destino aziago! A gélida lâmina da espada de Zé Gatão atravessou a carapaça do inseto na altura das costas, saindo do outro lado, junto com um fluido pardacento! A mandíbula deste, se escancarou e então um horroroso chiado dali saiu, misturado a uma incompreensível fala que logo silenciou! Aquele nojento cadáver desabou sobre Karoll. Esta soltou um grasnido sufocado, debatendo-se inutilmente! O Gatão a ajudou a se desvencilhar da abjeta carcaça e ela o abraçou chorando convulsivamente! A escuridão já tinha descido sobre a mata. Como medida de segurança, em volta da tenda, pequenas cavidades foram escavadas e ali derramada uma mistura líquida inflamável composta por ervas aromáticas e sumo de frutas. A mesma ficaria queimando a noite inteira, produzindo uma fumaça azulada, em verdade um forte repelente, o qual manteria afastados dali mosquitos, aranhas, formigas e outros insetos perigosos, muito abundantes naquelas paragens.

6o Dia:
    Pouco antes do alvorecer, a felina picada pela formiga expirou sob os mais excruciantes sofrimentos físicos! Arrasador e sem cura era o veneno tóxico das formigas Tec-tecs!

     A morta foi cremada para que seus restos mortais não servissem de pasto às feras da selva. Uma forte cerração cobria a floresta e um friozinho incomum se imiscuía nos ossos dos vivos naquele lúgubre despontar de dia. Sem olhar para trás a reduzida tropa se dirigiu em direção a ponte meio oculta pela forte neblina e se pôs a atravessá-la cuidadosamente. A névoa aos poucos ia se dissipando, permanecendo abaixo da ponte, escondendo o distante fundo do assustador precipício. A precária estrutura oscilava a cada passo! Fracos raios de sol surgiam timidamente entre a grossa capa de nuvens cinéreas. Quando o grupo estava próximo ao fim da ponte, após longos minutos, um forte sibilo foi ouvido e uma das guerreiras pintadas que ia mais à frente tombou de borco com um gemido. Em sua queda acabou caindo da ponte no vazio e seu penetrante grito de morte pode ser ouvido, enquanto seu corpo desaparecia na neblina abaixo. Os demais se abaixaram, erguendo seus escudos em prontidão para enfrentar a nova e desconhecida ameça! Vozes coaxantes se elevaram ao ar e da fímbria da mata, e daquele ponto saiu um grupo de pererecas de cores brilhantes. Eram todas fêmeas. Traziam no rosto uma expressão zombeteira e nas mãos zarabatanas prontas para lançarem dardos envenenados, embebidos nas secreções peçonhentas de seus próprios corpos. Trajavam uma espécie de malha de tecido vegetal multicolorida.

   A fêmea que comandava as outras tinha a pele viscosa de uma tonalidade preta na cabeça e nos membros, o restante do corpo era amarelo-ouro. Olhos enormes e vidrados. O restante da súcia variava entre o vermelho, o azul e o verde. A chefe anfíbia avisou que cortariam as amarras da ponte, caso o grupo de felinos e a arara não se rendessem.

     Tendo abandonado o armamento, a tropa terminou de cruzar a ponte, ficando a mercê daquela corja que a pegara de surpresa. A chefe das jias soltou uma casquinada escarninha, dizendo: - Que grande achado! Haveremos de ganhar grande recompensa vendendo-vos como escravos aos gatos rajados dos Reinos Pantaneiros do Sul!

– Por acaso sabeis quem somos nós, ó repelentes pererecas?! - Redarguiu altivamente a líder jaguar. O irritante riso das rainetas ecoou nas cercanias, seguido pela pronta resposta em tom debochado da prócer:
– O sabemos! Por isto é que iremos vos mercadejar! Não tentais reagir, pois! Matá-los-emos sem piedade! Vossos cadáveres hão de valer menos, mas isto pouco nos importa!

    Percebendo a seriedade daquelas palavras, os felinos obedeceram silentes, as ordens de suas captoras. A chefe das pererecas teve um interesse especial em Karoll! Podia ser vendida como animal de estimação ou como fina iguaria! Suas belas penas serviriam como adorno de lanças, penachos de flechas e de trajes cerimoniais! As apreensoras acharam melhor manter a amedrontada psitaciforme com vida. Desta forma, seus ganhos seriam maiores. Dando a chefe anfíbia, um sinal através de um movimento de cabeça, se puseram em movimento. Felinos, arara e captoras se internaram na mataria escurecida.

