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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O MESTRE EDGARD COGNAT.




Continuando as memórias do tempo que fui infeliz no Rio de Janeiro. Se não me engano a última vez que relembrava estes tempos foi na postagem intitulada SOBREVIVENDO ENTRE FASCISTAS, NAZISTAS E RACISTAS (caso você não tenha lido, pode acessar aqui: http://eduardoschloesser.blogspot.com.br/2015/06/sobrevivendo-entre-facistas-nazistas-e.html).

Paralelo aos acontecimentos na casa do Hans e sua família, eu ganhava uns parcos trocados pintando cenas bucólicas em batistérios de igrejas e fachadas de algumas casas de subúrbio, estas paisagens eu criava usando tintas acrílicas próprias para pinturas de paredes e pigmentos para dar cor, eu tinha intuitivamente uma boa noção do uso das cores (usei estes mesmos recursos muitos anos mais tarde, já como artista profissional, para pintar imagens para os cinemas do centro velho de São Paulo), mas nunca tive uma aula formal sobre cromatismo. Como gostava de desenhar rostos de mulheres bonitas, alguém sugeriu que eu poderia ganhar muito dinheiro fazendo retratos. O sargento Verdugo fora, em sua mocidade, modelo da Escola de Belas Artes e me apresentou ao Edgard Cognat, um sexagenário acadêmico oriundo da mesma escola, pupilo do famoso Carlos Chambelland. Embora não admitisse alunos novos (seus aprendizes eram pessoas de meia idade, velhos conhecidos da Escola) ele fez uma exceção me aceitando em consideração ao Verdugo. O tal curso acontecia na casa dele, situada Rua Bueno de Paiva, no Méier, sempre aos domingos pela manhã. Me deram uma lista de materiais para comprar: papel, carvão, dois tipos de pinceis, borracha e uma flanela.
No dia que me apresentei não mostrei ao Edgar nenhum desenho feito por mim anteriormente, não seria de bom tom, o professor não iria me avaliar pelos meus traços amadores, ali eu ia começar do zero!

Era um estúdio soturno, austero, mas muito fresco e aconchegante, haviam telhas de material transparente em pontos estratégicos do local para captar bem a iluminação natural da manhã. Haviam muitos quadros e gravuras pelas paredes e um grande número de telas pintadas - algumas de grandes dimensões - envoltas por tecidos. Sempre tive muita curiosidade de ver mas nunca com coragem para pedir que o mestre me mostrasse. 

As maiores contribuições do Edgar à minha arte foi educar o meu olho, me ensinar a “ver”, muitos artistas não tem o poder da observação arguta, não conseguem perceber os detalhes sutis onde um rosto se assemelha a outro ou as delicadas nuances entre o chiaroscuro. O outro legado, talvez o mais importante, foi desenvolver a paciência. Todos temos o sentido de urgência, estamos sempre afoitos, se queremos algo tem que ser na hora, nos aborrecemos na fila de um banco, a espera de alguém que se atrasa e por aí vai. Em arte não é muito diferente, vemos o branco do papel e logo queremos que uma imagem perfeita se forme com todas as suas texturas e profundidade. Muitos artistas talentosos se apressam em concluir um trabalho e conseguem feitos espetaculares mas perdem o principal que se situa entre o início e o fim que é o prazer da criação, não digo com isto que você tenha que ficar ad eternum com um trabalho nas mãos, o tempo de cada um para a elaboração de uma obra é algo relativo, uns levam um dia para fazer o que outro levaria três ou quatro, o que quero enfatizar aqui é que se não houver um motivo forte, como um cliente que precise de resultados para ontem, não há porque se apressar. Conheci pessoas com muito potencial mas sem calma para burilar uma  arte. O resultado muitas vezes fica ótimo para o leigo mas duvidoso pra quem é da área.

No ateliê do Edgar eu permanecia afastado dos demais; diante de mim um cavalete com uma imensa folha de papel (se a memória não me falha, era um Fabriano), nas mãos, carvão (carvão mesmo, não lápis-carvão), um pincel Tigre 24 e uma pequena flanela; distante de mim uns dois metros, uma peça de gesso.  Eu deveria desenhar na escala correta aquilo que via. Simples assim, sem nenhuma instrução ou dica. Fiz o que foi ordenado. Edgard não ficou me observando, ele saiu da sala para dar atenção aos outros alunos, sabia que ele estava me testando. Consegui um bom resultado no meu primeiro dia, ele não demorou muito e retornou para ver como estava o meu desenvolvimento e balançou a cabeça em sinal de aprovação, eu havia centralizado bem, no papel, o esboço com linhas suaves aquela placa de gesso em alto-relevo  que lembrava um ornamento de flores. E aí veio a primeira instrução, medir com a ponta do pincel o trecho a ser desenhado para a escala ficar correta. Eu começava aí a educar o meu olho, a observar os detalhes como nunca tinha feito antes. Levei uns três domingos em cima daquela peça e achava que ela já estava legal o bastante, com boa luz e sombra conferindo um volume bacana, mas o Edgar achava que eu podia melhorar aquilo, então eu forçava mais o carvão nas partes escuras e esfregava com cuidado o pincel esfumando o desenho mais e mais dando ao trabalho um tom cada vez mais realista, depois limpava o pincel com flanelinha e repetia a processo até a coisa saltar aos olhos. Eu estava evoluindo a minha persistência. Até que por fim ele me orientou a evidenciar a luz com uma borracha macia e disse que o resultado estava muito bom. Assinei o trabalho e passei o fixador.

