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sábado, 30 de maio de 2020

INFERNO VERDE parte 3. Um conto de Luca Fiuza ilustrado por Eduardo Schloesser

Zé Gatão:

INFERNO VERDE.

25/02 a 28/02/20.

Parte3:

    Durante a madrugada começou um temporal que se prolongou até ao amanhecer e pelo visto, prosseguiria pelo resto daquele dia. O calor úmido e pesado era onipresente. Zé Gatão e Karoll foram retirados da cela e conduzidos sem amarras, mas ladeados por uma pequena e carrancuda tropa até um grande salão de pedra, onde o líder e a fina-flor daquela estranha sociedade os aguardava, acomodados em uma imensa mesa granítica cheia de iguarias finas e frutos variados. Para beber o encorpado leite vindo de uma comunidade servil de cabras das montanhas nevadas, mais a sudeste. O líder das Panteras Negras recebeu seus hóspedes involuntários de maneira relativamente amável. Pequenos felídeos amarelos rajados de preto, se aproximaram diligentes, cuidando para que o felino cinzento e a ave encarnada fossem bem tratados. Enquanto todos degustavam a lauta refeição, o líder apresentou a nata da Sociedade, formada por machos e fêmeas de aparência untuosa e ociosa com ares de superioridade. Karoll levantou, curvando-se em exagerada mesura. Zé Gatão se limitou a um leve aceno de cabeça. Intimamente, detestava a empáfia dos assim chamados “bem-nascidos” que se achavam melhor do que o comum dos mortais! A seu ver, não passavam de inúteis sacos de gordura a parasitar a Sociedade!

Após o café, o líder encaminhou seus hóspedes a uma outra dependência do enorme palácio. Ampla, maciça, ar solene e místico. Lá os aguardava o sacerdote que Zé Gatão e Karoll já tinham antes visto na companhia do líder e seu séquito. Após uma breve conversa do poderoso mandatário com o místico, Karoll explicou ao felino taciturno que um ritual de purificação ia ser realizado. Que o grande gato nada receasse. Era totalmente indolor. Zé Gatão assegurou estar tranquilo. Dirigiu-se para um assento de pedra como indicado por meio de sinais pelo sacerdote. Sentou-se junto a um braseiro aceso de pés altos. O xamã jogou primeiro um pó negro no braseiro, seguido de algumas ervas aromáticas. Formou-se uma densa fumarada escura que envolveu o felino acinzentado. Uma cantoria monótona se elevou da boca do sacerdote. Seus acólitos lhe fizeram companhia e o som daquelas vozes em uníssono se elevou, enchendo o recinto. Por um tempo que pareceu elástico durou aquele estranho ritual. Quando a fumaça se dissipou e a canção cessou, Zé Gatão surpreendido percebeu que podia entender perfeitamente a linguagem de seus captores! O líder dirigiu-se a ele:

– Agora podemos entender-nos, ó infiel! Já não preciseis mais de intérprete, como vês!

– Incrível! Como fizeram isto? - Indagou atônito, o felino gris. O líder sorriu com condescendência, afirmando:

– Mágica, incréu! Muito além de tua limitada compreensão! Vinde comigo, tu e tua acompanhante! Precisamos parlamentar! - Com um breve olhar para o sacerdote e seus asseclas, o potentado se retirou seguido por seu cortejo com seus “convivas” entre eles.

    Após percorrerem inúmeros corredores, adentraram em uma área ajardinada, protegida da chuva que pareceu a Zé Gatão e a Karoll um lugar de descanso e meditação. Havia uma grande mesa central com imensas cadeiras, tudo de pedra como era usual naquela portentosa e ciclópica edificação. Novamente foram todos servidos solicitamente pelos pequenos felinos rajados. Desta vez, uma bebida saborosa e aromática que lembrava o vinho tinto. O líder parecia mais descontraído. Em um tom quase amigável,
quis saber de onde vinha o felino sorumbático e como viera parar na selva. Em breves palavras, Zé Gatão relatou suas andanças desde que deixara a aldeia dos gatos pescadores até o inesperado sequestro que o levara até ali, tanto ele quanto sua amiga emplumada. O Gatão notou um brilho fugaz nos olhos de seu interlocutor, seguido pelas seguintes palavras:

– Então és um guerreiro! Enfrentaste os perigos da jângal com galhardia! Pelos deuses! Se eu não te tivesse prometido ao Grande Senhor dos Jaguares…! Faria de ti, sem pestanejar, comandante de meus exércitos! E mais! Poderia ter em fim, o amigo e confidente que me falta em minha solidão no Poder! És um felino honrado e muito lamento ter que entregar-te à sanha dos cultistas de nossa deusa, a Serpente Emplumada!

