img { max-width: 100%; height: auto; width: auto\9; /* ie8 */ }

quarta-feira, 4 de junho de 2014

NÉCTAR, AMBROSIA E FEL. Um conto de Zé Gatão escrito por Luca Fiuza e ilustrado por Eduardo Schloesser.



ANDROS. Gigantesca e imponente megalópole do norte. Prédios colossais e altíssimos que se perdiam no magnífico azul do céu. Brilhava ao sol a estrutura envidraçada que os compunha. Um deles era mais alto, com ar mais imponente e agressivo. Era este edifício conhecido como Olímpia, ou no jargão popular, Monte Olimpo.
Fazia meses que Zé Gatão estava vivendo naquela enorme e turbulenta cidade em seu movimento incessante tanto de dia quanto de noite. Trabalhava como DJ em uma rádio local que tinha certa expressividade. Estava ali em tempo integral fosse de dia, de noite ou de madrugada. Folgava todas as terças-feiras. Ganhava o suficiente para alugar um quartinho na região mais modesta da cidade. Comia relativamente bem em pequenos restaurantes próximo de onde morava.  Gastava parte do seu dinheiro indo ao cinema, ou saindo com gatas de vida fácil que pululavam na área do baixo meretrício, cheia de bares e inferninhos, frequentados por punguistas, vagabundos, boêmios e toda sorte de pequenos larápios.
Zé Gatão estava revelando uma banda de garagem chamada Os
Paquidérmicos. Era formada só por elefantes. Uma bela aliá era a vocalista do grupo. Tinha uma voz rouca extremamente sensual. Suas canções estouravam no rádio e algumas apresentações que fizeram em bares e boates do Centro causaram uma enorme sensação. 
Certa tarde, um gato preto de pequena estatura, muito bem vestido procurou o dono da rádio e expressou o desejo de falar com seu melhor DJ. O felino cinzento estava na sala de som, terminando um programa. Vestia uma camisa verde musgo justa de mangas compridas dobradas, exibindo seus poderosos antebraços. O cabelo amarrado em um rabo de cavalo. Usava calças de um marrom escuro e botas pretas de cano curto. Tinha o ar compenetrado, falando ao microfone com voz clara e melodiosa que deixava as ouvintes totalmente alucinadas.
Ao ouvir um ruído na porta Zé Gatão se virou e qual não foi sua surpresa quando reconheceu Félix, um antigo amigo de infância, o qual não via há anos.
- Félix! Que surpresa, rapaz!
- O mesmo digo eu, meu velho! Mundo pequeno, hein? – Abraçaram-se. Félix continuou: - Fiquei sabendo que um DJ desta rádio está lançando uma banda que já está dando o que falar! Nem em sonho eu podia imaginar que este DJ era você!
- A gente faz o que pode! Mas que posso fazer por você?
- Sou um empresário musical de médio porte e farejei o potencial destes Paquidérmicos! Bem, sou amigo de um empresário musical de alto coturno desta maldita cidade! É dono da gravadora TROMBETAS CELESTIAIS a mais foda da área! Ele é o cara! Se fizermos um contrato com ele a ascensão dos Paquidérmicos será meteórica e nós vamos junto! Vamos cagar dinheiro, meu chapa!  
Zé Gatão deu um leve sorriso ante a euforia do amigo. Este prosseguiu ainda mais eufórico: - Daqui a duas semanas vai ter uma recepção na residência dele. Já ouviu falar do Monte Olimpo?
 - O Olímpia? Já. O que você tem em mente, Félix?
- Tenho convites. Vá até a Alfaiataria Safira Azul. Já deixei o alfaiate avisado. Mande fazer um fraque! Não se preocupe com o preço! É por minha conta! Não diga nada! Tome este cartão. Depois me ligue! