Meados dos anos 1970. Eu vivia em Brasília. Era péssimo aluno, tinha poucos amigos, sofria bullying na escola, sonhava em ser um campeão de artes marciais, ávido por cinema e histórias em quadrinhos, principalmente as de terror (revista Kripta) e Spirit (cujo material era escasso, o que tive acesso naquela época foi o que saiu na revista Gibi, uma publicação da Editora Globo). Gostava muito de desenhar mas não era dedicado, fazia uns péssimos quadrinhos única e exclusivamente para meus desabafos (como hoje) e só quem os lia eram uns poucos colegas que não passavam de dois ou três. Me sentia muito triste e queria estar sozinho, sossegado no meu canto, imerso em meu mundo de sonhos, mas sempre havia alguém para encher o saco. Eu me relacionava com as pessoas como quem atuava num palco.
Certa vez, talvez nos primeiros meses de 1978, eu folheei um exemplar de uma revista gringa em formato magazine (como o da Veja) na livraria Sodiler do Conjunto Nacional com o sujestivo nome de Heavy Metal. O que me chamou a atenção foi a arte da capa, magnificamente executada. Fiquei maravilhado! Eu não sabia que existiam publicações como aquela! Quadrinhos adultos de ficção e fantasia com papel de excelente qualidade e cores vibrantes. Como não podia deixar de ser, era um produto muito caro. Nossa moeda muito desvalorizada em relação ao dólar, pra variar.
Mesmo companheiros com um poder aquisitivo muito melhor que o meu, como Luca e Ariel, não podiam se dar ao luxo de comprar a dita revista mensalmente, então eles revezavam, tipo, um comprava uma num mês e o outro no próximo, como uma espécie de sociedade. Só assim eu tive oportunidade de acompanhar um pouco mais de perto aquele valioso material.
Foi na Heavy Metal que pude conhecer melhor o trabalho a cores do Richard Corben e ser apresentado aos lendários artistas europeus como Phillipe Druillet, Enki Bilal, Alain Voss (um franco-brasileiro), Phillipe Caza e o grande Moebius entre tantos, cada um com um trabalho melhor que o do outro. É bem verdade que meu inglês nunca me permitiu entender detalhadamente o teor das histórias, mas eram imagens que falavam mais que as palavras.
Só sei que pensava comigo que se um dia eu fizesse quadrinhos seria nos moldes que eram apresentados naquela revista. Eu penso que, sem modéstia alguma, hoje meu Zé Gatão poderia muito bem ser publicado nela. Sei que algo assim nunca vai acontecer mas eu creio ter atingido um objetivo comigo mesmo.
A Heavy Metal na verdade foi a versão americana da publicação francesa Metal Hurlant, criada em 1974. A edição americana nasceu em 1977.
Quando comecei a trabalhar com carteira assinada em 1984 eu decidi que faria a minha coleção de Heavy Metal, ainda que doesse bastante no bolso. Peguei uma fase muito boa da publicação que foram os anos de 1984 e 1985. Um tempo depois ela ficou com um número maior de páginas, lombada quadrada e se tornou bimestral, com histórias completas ao invés de narrativas serializadas, me dando assim a chance de optar apenas pelo número que me interessasse, isto me proporcionou um fôlego maior para continuar comprando.
Embora tivesse o status de cult a Heavy Metal, talvez por seu conteúdo violento e por conter cenas de sexo, nunca foi um sucesso de vendas, ameaçada de cancelamento foi comprada pelo Kevin Eastman, um dos criadores das Tartarugas Ninjas em 1991 e a sustentou pelos anos seguintes.
Minha coleção de 1984, 1985 e edições bimestrais devidamente encadernadas. |
Não lembro direito se foi em 1995 ou 1996, eu, com melhores condições e o Real estável, fiz, via Devir, uma assinatura da revista. Até 1999 eu mantive a minha coleção, sempre com excelente conteúdo, mas para mim estava longe de ter a mesma magia daqueles anos iniciais. Decidi encerrar minha relação com a revista.
A Heavy Metal teve sua edição brasileira. Primeiro a frustrada tentativa com uma versão totalmente tupiniquim chamada Metal Pesado, só com artistas nacionais, que durou seis edições. Com honrosas exceções o conteúdo não era lá essas coisas. Teve uma também com o título de Brasilian Heavy Metal editada pelo pessoal da Comix.
Mas a publicação brasileira do material original deu as caras por aqui, se não me falha a memória, em 1995. Não foi bem de vendas e foi cancelada depois de uns bons números.
Hoje, pra falar a verdade nem sei como ela anda. Certa vez, na livraria Cultura aqui de Recife me deparei com uma na seção de importados, tinha o mesmo perfil mas nem de longe lembrava as primeiras edições.
HEAVY METAL, O FILME.
Eu tinha ouvido falar que fariam uma versão da Heavy Metal em desenho animado na própria revista. Estava morando no Rio de Janeiro quando lançaram nos cinemas. Era o ano de 1981. Lembro que assisti a uma sessão num cinema da Tijuca, o local quase totalmente vazio. Era uma tarde medonhamente nublada, destas que te fazem pensar que os espíritos malignos estão soltos na atmosfera. Eu estava a caminho do Hospital da Polícia Militar para visitar Hans, um amigo que estava internado lá (ver postagem: http://eduardoschloesser.blogspot.com.br/2015/06/sobrevivendo-entre-facistas-nazistas-e.html).