– Poderia nos soltar e dizer que escapamos e…! - Estrilou Karoll eriçando a plumagem vermelha. O líder balançou a cabeça tristemente, dizendo: – Não é mais possível engendrar tipo nenhum de estratagema, bela ave! A mensagem de vossa captura já foi enviada! Em breve, um destacamento de Jaguares virá buscar o cinzento. Tu, porém, és livre! - Karoll meneou a cabeça, contrariada, afirmando:

– Aonde o Gatão for, eu irei! - O monarca sorriu, compreendendo. Proferiu estas palavras em tom de pronunciamento: - Felino cinza e arara! A partir de agora, vós não sois mais prisioneiros! Sois meus hóspedes e meus amigos! Espero que não quebreis a promessa que fiz ao Senhor dos Jaguares! Se intentarem a fuga, não vos deterei, mas é certo que meu povo será destruído!

– Tem a nossa palavra, majestade! Não é, Karoll? - A arara olhou incrédula para o amigo, mas uma piscadela de olho deste a fez entender que a tal promessa não valeria mais quando estivessem entre os Jaguares! “Belo consolo!” Pensou a ave, desanimadamente. Contudo, mesmo temendo os horrores do porvir, não abandonaria jamais seu amigo e salvador! Morreriam juntos!

A voz do líder, pedindo que o acompanhassem acordou Karoll para a realidade. O novo amigo chamava-se Kinich Kukulkan. Durante uma semana, o felino tristonho e a arara carmesim viveram agradavelmente no gigantesco templo como hóspedes de honra daquela incrível raça de felinos cor de ébano. Andavam livremente por suas dependências e Zé Gatão já não achava a nobreza e a Casa reinante tão antipáticas como antes.

    Há dias que a chuva caía copiosamente sobre a região. Tal fato explicava a demora dos Jaguares. Quando o tempo melhorasse, certamente apareceriam para reclamar suas vítimas! Até lá, não havia nada a fazer, senão aprender os costumes daquele povo inusitado.

    Durante uma tempestuosa manhã, em meio à primeira refeição do dia, Kinich quis saber sobre o mundo fora da selva, a terra de onde Zé Gatão tinha vindo e que ele chamava de Civilização. Dentro do possível, o felino casmurro contou um pouco daquela realidade ao surpreendido monarca, o qual chegou a duvidar das maravilhas, das mazelas e da quantidade impressionante de seres que viviam para além de seus selváticos domínios. Kinich refletiu um bocado, dizendo entre dentes:

– Um dia hei de anexar esta tua Civilização ao meu reino!

– Nem pensar, meu amigo! - Redarguiu seriamente o felino cinzento – Existem armas e máquinas que poderiam destruir vocês em um piscar de olhos e nossos exércitos são mais numerosos que os enxames de mosquitos que infestam suas matas! Se os civilizados um dia os descobrirem, vocês todos e os Jaguares estarão condenados à extinção! E não será a primeira vez!

– Estás me dizendo a verdade, ó Gatão?

– Estou, majestade! Meu mundo é brutal e injusto! Os governantes são rapaces e a miséria grassa nas grandes cidades! Os poderosos vivem como sanguessugas às custas desta miséria, aumentando suas riquezas e seus bens, enquanto o animal comum trabalha até morrer sem chance de melhorar de vida! - E continuou:

– Creia, sua Sociedade é completamente diferente da minha. - O felino furtou-se de mencionar as oferendas vivas devidas a deuses impiedosos e a escravização de outros povos felídeos praticados pelos Panteras. Ele mesmo estava fadado a ser sacrificado. Entendia perfeitamente que era parte da Cultura daqueles “estranhos gatos.” Contudo, em seu íntimo, não pretendia ser imolado em holocausto a nenhum deus ou deusa sedentos de seu sangue! Uma coisa era compreender aquela realidade e outra era ir docilmente ao matadouro!