   
Se deslocaram por longas horas em meio à ramagem fechada. O calor deixando o ambiente pesado e opressivo. Todo mundo se sentia à beira do esgotamento. Esta sensação de extrema fraqueza era bem mais perceptível nas pererecas. Anfíbios que eram, precisavam de ambientes mais úmidos, próximos aos cursos d’água e das lagoas para sobreviver. A provisão de líquido trazida por elas, logo se acabou. O sofrimento era inominável! Uma delas caiu ao solo, a bocarra aberta, a papada arfante e os grandes olhos esbugalhados, sentindo-se cozinhar por dentro. Uma a uma, elas desabaram, exauridas para não mais se reerguerem, definhando em uma morte muda, tão somente por causa da avidez.

     Ave e felinos antes cativos estavam livres! Resolveram fazer uma parada nas imediações, enquanto algumas felinas voltavam para recuperar as armas! Horas mais tarde, retomaram a rota original para o ainda distante Reino dos Jaguares. As pererecas ficariam ali a apodrecer ao ar livre, já que eram intragáveis. Em seu tempo devido, carnes e ossos se tornariam parte da terra, provando que na Natureza não havia lugar para desperdício! O felino sorumbático pensava com seus botões. Naquele ambiente, Morte e Vida caminhavam lado a lado. As necessidades eram prementes! O pensamento dos seres era imediatista! Entre os mais simples: comer, subsistir mais um dia e procriar! Em Culturas mais elaboradas, além do básico, se pensava em escravizar outras criaturas, as tratando como objetos de trabalho, parte de ritos religiosos, ou como mercadoria! No fundo, aquela inocência quase idílica que imaginara existir era algo aparente, sendo aquele mundo intocado pela concupiscência civilizada, tão perverso quanto a vida na selva de concreto que abandonara.

   Ao cair da noite, a tropa já estava recolhida no interior da tenda, construída rápida e magistralmente pelas guerreiras de Izayana. A refeição da noite desta vez foi um símio de tamanho médio, capturado no fim daquela tarde. Foi assado em fogo lento. Como era de se esperar, Zé Gatão e Karoll não se alimentaram daquela “iguaria,” ficando satisfeitos com as costumeiras frutas que nutriam-nos bem. Curiosa, Izayana indagou:

– Você não come carne de outros animais, Gatão?
– Em minha Sociedade é contra a lei comer carne de outros animais. Lá há uma imensa quantidade e variedade de alimentos. Temos até bifes! Não é preciso matar para comer. - Izayana olhou-o, incrédula, pensando. Que mundo espantoso deveria ser aquele! Ao mesmo tempo, o felino pensou na multidão de animais mal alimentados que infestavam as grandes megalópoles comendo os restos do lixo, ou as migalhas que ocasionalmente caíam das mesas dos ricos!

o Dia:
   O grupo partiu pouco antes do sol despontar no horizonte. Os últimos sons da vida noturna se faziam ouvir. Logo foram substituídos pelos belos trinados das aves canoras, saudando o dia que se anunciava. Estava abafado e quente como uma estufa! Depois de jornadearem por cerca de duas horas, resolveu-se fazer uma pausa à beira de um rio que segundo Karoll, era mais um tributário do grande rio, destino primário de Zé Gatão para tentar sair daquele Inferno Verde. Mas, as atuais circunstâncias, demonstravam que ele poderia ficar ali para sempre, morto! Sua carcaça apodrecendo em uma cova rasa, aos pés de um sinistro teocali perdido na selva! Seu coração arrancado do peito, ainda pulsante sendo entregue à sanha de deuses animalescos! Não! Sua mente se revoltou ante a esta possibilidade! Se tinha que morrer, antes lutaria e levaria muitos com ele para o túmulo!
     Alguns pássaros multicoloridos se aproximaram do grupo, cumprimentando-o educadamente. Zé Gatão conseguia entendê-los, graças ao efeito da magia nele aplicada pelo sacerdote dos Panteras Negras. Eram pequenas aves delicadas em aparência e gestos. Usavam uma vestimenta diáfana e meio transparente. Pousaram nos galhos das árvores próximas, olhando com muita curiosidade, o felino cinza, estranho aquelas paragens. Com uma leve curvatura de cabeça, à guisa de saudação, perguntaram em uníssono em um tom de voz mavioso e cristalino:
– O que fazem vós tão longe de vosso reino, ó poderosas pintadas? - Izayana respondeu, mansamente:
– Ó canoros habitantes da selva nossa, fomos buscar uma nova oferenda à nossa deusa maior! Um grande guerreiro de terras distantes que com o verter de seu sangue há de contentar a Criadora do Universo que em contrapartida fará aumentar a fertilidade de nossas colheitas e a das fêmeas reprodutoras do Reino Jaguar! - Os pássaros assentiram silenciosamente. Então, pediram licença, e alçaram voo, enchendo o ar com seu canto de extrema beleza, destoando com a rudeza agressiva daquelas matas sem fim!
Izayana deu ordem para continuar a caminhada, Dizendo: - No dia seguinte chegaremos ao Grande Reino!