A animação se comparada a alguns animês de hoje é fraca, mas foi impactante ver na tela grande os mesmos elementos onipresentes na publicação, cenas de nudez, sexo e muita violência. Devo ter assistido mais de 10 vezes só nos cinemas, inclusive no Cine Brasília quando retornei à Capital Federal. Para os amantes de fantasy and ficcion aquilo marcou uma época.
Vejam o trailer:
Não consegui comprar o VHS quando lançaram no Brasil, mas não perdi o DVD. Ele está lá, junto a outros clássicos que nunca mais assisti. O tempo vai se tornando um inimigo muito mais ferrenho a medida que envelheço.
A revista Heavy Metal merecia este registro pois com certeza ela foi grande inspiradora na forma como crio meus quadrinhos.
Fiquem todos bem e até próxima postagem na semana que vem, se Deus quiser.
Gostei de seu relato.
ResponderExcluirMe lembro que descobri a Heavy Metal numa reportagem da Herois do Futuro, uma revistinha informativa, que mostrou um HQ curta de (veja só...) Richard Corben! Já tive esse exemplar dela. É preciso vasculhar sebos pra achá-la e sujas as mãos de poeira. Ou não! Hehe!!
Se quiser, posso procurar e te mandar.
Já achei uma HV na "única" biblioteca pública de Alvorada, com uma capa (e matéria) do 2º filme, estrelado pela guerreira morena inspirada (e dublada) pela mulher do Eastman: Julie Strain.
Mas, a história que me chamou atenção... foi Astroporto. do espanhol Alfonso Azpiri, com seu estilo erótico cartunizado num ambiente espacial (claro!) e uma loirinha safada boazuda pra cacete.
Outro artista com que agrada aos olhos (e hã... me levou ao delírio), mas nunca li nada dele... é Massimiliano Frezzato, que inspirou (por exemplo) o gaúcho Edh Müller (desenhista/designer de jogos).
Opa, Anderson!
ExcluirCara, agradeço muito mas não precisa se preocupar em procurar a revistinha com a hq do Corben. Na verdade eu conheço a publicação, já tive ela em mãos quando trabalhei numa banca de jornal no centro de São Paulo e a história do Corben eu já tenho numa das edições da Heavy Metal.
Cara, tanto Azpiri quanto o Frezzato eram figuras frequentes nas Heavy Metal dos anos 90, tenho várias histórias deles na minha coleção. Grandes artistas! Preciso inclusive revisitar este material, como já disse antes, meu problema é tempo.
Sei lá se é cisma minha ou não tenho mais visto este tipo de publicação, mas a impressão que dá é que não há mais espaço para autores e histórias como as que víamos em revistas de si fi e fantasia.
Tirando a extinta Animal, que tinha autores europeus, americanos/alternativos, coisas trashs e brasileiros... acho que o outro "estouro" de material autoral foi quando em 1999 (até 2002), várias editoras lançaram revistas em estilo mangá (como Holy Avenger, que fez sucesso), hentais nacionais (uns até bem feitos)... além da GraphicTalents (antologia temática, em formatinho) da Escala, a mesma que criou a HQ, que era uma outra espécie Heavy Metal só com brasileiros.
ResponderExcluirMeu, um dos meus orgulhos é ter toda a coleção da Animal e também da Kripta (do 01 ao 60). A Animal trazia o que de melhor a Europa produzia naqueles tempos além, é claro, do material alternativo da Caniballe, Frigidaire e El Víbora, além, como você mesmo lembrou, de algum material nacional com o Osvaldo Pavanelli. E tinha aquele suplemento chamado de Feio, Sujo e Malvado! Pena que acabou cedo.
ExcluirHoly Avenger eu não curtia e o Graphic Talents foi uma grata surpresa e um excelente empreendimento que revelou alguns talentos brasileiros. Eu curti muito o Galo Costa, o Lobo Guará e é claro, Os Carcereiros do nosso amigão Nestablo, e tudo isso por apenas 1 real. Teve uma que não consegui comprar que foi os Pleistocênicos, de uma artista conhecida por Dadí que já havia criado Os Bichos do Mato para a Escala. Teve também a Velta do Emir e Betty Grupy do Maxx, mas estas eu deixei passar.
O caso, meu caro Anderson, é que os quadrinhos nacionais de banca morreram e estão sepultados por muitos e muitos metros de terra.
Infelizmente, concordo na questão das bancas. Pra se ter hqs nacionais produzidas até hoje, só nos restou meios independentes (como fanzines e revistas bancadas por nós mesmos) ou que, com muito custo, só saem em revistarias/comic shops.
ResponderExcluirIsso, hoje em dia para se publicar só mesmo com a ajuda do público (financiamento coletivo) mas fica restrito a uma audiência limitada, ou então bancando do próprio bolso. Mas não há retorno que justifique a dor de cabeça, fica então a vaidade de ter a produção comentada e elogiada nas redes sociais. Isto é mercado de HQ? Eu até que dei sorte dos meus livros terem saído por editora de renome, mas não é divulgado e nem comentado, senão por uns poucos fãs. Mas vamos batalhando com paciência. Desistir e não fazer nada é que não pode, né?
ResponderExcluirAbração.