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sexta-feira, 16 de junho de 2023

O AMARGO ANO DE 1977

 Aconteceu mais ou menos assim, sem precisar o mês e o dia, no ano de 1977, devia ser umas cinco da manhã, a alvorada ainda não tinha chegado. Meu pai me acordou aos cutucões. "Levante, vamos sair"; Assim mesmo, sem explicações, nem justificativas, como foi toda a vida dele, estava acostumado a ser obedecido, se eu ousasse sequer perguntar aonde íamos arriscava tomar um bofetão. Após um café da manhã bem frugal, saímos. Morávamos em Brasília, na SQS 202, caminhamos em direção à rodoviária vendo o dia raiar. Isso talvez explique minha total e irrestrita ojeriza em acordar cedo. Caminhamos em silêncio na manhã fria. O desprezo que ele nutria por mim era bem evidente mas nunca pude discernir naqueles dias, o medo que eu sentia dele era tão gigantesco que nublava tudo ao meu redor. Pegamos um ônibus lotadíssimo em direção à Asa Norte indo pela W3. Descemos na 711. Andamos em direção às casas que ficavam naquelas quadras e nos detivemos em frente a uma banca de jornal de formato quadrado, cor vermelha. Ele tirou as chaves dos bolsos e abriu o imenso cadeado. "Arrendei esse local de um amigo, vamos fazer dinheiro, você vai trabalhar aqui." 

As bancas de jornais de Brasília naqueles anos não eram como em São Paulo, por exemplo, não tinham design arrojado, eram de formato cubo, entrava-se por trás e abria-se - como posso dizer? - uma espécie de enorme janela na frente e a parte de baixo dessa "janela" servia de balcão onde eram colocados os jornais, revistas e tudo o mais. Claro, as paredes interiores também eram forradas com os mais diversos títulos. 

Meu pai me mostrou um caderno onde eu deveria anotar cada item vendido. Perguntou se eu sabia fazer conta rápido e eu, como de costume, gaguejei: "s-sim, acho que sim." "Acha?" "é..e-eu, sei, sim". Ele me testou, me deu uma nota qualquer e pegou uma revista de tal valor. Com as mãos trêmulas eu devolvi o troco não muito certo se estava correto, eu estava nervoso demais, o medo que eu sentia era absurdo. Vendo que eu dava conta do recado, deixou várias moedas para troco dentro de um copo plástico e foi para o ministério dizendo que voltaria na hora do almoço para que eu fosse comer e depois me encaminhar para a escola, que ficava na 304 Norte.

A banca ficava de frente para a quadra e de costas para a avenida W3, o que era um enorme erro estratégico e estivera fechado muito tempo, as revistas existentes ali eram de muitos meses atrás, não havia muito o que fazer, organizei tudo como podia e fiquei lá, perplexo, tirado da cama sem conversa e colocado ali para executar uma tarefa, em teoria simples. Mas para vender o quê? A mercadoria defasada. Para quem? Os possíveis clientes não deveriam sequer saber da reabertura. Àquela hora da manhã não passava por ali viva alma. Só me restava uma coisa a fazer: ler, algo que adorava. Comecei com os quadrinhos, os poucos que tinham, gibis da bloch, O Planeta dos Macacos, O homem de Seis Milhões de Dólares (cito esses por estarem bem frescos em minha mente), depois parti para as revistas, Manchete, Ele Ela, Lui (foi ali que vi uma ilustração do mestre Vargas pela primeira vez), fotonovelas Jacques Douglas, Lucky Martin e Sétimo Céu. Eu lia de tudo.

Meu pai voltou na hora do almoço, me deu dinheiro para comer um lanche num bar ali perto e como já tinha trazido minha mochila com cadernos e livros, fui caminhando a pé até a escola, sempre me perguntando - também ao cosmos (eu ainda não conhecia a Jesus) - o que eu estava fazendo naquele mundo, uma vez que tudo para mim era estanho e eu me sentia um completo solitário. 

Voltei no final da tarde. Meu genitor me falou que já estava em negociações com as distribuidoras para pagar as dívidas da banca e recomeçar a ter as novidades, assim como os dois jornais da cidade, o Correio Brasiliense e o Jornal de Brasília. Com o passar do tempo teríamos nos fins de semana o Estado de São Paulo, Jornal do Brasil e o Globo. Assim os clientes começaram a reaparecer e o trabalho que parecia fácil começou a ficar complicado, lidar com o público requer um tato especial, uma paciência não natural para aturar pessoas que se julgam superiores, malucos, zombadores, enrolões, os que desperdiçam tempo com conversa fiada e até pedófilos, creiam, fui cantado umas duas vezes por uns velhos nojentos, eu tinha 14 anos!