    Ao terminar o repasto, retirou-se com Karoll para os seus novos aposentos, enquanto seus anfitriões foram cuidar de seus afazeres, prometendo continuar a conversa ao jantar. Sozinhos e sem a presença de ouvidos indiscretos, trocaram ideias sobre seus próximos passos:

– Acho melhor nos deixarmos levar até o reduto dos Jaguares, Karoll.

– Por que, Gatão? Poderíamos tentar escapar durante o trajeto e sumir no meio da mata.

– Pura ilusão! Seríamos capturados outra vez! Lembre-se que nossos captores conhecem estas terras como a palma da mão e nem mesmo você poderia arranjar uma rota segura para escapar deles! Posso estar errado, mas acho que na toca dos Jaguares teremos maior chance de virar a mesa a nosso favor!

– Queiram os deuses! Ahhh! O que estou dizendo?! Os deuses querem é a nossa pele!     Zé Gatão não se dignou a responder. Apenas pediu que Karoll parasse de se angustiar antes do tempo.

sábado, 23 de maio de 2020

HISTÓRIAS QUE NÃO MAIS CONTAREI.


O tempo, como sabemos, tem passado mais rápido que o normal. Não é de se admirar, antes as coisas eram mais simples, hoje tudo é mais frenético. Tudo é pensado em termos de lucro. Nada de perder tempo refletindo... ação, AÇÃO! Eu, que nunca administrei bem minhas responsabilidades e filosofo demais em cima de casos, me perco neste vórtice. Quando dou por mim, o dia foi embora e eu pouco produzi. Porque, exatamente? Simples, uma compra ali, uma fila acolá, ler um capítulo de um livro, comer, ir ao banheiro, tomar banho....e as horas úteis vão embora. O tempo necessário para produzir uma boa arte, um bom texto, some como num passe de mágica. Claro, falo de projetos meus, aqueles que justificam o "eu ser um artista", não aqueles que me encomendam e pagam por eles, seja pouco ou muito (na verdade não existe o MUITO), a esses dedico as horas que sobram do dia.

Eu tinha muitas ideias para meus quadrinhos. Ideias que me perseguiram por vários anos e que por uma infinidade de motivos, nunca nem coloquei no papel. Vou falar sobre algumas delas.

GUERRA DE CANUDOS
Influenciado por uma exposição de fotos na Pinacoteca do Estado, quando o drama de Canudos completou 100 anos, logo no início dos anos 90, eu pensei em um álbum onde, pela visão de um soldado, contaria o início e o final do arraial. Uma matéria do jornal O Estado de São Paulo (na verdade um caderno inteiro) sobre o assunto, atiçou minha vontade. O problema é que naquela época eu dispunha de quase nenhum dinheiro para material profissional, como canetas, papéis e muito menos referências fotográficas sobre o tema. As fotos da dita exposição, se eu tivesse acesso a elas, não ajudariam tanto. Talvez hoje com a internet fosse possível.
Bem, tudo isso me fez colocá-la de lado. E pensando bem, foi melhor assim, meu desenho era muito amador naquela época, eu teria perdido meu tempo.

ZÉ GATÃO - O GUARDIÃO DA MURALHA DOURADA
Houve um tempo que eu pensei em usar o único personagem de quadrinhos que criei como uma espécie de Indiana Jones, não um caçador de relíquias exatamente, mas um herói pulp, um Doc Savage, que encontra antigas civilizações e enfrenta muitos perigos. Animais exóticos antropomorfizados, muita ação, violência e pancadaria.
Esta foi outra que nem coloquei no papel, apenas imaginei as cenas e personagens coadjuvantes.
O que bloqueou este projeto foi as sucessivas mudanças de lugar. Uma hora eu estava em Brasília, outra em São Paulo.
Algumas ideias em acabei aproveitando em Memento Mori.

À SOMBRA DA CRUZ
Esta foi a que mais me empolgou. Eu tinha planos até de consultar bibliotecas públicas para pesquisar sobre o assunto.
A história seria a seguinte: um cavaleiro português da ordem templária viajaria na esquadra de Cabral perseguindo o assassino de sua esposa e filha e a vendetta se daria em terras brasileiras bem em seus primórdios. Mitos, lendas e tals, numa história de ação onde personagens históricos e fictícios se veriam envolvidos em misticismo e muito violência.
A luta pelo pão diário (eu já estava casado no início doas anos 2000, quando o projeto nasceu em minha mente) postergou os planos e as idéias empacaram num determinado momento. Os anos passaram e não pensei mais a respeito.