    O dia correu sem novidades. Uma chuva breve caiu no meio da tarde, mas não foi necessário interromper a jornada. No fim do dia, resolveram acampar não muito distante de um dos tantos afluentes do rio principal que serpenteavam pela verde hiléia.

    A penumbra do crepúsculo já se imiscuía, quando algumas guerreiras foram ao rio pegar água. Zé Gatão as acompanhava. Tanto ele, quanto as felinas estavam com os instintos em alerta! A proximidade da noite poderia trazer embuçados nas trevas perigos inimagináveis! Assim que uma das guerreiras agachou-se junto à água para encher os cantis, uma gigantesca sombra elevou-se e agarrou-lhe o braço, tentando puxá-la para as profundezas! A fêmea gritou em desespero! A força do agressor era titânica! Parecia que uma tenaz havia colhido o braço da infeliz soldada! Zé Gatão e as demais felídeas, tomaram um choque, ao ver a criatura que surgira assim tão repentinamente do flúmen umbroso! Era uma barata d’água colossal! Zé Gatão já tinha combatido as mortais baratas do deserto! No entanto, perto daquele monstrengo, as mesmas eram nanicas e insignificantes! Em um átimo, felino e suas companheiras de luta se lançaram contra o inseto! As guerreiras de espada em punho, o grande gato munido de seu rugoso e pesado cajado! Os golpes de espada não conseguiram penetrar naquele impressionante exoesqueleto, semelhante a uma armadura! Mas as pancadas do cajado de Zé Gatão surtiram efeito diferente!


    Ao sentir dolorosamente, a primeira paulada em sua cabeçorra, aquela coisa imediatamente desviou a atenção de sua presa para o esquisito mamífero que se atrevera a desafiar um poder supostamente maior que o dele! Largou da gata inerme que prontamente desapareceu sob a superfície aquosa e soltando um ronco grotesco, arremeteu contra o gato impetuoso, o qual não teve como desviar-se, estando mergulhado até a cintura na água barrenta! Por puro reflexo, interpôs seu cajado entre as musculosas pinças bucais, impedindo que as mesmas se fechassem sobre si! Ao mesmo tempo empurrou para trás com toda força aquele ser de pesadelo! A criatura patinou na água, sem conseguir firmar-se! Incrível era a força muscular de Zé Gatão! O poderoso impulso imprimido pelo felino gris fez com que a barata se elevasse, batendo ruidosamente com as costas na água! Furiosamente, o Gatão se precipitou sobre ela espancando seu ventre vulnerável repetidamente com seu sólido cajado, no mesmo instante, ao lado dele estavam as corajosas guerreiras felinas, enterrando a lâmina afiada de suas espadas naquela trepidante carne macia! Os sons de agonia proferidos pelo inseto eram surreais! Sem dó, o cajado desceu e as espadas perfuraram! Na água revolta, um sangue esbranquiçado e caudaloso escapava das feridas abertas naquele corpo ciclópico! Somente quando a vida se extinguiu do corpanzil superdimensionado é que Zé Gatão e as felinas pintalgadas cessaram seu ataque insano! Exaustos saíram das águas borbulhantes e se deixaram cair na pequena praia! O alarido da luta atraíra Izayana, as outras guerreiras e Karoll! A Arara quase morreu de susto ao ver o cadáver da barata descendo o rio, levado pela suave correnteza!

    Cheia de aflição, A ave encarnada correu para cuidar de Zé Gatão, lamentando a altos brados, curvada sobre ele, procurando ver se ele estava ferido, ou com ossos quebrados! O felino estava inteiro, porém, muito esgotado para se levantar do solo. Ergueu a cabeça e olhou para a amiga. Num sussurro falou que estava tudo bem. Os combatentes foram levados por Karoll e as demais guerreiras, comandadas por Izayana para a tenda, onde foram cuidados e alimentados. Desta vez, o felino cinza mergulhou em um sono pesado. Felizmente, o resto da noite transcorreu sem novos incidentes.

8o Dia:
    O bando saiu do acampamento ao amanhecer, debaixo de uma chuva fina e ininterrupta. O mau tempo acentuava a obscuridade da mata, dando uma aparência crepuscular ao ambiente. A previsão de chegada à Cidade Santuário do Reino Jaguar seria dali a dois dias de caminhada. A volta está sendo mais longa que a vinda. Pensou a líder das guerreiras, contrafeita.

    Como quase sempre, o calor imenso era o maior fator de sofrimento para quem caminhava por aquela selva densa, onde o ar úmido e pesado, provocava uma forte transpiração. No entanto, tinham água suficiente para amenizar o sofrimento. No meio da tarde, a chuva já havia cessado. Após pausa para um almoço frugal, o grupo estava passando junto a um extenso bananal, quando uma das guerreiras foi erguida violentamente do solo, desaparecendo em meio à profusa folhagem. Seu curto urro alucinante pode ser ouvido, enquanto algo grande se movia nas árvores, acima. Nada puderam fazer, enquanto a criatura se afastava com a sua presa. Izayana sussurrou que o melhor a fazer era se evadirem velozmente dali! A guerreira já estava perdida! Tinha sido atacada por uma Armadeira, uma aranha perigosíssima, dona de um veneno de alta letalidade! Com certeza, a fera se contentaria com o que já tinha capturado, mas era melhor não estar ali, se resolvesse voltar! Portanto, seguiram sem olhar para trás.

   A tarde ia avançada, quando do meio da macega saiu um ouriço! Corpo compacto, inteiriço, parrudo, estatura atarracada. Usava somente uma tanga adornada de pedrinhas coloridas na cintura. Ao ver o grupo, seus espinhos agudos se eriçaram e seus olhos emitiram um cintilar bravio, enquanto seus fortes dentes se entrechocavam, revelando sua ira! Zé Gatão quando o viu, instantaneamente se recordou do porco espinho que enfrentara há anos em uma estrada deserta, em que o pulha e seu comparsa, um alentado castor o emboscaram. Os espinhos do ouriço eram mais curtos do que os de seu congênere, mas isto não os tornavam menos perigosos! O Gatão levantou o escudo, investindo sozinho!

    O baixote curvou-se para frente, lançando uma saraivada de espinhos que foram barrados pelo escudo, atrás do qual, o felino se protegia. Em um salto tigrino, o gato grande lançou-se sobre o adversário, batendo com o escudo nas fuças do ouriço com tamanha força, que o impacto arrebentou o nariz e a dentadura do desgraçado! Este mal pode sentir a dor! Brutalmente esmagado contra o solo sob o peso do cinzento! Foi massacrado pelas pancadas do escudo! Seu crânio partido, expeliu parte da massa cinzenta e sua alma se despregou do corpo mortal, indo perder-se no limbo entre o Caos e a Ordem, antes de mergulhar para sempre no abismo da Eternidade! Zé Gatão se levantou sob o olhar maravilhado de Karoll e o de aprovação dispensado por suas companheiras de luta! Nunca viram um felino se mover com tamanha destreza e habilidade em combate! Izayana e Karoll sorriram para ele que se limitou a um leve aceno de cabeça. Na vida era assim! O mais rápido e assertivo sempre sobrevivia e naquele lugar tal fato era verdade, mais do que nunca!

   Em uma pequena elevação, mais adiante do local da recente refrega com o ouriço, o acampamento foi montado um pouco antes do cair da noite. As precauções usuais para afastar os perigosos insetos noturnos foram tomadas. Ainda assim, Izayana estava preocupada. Zé Gatão intrigado, perguntou o motivo. A felina explicou que estavam no território de caça do gigantesco macaco das trevas. Era um monstruoso símio noturno de pele negra. Forte, ágil e ardiloso. Fisicamente, do torpe do felino cinzento. Era eminentemente carnívoro e às vezes canibal, já que os grandes machos, altamente territoriais, podiam às vezes devorar alguns de seus próprios filhotes, ou machos rivais que lhes caíssem nas garras. Qualquer animal que se achasse solitário na brenha ao cair da noite, podia se tornar uma de suas vítimas. O felino apesar de cansado das últimas peripécias, repousaria naquela noite em seu clássico sono leve, pronto para o embate se fosse o caso. Izayana deu ordens severas, no sentido de reforçar os turnos de guarda, asseverando que ela faria o primeiro turno. O Gatão ofereceu-se como voluntário para esta função, mas a pintada preferiu que ele descansasse. Talvez, o grande mono não se atravesse a atacar um grupo armado e preferisse outro tipo de caça. Zé Gatão não se fiou muito nesta possibilidade. Sempre esperava o pior! Recolheu-se apreensivo, mas não deixou que ninguém o percebesse, principalmente sua amiga emplumada, já assustadiça por natureza. Fez com que a mesma se deitasse tranquila para dormir. Pobre Karoll! Talvez fosse melhor que ela o acompanhasse de volta à Civilização. Se voltasse! De fato, a psitaciforme já não tinha mais condições de sobreviver sozinha naquela selva terrível. Durara até então, por pura sorte.

  Alta madrugada. Olhos faiscantes de brilho avermelhado se fixavam na tenda logo abaixo. Uma figura hercúlea, de um poderoso símio pairava silenciosamente sobre o acampamento, oculto pela densa folhagem do arvoredo. Sua tez negra se mesclava com a escuridão reinante. Envergava uma túnica feita de pele de alguns jaguares que havia matado e devorado, tempos atrás. Lentamente, escorregou pelo cipó grosso que o sustinha até o teto da rústica choça. Não havia aragem. Portanto, seu cheiro não podia ser percebido pelas guerreiras que guardavam a tosca habitação. Cautamente, afastou as folhas do teto e se inseriu entre o vão dos galhos que compunham a cobertura daquela habitação transitória. Sua visão aguçada, atentamente explorou a obscuridade do ambiente. Detectou lá dentro, com a ajuda do olfato, um felino de grandes proporções e uma ave. Ambos ressonavam. Era ave que o interessava! Ela seria sua refeição daquela noite. Quem o tentasse impedir, ele simplesmente esmagaria com golpes do pesado tacape que portava às costas. Quase sem ruído, tocou o solo. Pretendia se abater sobre a ave e com uma leve pressão em sua garganta deixá-la inconsciente. Depois se esgueirar dali sem ser visto. Só que o gigantesco mono não contava com o leve sono de Zé Gatão, acordado por um alerta instintivo e pelo som quase inaudível provocado pelo tocar dos pés do símio no chão da tenda. O felino ergueu-se bruscamente e o primata se virou, encarando-o. O bruto sussurrou: - Só quero a ave, felino! Não te interponhas e viverás um dia a mais! - Zé Gatão redarguiu: - Justamente é a esta ave que não permitirei que você faça mal, macaco! Caia fora ou vou te arrebentar a carcaça de tanta porrada!


   O macacal sorriu, exibindo a forte dentadura amarelenta, replicando: - 
Ainda está para nascer criatura que me possa enfrentar, bichano! Vou partir teus ossos com minhas próprias mãos! Nem mereces que te despache com golpes de meu tacape! És por demais insignificante para tal! - O felino cinza exibe um de seus raros sorrisos, dizendo: – Falar é mais fácil do que fazer, pulguento! Chega de falatório e venha apanhar como nunca em sua vida! - O ser simiesco revelou mais frieza do que o Gatão esperava! Em vez de se lançar furiosa e irrefletidamente ao ataque, devido à provocação que recebera, começa a rodear o adversário, procurando uma brecha ou um instante de descuido. Como um raio, o simiano mandou uma patada brutal que atingiu o vazio. Aproveitando o momentâneo desequilíbrio do contendor, Zé Gatão aplicou um murro profundo no plexo solar, o qual fez o avantajado mamífero curvar-se com um ronco sufocado! Karoll acordou e pós-se a taramelar incongruentemente, tomada pelo terror!

   Sua algazarra, acrescida ao ruído do combate, atraiu Izayana e as guerreiras ao interior da tenda. Sem pestanejar, se acercaram do intruso, desembainhando as espadas e erguendo os escudos. Zé Gatão afastou-se para perto de Karoll que saltando da trave onde estava empoleirada, se colocou atrás do felino cinzento, abraçando seu pescoço, tremendo e lamentando sufocadamente. A titânica luta foi seca, brutal! Revelando uma enorme rapidez para seu tamanho, o símio negro retirou da aljava às suas costas o pesado cajado e o brandiu com tal força contra as adversárias mais próximas que em um átimo conseguiu arrancar de suas mãos espadas e escudos e em ato contínuo, arrebentou seus crânios como se quebrasse vasos de porcelana! A única a escapar foi Izayana. Esta saltou para trás e o golpe desferido contra ela não a atingiu. O gigantesco mono ia se lançar sobre a felina quando um chamado irônico o deteve:
– Se esqueceu de mim, feioso? - Era Zé Gatão! Karoll havia soltado o gato gris e colada à parede, entregava-se em um balbucio frenético, a realizar uma desesperada oração a todos os deuses que conhecia O macaco cor de ébano, voltando-se, respondeu com um rugido: - És forte, maldito! Ainda assim, não mereces as carícias de meu tacape! Arrancar-te-ei o coração com as garras e por fim, comê-lo-ei como aperitivo!
– Izayana! Não interfira! Este pilantra é meu! - Ah! Que contenda magnífica! Dois formidáveis lutadores se chocaram com a fúria de trens expressos! Zé Gatão desferiu uma sequência arrasadora de socos na carantonha de seu oponente, seguida de murros pesados no baixo-ventre, depois o afastou com um chute certeiro no meio do peito! A fera caiu e rolou de lado para logo se levantar! Estava ofegante, mas aparentemente disposta a continuar a peleja! Era resistente! O sangue manava de sua boca! O olho direito estava inchado e quase fechado! Atacou com um salto! Aproveitando o impulso, Zé Gatão o lançou por cima da cabeça e ao mesmo tempo, moveu-se de modo a pegá-lo por trás em uma chave de braço. Acuado, o musculoso ser sacudiu-se e incrivelmente conseguiu safar-se! Em um movimento inesperado, pegou do chão seu tacape e agilmente saltou para o telhado da tenda e antes de desaparecer na escuridão, vociferou:
– És um terrível adversário, felino de fora! Feriu-me o corpo e o orgulho! Mas, ainda terei eu, a arara para meu repasto! E tu e teu coração meu prêmio o serão! Esmigalharei teu corpo e ossos até torná-los pó! Sorverei do teu sangue ainda fresco e hei de saborear a sede de tua força1, sentindo em minhas mandíbulas o último pulsar! Estarei contigo em tua jornada até o momento do confronto final! Acautela-te, pois!

   Reunidos no interior do tosco abrigo estavam Zé Gatão, Izayana e uma das guerreiras restantes conversavam em voz baixa. As outras duas estavam lá fora, montando guarda. Karoll estava deitada à direita do Gatão, mergulhada em um sono profundo, induzido por um chá herbáceo preparado pela líder das pintadas. Foi a única maneira de fazer com que a aterrorizada arara repousasse sossegada.
– Então, segundo você, o macaco é totalmente noturno e não se movimenta durante o dia. - Observou o felino cinza, pensativamente. Izayana assentiu e continuou:
– Tais símios têm aversão à luz do sol. Só saem de seus covis após a derradeira luz do poente.
– Então teremos tempo de nos preparar. Pode ocorrer um ataque em massa? - Indagou o grande gato. A felina pintalgada respondeu: - Não. Animais solitários e arredios o são. Procuram as fêmeas na época do acasalamento, apenas. Por conseguinte, assaz egoístas o são e não repartem suas posses nem mesmo com seus iguais.
– Melhor para nós! Mesmo assim, aquele que nos atacou é perigoso! Possui força, resistência e agilidade incomuns! É bastante ardiloso! Foi por pura sorte que o pressenti entrando nesta maloca! O que você sugere para detê-lo?
– Flechas envenenadas! As fabricar podemos e venenos vegetais na selva não faltam! Curare indicado o seria!
– Perfeito! Assim que amanhecer cuidamos de tudo! Acho melhor depois da refeição matinal seguirmos viagem! Antes de anoitecer escolheremos um ponto para armar a emboscada! Concorda? Vamos descansar! Falta pouco para o dia raiar.

9o Dia:
  Após uma leve refeição, o bando partiu, agora bastante reduzido devido à morte de várias guerreiras em combate ao longo daquele penoso trajeto. Acima das frondosas copas das árvores, o sol brilhava em um céu azul sem nuvens. O forte calor dava a impressão de se caminhar dentro de uma estufa! O suor empapava as vestes e escorria profusamente pelas faces dos membros daquele grupo pequeno, mas coeso. Bebiam a água de seus cantis com parcimônia e se conversava o mínimo necessário para guardar as forças. Até o natural palratório de Karoll estava contido, fortemente tomada pelas impressões da noite passada, quando quase caiu vítima do macaco negro que a queria devorar!

   Pouco depois da rápida pausa para o almoço, passaram junto a enormes cupinzeiros que mais pareciam edificações de barro. Neste instante, um enxame feroz destes insetos saiu pelas aberturas superiores e se lançou em perseguição do diminuto bando. Izayana imediatamente bradou: - São cupins brancos! Corramos até aquela clareira adiante. Tais criaturas não suportam o sol! Se lá chegarmos, a vantagem nossa será! - Ninguém discutiu! Com redobrada energia, o grupelho correu na direção indicada pela líder felina! Atrás deles, um som de tropel seguido de gritos inarticulados! Karoll olhou para trás e o que viu fez seu sangue gelar nas veias! Uma horda de cupins brancos, avançava! Seres quase do seu tamanho! Alguns centímetros mais baixos, talvez! Em suas faces inexpressivas, as quelíceras se abrindo e fechando como se estivessem ofegando! Visão ilusória, uma vez que a respiração dos insetos é cutânea!

  Já na fímbria da mata, Zé Gatão sentiu algo se agarrando às suas costas! Era um dos cupins que o havia alcançado. O Gatão manteve o sangue frio! Apressou as pernas e entrou na clareira inundada pela luz forte do sol. O cupim em suas costas deu um grito fino e entrecortado, caindo ao chão em fortes contorções! Cego pela luminosidade intensa, pele sensível abrasada pelos raios candentes do astro-rei! Em agonia, tentou arrastar-se de volta, em busca da sombra salvadora da vegetação que deixara! Zé Gatão não o permitiu! Puxou-o por uma das seis pernas e o manteve ali! Mas de alguma forma, teve pena do sofrimento daquele ente! Apanhou uma pedra e com ela achatou a cabeça do inseto! Terminando com sua aflição. Ergueu a cabeça e olhou em torno! Suas companheiras de viagem estavam salvas, não muito longe dele. Neste ínterim, na borda da mata, a horda de térmites os observava! Em suas faces insípidas, a sombra de um ódio surdo, profundo se denotava, para logo desvanecer-se como águas que se agitam e logo se acalmam. Em silêncio, a hoste desapareceu na folhagem densa. O cadáver do cupim branco ficou jogado na clareira. As formigas carnívoras e outros predadores que surgissem fariam depois, o seu festim!

  A viagem continuou. Ao fim daquela tarde, acamparam próximo a um pequeno curso d’água, no qual, os cantis foram reabastecidos. Izayana, as guerreiras e Zé Gatão organizaram a armadilha. Estavam prontos para o simiesco que poderia atacar naquela noite mesmo. Izayana asseverou que a gulodice do primata o faria surgir o mais breve possível, nas horas escuras que se aproximavam.

   As sombras da noite desceram sobre a selva. O ar estava quente, abafado e parado. Apesar do grande desconforto e da suadeira interminável, tal situação era bastante vantajosa. O cheiro de Zé Gatão e das demais integrantes do grupo não seriam farejadas pelo macaco das trevas à distância! Era também uma noite sem lua e a densidade da escuridão era quase palpável! Não que isto atrapalhasse a aguçada visão noturna que felídeos e símio possuíam. Neste caso, a imobilidade e o silêncio eram preciosos. O tempo passava lentamente. Parecia ser elástico. Os ruídos dos seres notívagos enchiam o ambiente. Em suas posições, o Gatão e as guerreiras esperavam pacientemente.

   Um som de aproximação quase imperceptível alertou o felino taciturno e suas companheiras de jornada! Algo se movia pelas árvores. Postado a um nível mais acima da frondosa árvore cuja galharia se debruçava sobre o acampamento, Zé Gatão acompanhava a enorme sombra que se movia com enorme agilidade para seu tamanho avantajado. A figura dantesca parou sobre um forte e nodoso galho. Se reclinou sobre o teto da cabana, à procura de alguma passagem entre a folhagem e as traves lenhosas que o compunham. De dentro do abrigo, podia-se ouvir os desesperados lamentos de Karoll! Antes que o monstruoso símio pudesse localizar o que buscava, uma outra figura vinda do alto saltou sobre o intruso e ambos se precipitaram das alturas como se fossem frutas maduras. Era o Gatão! Só não se arrebentaram no solo devido a ágeis piruetas, caindo de pé, frente a frente! Prontos para um embate mortal! Contudo, o macaco negro não teve tempo de raciocinar, varado que foi pelas costas, por flechaços com a ponta embebida em curare! Seu derradeiro urro, reverberou pelas cercanias e seu pesado corpo inclinou-se para frente, enquanto da boca escancarada, vertia uma baba farta e grossa. No solo, escabujou alucinadamente, até suas convulsões musculares se transformarem em espasmos, depois em tremores e finalmente em um leve fremir. Seu último sinal de vida foi um chispar odiento dos olhos vermelhos e sombrios, um entrechocar de suas fortes mandíbulas, um arfar ruidoso para terminar para sempre em um único resmungo compreensível: - Maldição…! - Após isto, quedou-se! Morto! As guerreiras e Zé Gatão se aproximaram e constataram aliviados que era um cadáver que se achava derribado a seus pés. Era hora de finalmente descansar! O perigo havia passado!

10Dia:
   O amanhecer já encontrou a pequena hoste longe dali. O macaco das trevas foi enterrado ao pé da frondosa árvore, onde ocorrera a emboscada. Ninguém o pranteou, pelo contrário. A marcha foi longa e cansativa. No fim da tarde, chegaram até a beira de um despenhadeiro, descobrindo que a antiga ponte de madeira e ramagens que o atravessava havia caído, devido às últimas chuvas. Contudo, Izayana não se apertou. Havia outro caminho até mais curto para o Reino. Porém, como o pôr do sol já estava adiantado, achou de melhor alvitre passar a noite ali e seguir para o novo rumo ao alvorecer do dia seguinte.