A rotina era essa, acordar bem cedo (para quê? o movimento naquele fim de asa norte só começava por volta das dez da manhã), tomar o ônibus lotado, abrir o estabelecimento, montar os cadernos dos jornais, espanar a poeira das revistas, ler tudo o que fosse possível (principalmente heróis Marvel da bloch e Tex) pra não sufocar de tédio, morrer de medo da chegada do meu pai, comer no bar, pegar a mochila e ir para escola, um local que muito me soava como uma prisão e eu não sabia o que aprendia ali. Ao final, retornar à banca umas 16 hs, fechar as 18:30 e pegar o ônibus de volta para casa.

Nem sempre meu pai podia ficar no local durante a tarde, na maioria da vezes minha mãe vinha me render, e eu sempre me alegrei muito ao vê-la, estar com ela, por mais fugaz que fosse, era um deleite. Pensando hoje, eu nunca pude tê-la por completo, ela sempre pareceu um passo à frente do meu toque. Minha vó ficava com Agildo, André e Rodrigo, que tinha um ano apenas. E assim foi aquele ano.

Ao sentar aqui eu planejei contar uns casos pitorescos daquele lugar, daqueles tempos. Narrar sobre a máfia local, a pressão dos outros proprietários das bancas das quadras próximas que faziam terrorismo, como colocar Durepox nos nossos cadeados durante a noite, velas de macumba ao redor da banca.  Falar sobre como era duro para mim vir com caixas muito pesadas da distribuidoras em ônibus lotados na hora do rush, dos esporros homéricos que eu recebia do meu pai na frente de estranhos quando eu demorava para chegar, por conta de um coletivo que parava no trânsito ou quando eu esquecia, por sempre ser muito distraído, de anotar alguma venda no caderno.                                                                     

Mas para dar detalhes eu teria que ficar aqui mais tempo e os anos chegaram cobrando a fatura, sofro de dor nas costas, nas pernas, vivo à base de analgésicos, muitas horas na prancheta deixam meus pés inchados.

Mas posso dizer que quase não lembro com quem estudei aquele ano, ninguém marcou,  mas ficou na memória uma morena linda que sentava nas carteiras à frente, falei com alguém sobre ela e foram contar, ao que ela disse: com aquele baixinho eu jamais namoraria.

Recordo das músicas que eu ouvia naqueles tempos: Tonight´s the Night, do Rod Stewart, Dancing Queen, do ABBA, Hotel Califórnia do Eagles entre outras. Lembro de ter lido "Olhai Os Lírios Do Campo, do Érico Veríssimo e alguns contos do Machadão. Na TV eu assistia Kojak, Baretta e filmes de terror tarde da noite com Christopher Lee e Peter Cushing. No cinema rolava Contatos Imediatos do Terceiro Grau (filme chato), Uma Ponte Longe Demais, Equus (incômodo), Os Duelistas (filmaço), O Homem Que Amava As Mulheres, A Garota Do Adeus, 007, O  Espião Que Me Amava e aquela merda de Os Embalos De Sábado À Noite.

Por essa época eu estava cada vez mais encantado com a Kripta da RGE e isso meio que moldou o que eu faria nas HQs uns 15 anos à frente.

Mas tenho que destacar O Voo do Dragão com Bruce Lee, filme que devo ter visto no cinema, só naquele ano, umas vinte vezes (número que chuto aqui, deve ter sido bem mais que isso) e por consequência O Mestre do Kung Fu, com argumento do Don MacGregor e arte de Paul Gulacy no ano seguinte, isso tudo embalado ao som dos Stones com Fool To Cry, muito Beatles e a banda disco Santa Esmeralda que eu ouvia de madrugada com o radinho debaixo do meu travesseiro.  

São as lembranças que eu tenho daquele ano. 

Queria ilustrar esse post com algumas fotos tiradas da banca em 77, mas devem estar (se não foram perdidas) em álbuns antigos da minha saudosa mãe.

Não posso encerrar sem dizer que nunca recebi dinheiro algum nos meses que lá trabalhei. Como aquilo terminou? Fica para, quem sabe, um futuro texto, já sinto comichões em meus pés (que mais parecem balões).  

Pra essas lembranças não ficarem sem uma arte, posto aqui mais uma imagem que fiz para um didático que dizem, será publicado em algum tempo.

 


Obrigado por me suportarem mais um pouco.  

 

 

 

 

 

     










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