AS DOZE MORTES DE ANABELLA COLOSTRO E A RUÍNA DE KIKO BAGALHODA
Sobre esta nem vou comentar, fiz um post em 2013, quem quiser ler é só acessar este link:
http://eduardoschloesser.blogspot.com/2013/06/da-serie-historias-jamais-contadas-as.html

ZÉ GATÃO - BARRACUDA!
O final de tudo, o apocalipse dos animais. Tenho todo o roteiro na cabeça. Um Zé Gatão velho, tendo que proteger uma gata cega e sua filha em meio ao confronto entre mamíferos e peixes. O fim da civilização como os mamíferos e os pássaros conhecem.
Algo um tanto ambicioso. Gostaria de fazer mas não sei se vou conseguir. Na verdade, Zé Gatão-Siroco se passa após esses eventos ainda não narrados. Estranho, né?

 A MULHER DO CARATECA
Eu gostaria muito de fazer esta graphic novel. Seria meu projeto mais grandioso. Uma história de amor. Várias situações e personagens nada tendo a ver entre si se entrecruzando em muitos momentos da narrativa. Na linha central, um cara comum se apaixona por uma campeã de carate, mulher de um lutador famoso, líder de um clã, e sua vida vira de cabeça para baixo, ele se vê envolvido em situações que ameaçam ele e aqueles que ele ama. Mendigos e seus cães, policiais durões, crianças perversas e Charles Bukowski e Bruce Lee em participações especiais. 

Pois é, a atual situação do mundo me mostra que as coisas estão mudando de um jeito que mais que nunca eu quero ir embora. Todos esses projetos me parecem vaidade tola. Tudo vai sendo remodelado de uma forma que minhas criações não encontram mais lugar neste estado de coisas. Vou ficando cada dia mais cansado e nostálgico, e nem sei se tenho mais energia para levar adiante pelo menos os dois últimos títulos citados acima. Como publicar? Para quê? Quem vai ler? Vale o esforço? São essas as indagações. Sem contar, é claro, no tempo que não tenho mais. Tempo este que tenho que lutar pelo pão cotidiano.
 

domingo, 17 de maio de 2020

INFERNO VERDE CAPÍTULO 2 - ESCRITO POR LUCA FIUZA E ILUSTRADO POR EDUARDO SCHLOESSER.


INFERNO VERDE.
17/11/19.
Parte 2:


    O resto da noite foi tranquila e nada incomodou o sono levíssimo do grande gato. Karoll dormiu a sono solto e só acordou ao chamado insistente de Zé Gatão que já tinha aprontado o desjejum há poucos instantes. Foi uma refeição leve que consistia de frutas carnudas e suculentas de sabor levemente adocicado, muito nutritivas. De certas ervas que recolheu nas proximidades do acampamento, graças as suas leituras, o felino preparou um chá estimulante para ajudar a resistir melhor ao penoso deslocamento em meio à selva, cujo o calor escaldante se fazia sentir, fazendo o corpo suar profusamente mesmo quando em estado de repouso. Enquanto terminavam a rápida refeição, felino e ave conversavam ao pé do fogo, onde Zé Gatão preparara o chá. O gato tomou mais um gole da beberragem e indagou:
– Quantos dias levaremos para sair da selva, Karoll?
– Seguindo em direção ao sul, chegaremos ao grande rio e seguindo por ele, sairemos da selva rumo ao seu mundo civilizado…! - O felino cinzento sentiu apreensão na vozinha de taquara rachada da mimosa ave e quis saber a razão. Esta disse: - É que vamos passar pelas terras dos Jaguares…! - O felino quis saber quem eram e Karoll não se fez de rogada, dizendo: - São uma raça de poderosos felinos pintados que fundaram um imenso reino nestas terras. E não teremos meios de evitar que nos descubram!
    Balançando pendularmente a cabeça acarminada, a arara de repente se imobilizou. Olhou fundo nos olhos penetrantes de Zé Gatão e prosseguiu: - Prestam homenagens e sacrifícios a deuses terríveis e sanguinários! Se cairmos nas garras deles, morreremos no Templo Sagrado! Nossos corações serão arrancados ainda pulsando e em seguida oferecidos às suas monstruosas divindades, bem como nossos corpos! - Karoll tremia intensamente! O felino gris escutou em silêncio. A chance de ser encontrados e aprisionados era tão certa como o nascer do sol a cada dia! Bem, se tivesse que morrer, venderia caro a sua vida! Muitos daqueles felinos pintalgados não veriam o macabro sacrifício! Que viessem! Zé Gatão os receberia com todas as honras! O acampamento começou a ser desfeito. A fogueira foi apagada. Sem olhar para trás felino e ave prosseguiram sua extenuante jornada. A arara era a guia!
    No meio da tarde, resolveram parar junto a um afluente do grande rio que estaria a uns cinco dias de distância. Embora o trajeto até ali tenha sido tranquilo, acompanhado pelos costumeiros sons da jângal, os sentidos do Gatão estavam excitados em seu nível máximo e uma apreensão, uma sensação de perigo iminente o envolvia como um pestilento miasma de dor e morte! Deixando o acampamento pronto, dirigiu-se com Karoll ao lado à beira do rio para renovar o estoque de água do cantil. Aproximou-se lentamente da margem. Um cheiro estranho e forte excitou seus órgãos olfativos! Repentinamente, das águas serenas ergueu-se um imenso réptil! Um jacaré esverdeado de fauces abertas, investindo sobre presas que julgava fáceis e incautas! Tolo réptil! Zé Gatão desviou-se facilmente do ataque! A besta-fera atingiu o vazio, tombando de maneira ruidosa e desajeitada ao solo! Karoll voou assustada para uma árvore próxima, gritando e lamentando, em altos brados! Furioso, o jacaré ergueu-se! Usava um saio curto e um cinto feito com o couro provavelmente de alguma de suas vítimas! Um sorriso mau brincava em sua face grotesca! Os olhinhos perversos e famintos cintilavam no lusco fusco da mata! Enquanto o reptiliano ainda se aprumava para reiniciar o ataque, levou uma voadora que o derrubou que nem bosta no solo pastoso da margem do rio. Sem dar tempo para nenhuma reação, o felino taciturno deu uma potente cutilada na garganta exposta do pecilotermo, fazendo-o engasgar-se e ficar sem conseguir puxar ar para os pulmões agora em brasa! O réptil estrebuchou no chão! Olhos arregalados, bocarra aberta, língua preta projetada para fora! Espumosa baba escorrendo pelas comissuras labiais profusa e nojentamente! Um chiado horrível saindo da garganta!

    Zé Gatão apanhou seu inseparável cajado e o vibrou com força no meio da testa do oponente, arrebentando-a como se fosse frágil porcelana! O jacaré estremeceu! Suas mãos abriram e fecharam convulsamente! Suas musculosas pernas e cauda realizaram um movimento inarticulado e breve! Seu tórax expandiu-se buscando ar inutilmente! Os olhos se reviraram nas órbitas e sua morte se deu após um ronco alto e profundo saído de uma traqueia destroçada e não mais funcional. Zé Gatão acompanhou o estertorar final do jacaré insensivelmente! E não pode deixar de pensar que se fosse um filme de cinema, a luta entre ele e seu quase algoz seria longa e cheia de coreografias bonitas! Quão distante da realidade era uma luta pela vida! Quem não tivesse mais força, habilidade e rapidez estaria morto! Chamou Karoll que pousou junto dele meio desajeitadamente, ainda bastante assustada, mas logo se acalmou. Naquela noite, Zé Gatão comeu lombo assado de jacaré, o que não foi nada mal! Karoll, sendo frugívora, contentou-se com frutas e sementes coletadas nas imediações. Zé Gatão em suas andanças nunca comera a carne de outro animal! Bem, para tudo tinha uma primeira vez! Nunca antes enfrentara um ambiente como aquele e precisava estar forte para sobreviver! Sempre foi um sobrevivente e mesmo tendo vários motivos para não gostar de sua vida a defenderia com unhas e dentes de quem dele tentasse tomá-la!

    No meio da escaldante e úmida madrugada, um leve ruído o despertou. Porém, antes que pudesse se levantar estava cercado por um grande bando de felinos de pele negra como a própria noite! Envergavam armaduras leves, cabeças cobertas por capacetes. Portavam lanças e pesados tacapes. Zé Gatão achou melhor render-se sem luta. Estava deitado e seria facilmente transpassado pelas lanças dos intrusos! Incrivelmente, karoll desceu de seu poleiro improvisado em silêncio e sem escândalo indo pousar com um adejar de asas junto ao amigo, o felino sorumbático. Devagar, sem movimentos bruscos, felídeo e psitaciforme se sujeitaram a seus captores. Brutalmente manietados, por cordas feitas de rijos cipós foram conduzidos através da noite que findava para uma cidadela erigida em uma grande clareira, a qual chegaram após uma hora de caminhada ininterrupta. Foram deixados em um dos compartimentos de um enorme templo cerimonial. Comidas suculentas e bebidas refrescantes lhes foram ofertadas. Comeram unicamente para restaurar as forças. As horas se passaram lentas. Os prisioneiros cochilaram um pouco. Despertaram ao som mecânico da abertura do monumental portal

de pedra que selava o cômodo onde os haviam colocado. Um pequeno destacamento adentrou. Suas vestes e armas eram cerimoniais. Em seguida, adiantou-se um sacerdote ricamente paramentado. A seu lado, um felino altivo, bastante musculoso que parecia ser um nobre, um líder de seu povo. Em tom autoritário, o líder dirigiu-se a Zé Gatão fazendo indagações em uma língua estranha que tinha um sabor antigo, mas de alguma forma, relacionada com sílabas e fonemas das línguas do mundo civilizado. O felino olhou para Karoll a seu lado. Esta, em voz contida, disse:

– Ele quer saber quem somos e porquê você se atreveu a entrar na selva!
– Diga a ele que estou de passagem, indo para o sul. Em busca do caminho de volta para a Civilização. Pergunte a ele se pode ajudar. - A bela ave traduziu. O líder explodiu em uma gargalhada! Tremendo de medo, Karoll explicou que de acordo com o líder, o gato cinza era um infiel! Invasor que seria entregue dali a dois dias a seus senhores, os Jaguares que o sacrificariam em holocausto à Grande Serpente Emplumada, criadora do Universo e da Vida. Sem esperar resposta, o líder e seu séquito se retiraram. O enorme portal foi novamente lacrado e sob a luz fugidia das tochas acondicionadas nas sólidas e rústicas paredes da insólita cela, ficaram Zé Gatão e Karoll entregues a seus pensamentos. O felino quebrou o pesado silêncio:
– Que negócio é esse, Karoll?
– Como já disse, estas terras fazem parte do Grande Reino dos Jaguares. As Panteras Negras são vassalas do povo Jaguar. Após uma longa guerra entre estas duas espécies de felinos, a dos Jaguares venceu. As Panteras passaram a ser tributárias dos Jaguares, entregando impreterivelmente fêmeas jovens e filhotes para os rituais de sacrifício aos deuses sanguinários, nos quais estas duas raças felídeas acreditam! A deusa principal é Bepnapatóchi, a Serpente Emplumada! Um dia, o povo Pantera entrou em acordo com seus dominadores. Caso capturassem um animal de fora, seus entes queridos seriam poupados naquele ano!
– Pelo visto pouparão você, pois é daqui!
– Nem pensar, Gatão! Aonde você for eu vou! - Um fugaz sorriso brincou no rosto duro de Zé Gatão – Está disposta a morrer comigo?
– Posso ser covarde e escandalosa, mas não abandono os amigos!
– Ainda estamos vivos, garota! E enquanto há vida, há reação! Estes e os outros babacas que nos aguardem!
– É isso aí! - Gritou a Karoll, não tão convicta como queria parecer.
– Vamos descansar mais um pouco, então! Antes de morrermos talvez eu tenha uma satisfação.
– E qual é?
– Dar umas porradas no focinho de algum sacerdote antes que ele arranque nossos corações!
– Você sabe mesmo animar a gente, Gatão! - O grande gato deitou-se no chão, bem ao fundo da cela com as costas contra a fria parede de pedra, virado para o portal granítico. Karoll esticou-se a seu lado e tentou dormir. Logo ela estava ressonando de leve. O felino permaneceu desperto. Os sentidos sempre alertas! Prontos para mantê-lo vivo, não importando a que preço!

sábado, 2 de maio de 2020

O ALIENÍGENA.