    Iniciou-se então, a costumeira faina de erigir a rudimentar habitação que os protegeria de potenciais perigos antes que se extinguissem os últimos raios do sol poente. Neste ínterim, pousou ruidosamente diante da minúscula tropa, um besouro conhecido como tigre ou cicindela! Seu exoesqueleto tinha uma brilhante tonalidade esverdeada. Olhos enormes e vítreos! Mandíbulas ameaçadoras! Voraz carnívoro das matas! A reação de Izayana foi imediata! Desembainhou a espada e atacou a criatura, sendo seguida por suas companheiras! O problema é que o coleóptero tinha movimentos extremamente rápidos e facilmente evitava a investida das ferozes felinas, aproximando-se perigosamente. Zé Gatão acercou-se de uma Karoll aterrorizada, no intuito de protegê-la. Sem pensar duas vezes, o grande gato passou a mão em seu cajado inseparável e o arremessou contra a cabeça do inseto, o qual não foi veloz o bastante para impedir que o pesado artefato o atingisse, esmagando-lhe o coco! Sua carcaça tombou, sendo em um átimo estraçalhada por Izayana e suas guerreiras! O repelente bicho virou uma massa amorfa misturado com terra e vegetação! As felinas só pararam quando não era mais possível identificar aqueles despojos como um ser outrora vivente!

    Quando as primeiras estrelas refulgiram no céu noturno, a diminuta tropa de viajantes estava instalada no rude abrigo. Para aumentar a proteção, foi cavada uma fossa em torno do acampamento. Em seu interior foram colocados pontiagudos chuços de madeira. Em pontos estratégicos, tochas acesas embebidas em caldo inflamável de ervas repelentes, para espantar insetos foram fincadas na terra. As diligentes vigias felídeas ficaram no alto das árvores, acomodadas em estrados de lenha trançados com forte cipós. No penumbroso interior da provisória morada ardia um archote solitário. O felino gris estava desperto. Karoll dormia a sono solto, desta vez sem a necessidade do uso de soporíferos naturais.

    Do meio para o fim da madrugada, um som abafado despertou o gato do leve ressonar ao qual estava entregue. Seus músculos se retesaram e ele apurou o ouvido! Parecia que um som de escavação se aproximava sob o solo. Então o felino lembrou-se dos cuidados tomados pelas felinas de fazer os leitos suspensos acima do solo e de as sentinelas ficarem no alto das árvores! Izayana havia dito que a área onde haviam acampado era o território de um verme subterrâneo perigosíssimo que podia surgir da terra a qualquer instante, surpreender suas vítimas, agarrando-as! Após o ataque brutal, levadas seriam para um de seus inúmeros túneis, onde inapelavelmente devoradas até os ossos, desapareceriam como se jamais tivessem existido sobre a face deste mundo!

    Ciente de tudo isto, Zé Gatão estendeu a mão para aljava e o arco que pendiam na parede a seu lado. Cuidadosamente, ajustou a flecha envenenada no arco e esperou. Assim que o horrendo cabeção vermelho se elevou do solo, a certeira flecha foi disparada contra ele, varando-o de um lado a outro! Um guincho abissal e aterrador sacudiu a choupana até seus alicerces. Lentamente, o anelídeo moribundo recolheu-se e desapareceu no buraco de onde havia saído. Lá dentro, seu corpanzil contorceu-se ruidosamente, enquanto lutava pela vida! Mas logo o sacudir convulso e os guinchos cessaram, substituídos pelo silêncio da morte! Izayana ladeada por uma de suas guerreiras adentrou na tenda e sorriu para Zé Gatão, dizendo:
– Pelos deuses! És tu um formidável guerreiro, Gatão! É uma honra tê-lo ao nosso lado! - O felino taciturno meneou a cabeça à guisa de agradecimento, respondendo:
– Era só o que me faltava! Virar comida de verme! Graças a seu alerta, pude me preparar! No chão ia ser difícil encarar aquele anelídeo! Apesar de grande, parecia ser muito rápido e forte! Acha que poderão aparecer mais?
– Por hoje, não! Mas é bom não estarmos nós aqui, amanhã à noite! Perto dos perigos que enfrentaremos nós amanhã, o de agora foi brincadeira de filhotes! As cavernas mortais o são! Mas saiba tu! O único caminho a seguir, o é!
– Foda-se! - Izayana não entendeu a expressão e Zé Gatão tão pouco a explicou.
que espera nossos viajantes nas misteriosas cavernas? Chegarão vivos ao Reino Jaguar? A 5a parte o dirá!




A SAUDADE É MAIS PRESENTE QUE NUNCA

   No momento que escrevo essas palavras são por volta das 21h do dia 21 de abril. Hoje fazem três anos que o Gil partiu, adensando as sombr...