No fim de semana seguinte uma nova placa de gesso com um relevo ainda mais complicado e passei o mesmo processo, sempre ouvindo do Edgar suas teorias sobre pintura. Ele não gostava de tv a cores, elas deseducavam os olhos, não eram matizes reais, falou da importância de se trabalhar sempre a partir do natural e evitar copiar fotografias; seus monólogos sempre com muitas citações de filósofos e escritores famosos.

Por fim comecei a trabalhar com outras formas de gesso, bocas, narizes, orelhas, olhos e bustos, sempre com o mesmo método, calculando o que eu via tendo o braço esticado na altura dos olhos, medindo o objeto observado com o pincel e trabalhando as formas com o carvão, esfumando com o mesmo pincel até que se apresentasse um relevo como se a figura estivesse saindo do papel.
“Muita gente não consegue em anos o progresso que você teve em alguns meses, você tem muita sensibilidade!” Foram as palavras do mestre, um elogio que guardo com muito carinho. 
Infelizmente apenas uns dois estudos daquelas aulas sobreviveram ao tempo e não estão comigo, os outros se perderam em inúmeras mudanças que fiz.

Graves problemas pessoais não me permitiram continuar aqueles estudos, eu esperava muito trabalhar com modelos vivos e partir para as cores, mas não foi possível. Contei ao professor as desditas pelas quais passava, sem dinheiro não iria conseguir pagar as mensalidades, talvez tivesse que interromper as aulas por um tempo, ele lamentou e disse que eu poderia voltar quando quisesse. Me despedi com um até breve mas tive que retornar à Brasília e nunca mais o vi.


Tive aulas com modelo vivo na faculdade de artes mas nem de longe posso comparar com as instruções do Edgard. As cores sempre me deram muito medo, contudo venci esta barreira comprando tintas, pincéis, solventes e tudo o mais e comecei minhas experimentações em placas de madeira e papelões, até atingir um nível satisfatório e partir para as telas. Fortemente influenciado por Frazetta, Boris Valejo e Greg Hildebrandt, tentando emular suas pinceladas, eu criava minhas cenas de ação e fantasia, sempre persistindo em melhorar e encontrar meu estilo, acertando, errando na maioria das vezes mas nunca desistindo. Entretanto detalhes deste período ficam para uma outra postagem.


Quando o primeiro álbum do Zé Gatão veio a público em 1997, meu irmão André me aconselhou a enviar um exemplar para o Edgar. Refutei dizendo que um material com aquele conteúdo nunca seria visto com bons olhos por alguém com uma visão tão tradicional da arte. Meu irmão achou que eu estava errado, independente do que fosse, o aluno dele havia conseguido um feito, pôr no mercado um álbum de quadrinhos bem ousado, ele iria ficar orgulhoso. Meu irmão sempre foi um romântico, embora ele não admita. Contudo, Edgar Cognat jamais conheceria o Zé Gatão, ele havia morrido em 1994.


Nunca entendi como um artista do porte dele não tivesse o reconhecimento que merecia. Tem pouca coisa dele na internet, as imagens vistas aqui são as poucas obras que encontrei com qualidade razoável.
Caso alguém queira informações sobre ele acesse: https://en.wikipedia.org/wiki/Edgard_Cognat

Tive o privilégio de ver in loco o autorretrato abaixo. Uma grande obra, a reprodução aqui não faz
justiça ao original, acreditem.


Os momentos no seu ateliê foram os melhores na Cidade Maravilhosa, Edgar. Muito obrigado por tudo!















6 comentários:

  1. Que história bonita, Schloesser! Posso estar viajando, mas lembra aqueles momentos em que um aprendiz de artes marciais encontra um grande mestre e é reconhecido por ele. As pinturas são incríveis! Abraço!

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    1. É bem por aí mesmo, Carla.
      Sabe, um tempo depois disso eu meio que abandonei os desenhos para trabalhar em outras coisas que não envolviam arte, inclusive cheguei a ingressar na Polícia Militar de Brasília onde fiquei um ano e meio, neste período meu traço regrediu sensivelmente, só fui recuperar "a mão" efetivamente quando nos mudamos para São Paulo onde decidi que tinha que pegar "o touro pelos chifres" e não soltar mais, foi aí que notei a diferença que fez os ensinos do Edgar na minha vida.

      Obrigado e um abraço.

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  2. Não conhecia esse Mestre, Eduardo... Que pena você não ter ficado mais tempo sob seus ensinamentos...me pareceu um grande professor!
    Seu texto também está ótimo, delicioso de se ler. Parabéns!
    Ótima semana aí,
    Abração

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    1. Infelizmente, Gilberto, muitos mestres não são conhecidos, seja nas artes, nas ciências e até na política. Temos um problema sério no Brasil, tenho certeza que poucos jovens de hoje sabem quem foram Frei Caneca e José Bonifácio, verdadeiros heróis da independência do Brasil, quanto mais os artistas que nunca foram badalados por algum movimento como foi o caso daquela porcaria de semana de arte moderna; bem sei que ninguém tem obrigação de conhecer o Edgar, ou o Chambelland, seu professor, mas alguém sabe quem foi o Péricles, o cartunista que criou o Amigo da Onça? Ou o Carlos Estevão? Poucos, talvez nenhum. Não estudamos história, ela não nos interessa se não estivermos diretamente inseridos nela. C´est la vie.

      Obrigado por sua visita e comentário, meu amigo.

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  3. Bacana! Pena que os contratempos não o possibilitaram de retomar contato com Edgar, antes que falecesse.

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    1. Sim, Anderson, infelizmente não foi possível dar continuidade, tudo o que veio a partir dali eu tive que cultivar eu mesmo, mas o que aprendi com ele fez toda a diferença.

      Abração.

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