Auto análise.

Acho que as inúmeras porradas que levei ao longo da vida (porradas estas no lombo mesmo e também na alma) me deixaram indiferente ao que possam achar de mim. Se me veem como um grande artista, eu agradeço lisonjeado, mas não muda em nada o que penso de mim mesmo. Considero-me um presunçoso, um imbecil sonhador, uma figura patética de aparência desprezível. E se por ventura disserem que sou um desenhista medíocre (como aliás já afirmaram), tal concepção não me incomoda - pelo menos, não mais - foi-se o tempo em que eu fazia das tripas coração para agradar aos meus circundantes. A partir do momento em que me dei conta de que não consigo me sentir à vontade entre as pessoas, que não me adéquo a um grupo, seja ele qual for, eu comecei a ser menos infeliz. No passado, quando tentava fazer parte de uma sociedade e era rejeitado por ela, tal desprezo me fazia sofrer, depois, com o tempo fui analisando os fatos, meditando na forma como fui criado, percebi que era inútil forçar a minha escalada pelas paredes de concreto do mundo. É difícil explicar, mas é como se eu fosse um alienígena e tivesse sido esquecido pelo meu povo durante sua estada na terra e não me lembrasse disso. O conhecimento de tal fato revela-se uma verdade, que, ainda que doa, vem nela embutida um lenitivo que me faz aceitar a minha posição no planeta: não faço parte dele e minha passagem é breve.

Esta semana estava eu no mercado e me disseram que duas atendentes estavam zombando de mim por eu procurar um produto na prateleira errada. Tempos atrás a esposa do meu cunhado e a filha dela riam pelas minhas costas por causa da maneira que eu me expressava. Alguém disse: você fala muito alto e é como se dirigisse à uma plateia. Nunca me dei conta. Talvez, quem sabe, seja um mecanismo de defesa inconsciente meu. O fato é que isso pouco me importa. Ser susceptível como um anão ou um corcunda vai engrossando sua pele até ela se tornar como a de um jacaré. O escárnio na infância e adolescência causam muitas feridas, mas elas cicatrizam com o tempo e tornam o adulto imune a tais maldades. Pelo menos foi assim comigo. Por isto o desprezo do Lourenço Mutarelli pela minha pessoa - logo ele, que eu pensei que fosse um par por pensar que tínhamos muito em comum- não me afetou. A indiferença dele ao meu entusiasmo de fã, fez com que eu desparecesse da vida dele e esse distanciamento não me faz falta.

Há uma música do David Gilmour e Pete Towshend com a qual me identifico muito, é como se ela fosse feita para mim. Para isto existe a arte, quando nos vemos retratados em uma poesia ou canção, pensamos, pô, alguém se sente como eu. 

Poucas pessoas te empurram para cima, mas não faltam os que colocam tropeços no caminho. Meu pai dizia que eu era como rabo de cavalo, ou seja, crescia para baixo. A mãe da minha filha dizia que eu só servia para ser mandado. Durante anos isso se apegou à minha pele como uma sarna e eu lutei para provar que estavam errados. Infelizmente a dura realidade é que talvez estivessem certos; fracassei na vida amorosa, malogrei como pai, quis ser um desenhista bem sucedido e nunca consegui por mais que tentasse. Sim, eu vivo das ilustrações, mas sempre me esfolando nas sucessivas quedas pela  estrada da arte.

Agora, tanto faz como tanto fez; já disse e repito: o que vier de vantagem, hoje, infelizmente chega tarde. Mas aprendi, finalmente, me conformar com as coisas como elas são (e sei que não vão mudar); resta viver um dia após o outro, como sempre foi; batalhar até o sangue para não deixar faltar nada para a família; esperar pelo menos o perdão de Deus para os meus muitos pecados. Espero não me frustrar nisto também. 

A SAUDADE É MAIS PRESENTE QUE NUNCA

   No momento que escrevo essas palavras são por volta das 21h do dia 21 de abril. Hoje fazem três anos que o Gil partiu, adensando as sombr...