segunda-feira, 16 de janeiro de 2012
DIAS AMARGOS.
Minha avó materna era uma pessoa sui generis. Além de gostar de chorar em velórios de gente que ela nem conhecia, também colecionava retratos 3x4. Isso mesmo, o álbum dela (que chega a ser uma relíquia) tá cheio destes retratinhos de pessoas que ela mal tinha contato (ou contato nenhum). Bastava ela ver a pessoa uma vez, para dizer que já a estimava muito, que considerava um filho(a) e pedia uma foto de recordação. Acho que ela fazia isso por causa da sua inigualável carência afetiva; pensava, quem sabe, de forma até inconsciente, que procedendo assim estaria ganhando um amigo quiçá para toda a vida. Claro que existem ali fotos de chegados de infância, amigos próximos e parentes, mas boa parte era de pessoas desconhecidas.
No meio daquilo tudo existem imagens congeladas da vida do meu avô (o velho Schloesser levantando casas), da minha mãe, da infância dos meus irmãos e também algumas fotos minhas, uma em particular tem ocupado minha cabeça nestes últimos dias. Foi tirada em Pirituba, e se não me falha a memória no ano de 1972. Nela, estou de braços cruzados, parado diante do portão da casa onde morávamos, usava cabelos curtíssimos, à moda militar da época, trajando uma calça de tergal azul escuro, uma japona com algumas estampas quadriculadas, se a memória não me trai (não vejo esta imagem a muitos anos) e sapatos pretos. Eu era muito miúdo, acho que pequeno demais para a idade que eu tinha. Parece incrível que com aquela envergadura de pulga, eu passasse por tantas situações tristes. Eu não era um menino travesso, mas era castigado quase sistematicamente. Minha avó me batia por qualquer coisa, até para mostrar aos outros que era durona e tinha pulso firme comigo. Meus irmãos podem não se lembrar, mas o mesmo acontecia com eles. Meu pai, bastava chegar do trabalho com o fígado ruim pra coisa ficar preta; não, preta não, roxa.
Eu sentia muita falta da minha mãe, mesmo com ela ali ao lado. Ela aguentou pressão a vida inteira, não tinha nenhum recurso natural onde se apoiar, e por isto não tinha como se rebelar. A mãe e o marido a sufocavam, cada um a seu modo, levando-a adotar, para não piorar as coisas, uma atitude de omissão (pelo menos é esta a leitura que faço).
A luta não se dava apenas dentro de casa, eu tinha que sobreviver às hienas das ruas e aos valentões da escola.
Acho que um ano após eu ter tirado aquela foto, nós voltamos a residir no centro velho de São Paulo, mais exatamente na Rua Aurora. Fui matriculado no colégio centenário Caetano de Campos que nesta época ficava na Praça da República. Tive que fazer uma prova de admissão e como até aquele momento eu era bom aluno, passei com folga. Era um colégio austero, todos os dias antes de entrarmos para as classes, formávamos fila e com as mãos no coração entoávamos o Hino da Independência, o Hino da Bandeira e o hino Nacional.
A diretora, Dona Carmela, ficava lá no alto da escadaria, como uma divindade, de olhos agudos e pretos, cabelos presos num coque perfeito, blusão de peles e um broche de pedra reluzente.
A sala de aula era tomada por silencio fúnebre, nossa professora, a tia Odete, mulher severa e implacável não admitia bagunça ou conversa. Qualquer deslize e éramos castigados com reguadas, cascudos, beliscões, puxões de cabelo e orelhas. Alguns de nós chegou a levar bofetadas na cara. Eu, uma menina negra, bastante grande para sua idade, e um garoto chamado Camilo éramos suas principais vítimas.
Foi um dos períodos mais duros da minha existência, o clima no lar era complicado e a cidade em si, não era aconchegante, piorava em dias de chuva. Diferente do bairro anterior, eu não brincava fora de casa, os únicos momentos mais alegres (se posso dizer assim) eram no pátio da escola, mas mesmo um ambiente severo como aquele não estava imune à bagunça e à balburdia, posso mesmo dizer que naqueles dias fui testemunha de embates violentos entre meninos na faixa de 11 a 14 anos. Quando garotos de turmas rivais se esbarravam nas brincadeiras de pique-pega, logo um deles berrava a plenos pulmões: "Filho da putaaaaaa!" e se agrediam trocando socos e chutes. Em volta deles um espesso círculo humano de jovens entoavam em uníssono, batendo palmas: "Bicha, bicha, bicha...", para logo serem dispersos pelos bedéis e os brigões levados à secretaria.
Os dias em que haviam aulas de matemática eram um pesadelo em particular. Sempre tive certa dificuldade em entender a matéria e num dia que não dá pra esquecer, a tia Odete explicava algo complicado (seria equação do segundo grau?), ela usava para apontar os números no quadro negro uma espécie de caneta em que ela puxava a ponta e esticava como uma antena interna de rádio. Ela me flagrou conversando com outro menino e disse que se estávamos tão à vontade para bater papo é porque dominávamos a matéria. Fomos convocados a dar a explicação à turma. Primeiro foi o outro garoto (se bem me lembro, também se chamava Eduardo). Ele se saiu bem. Eu que já tinha fobia em ser o centro das atenções, gaguejava como um pateta. Eu não sabia patavina do que estava na losa. Aquele negócio que parecia antena de rádio desceu sobre minha cabeça e braços um sem número de vezes, provocando galos e vergões. Minha humilhação era tanta que eu não sentia vontade de chorar, nem mesmo sentia raiva, eu só queria que aquilo parasse logo, poder voltar pra minha carteira e ficar em paz, a sós comigo mesmo. Neste dia minha mãe apareceu na escola, nem lembro mais porque, e foi até a minha sala. Meu suplício já tinha terminado e lembro da professora pálida e titubeante. Mas eu nunca comentei nada. Neste ponto alguém aí poderia se perguntar: "Os pais dos alunos nunca tomaram uma providência?" Não sei quanto aos demais, mas meu pensamento à época era que se em casa eu apanhava por qualquer besteira, a Dona Odete poderia também faze-lo por um motivo mais justo, afinal ela era a minha professora, e tinham incutido em mim que a escola era uma extensão da minha casa. Não me agradava tampouco a ideia de ser um dedo-duro e principalmente temia o fato de que qualquer manifestação da minha parte pudesse, com uma possível queixa dos meus pais no colégio, me colocar em destaque perante a um grande público. De forma que sempre achei melhor deixar como estava, sempre haveria uma situação pior pra passar e nem em todas encontraríamos a proteção desejada. Seria melhor eu ir aprendendo desde cedo. E assim fui sobrevivendo naquele local que mais parecia uma prisão, ou um quartel militar, pra mim dava no mesmo.
Devo deixar claro aqui que apesar do rigorosismo de minha avó, eu a amava com amor incondicional e sua morte deixou uma lacuna nunca preenchida.
Quando moleque eu admirava meu pai, sua fisionomia fechada, suas observações sempre ferinas, sua gravata e paletó, seu jeito positivo e nada covarde perante pessoas de maior envergadura, fossem físicas ou de ordem social.
Quando o final do ano letivo chegou e nos despedimos da tia Odete, foi com tristeza. Ela era rígida, mas ensinava como ninguém, contava histórias e casos como a nos preparar para a vida.
Digo isto por não concordar em absoluto com as intenções do governo em tirar dos pais o direito de disciplinarem seus filhos como melhor lhes aprouver.
Hoje vejo meninas de 12, 13 anos tomando decisões independente das opiniões de seus genitores e crianças de colo literalmente esbofeteando suas mães. Nas escolas, uma legião de mentecaptos ameaçam os professores na certeza de que são intocáveis.
Minha infância não precisava ser tão amarga, e o mundo de hoje não devia ser tão carente de sensibilidade e inteligência. O pior é saber que a maioria de nós é incapaz de encontrar o meio termo.
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Puxa, Eduardo! Encontrar esse meio termo seria mesmo o ideal. Vejo com tristeza que as novas gerações estão num mato sem cachorro, tecendo pra elas mesmas, um futuro assustador do ponto de vista familiar. Também apanhei um pouco da minha mãe e nem por isso consigo sentir raiva. Acho até que tive muita sorte, pois apanhei "na medida". Acho que nem mais nem menos do que era necessário. Essa lei pode ser um tiro pela culatra. Lógicamente não estou advogando o uso da violência pura e simples. Os tempos eram outros em nossa infância.
ResponderExcluirEnfim, o caminho do meio pode ser uma
utopia. Desejável e ideal, mas no andar da carruagem, uma utopia.
O seu desenho ficou muito expressivo.
Ótima semana,
Abração,
Evidentemente, ninguém defende a idéia de educar os filhos na base da porrada, eu por exemplo nunca dei uma palmada na minha filha e ela sempre me respeitou, mas disciplina é necessária, o adulto tem que se fazer respeitar e umas palmadas as vezes ajuda a mostrar quem está no comando, é fato é que a 30 anos atrás os jovens respeitavam mais os mais velhos e isso porque o que alguns podem chamar de educação arcaica era a via, ainda que torta, para que o ego que grita dentro de todo o ser humano pudesse ser domado. É a minha opinião.
ResponderExcluirObrigado Gilberto, e um grande abraço.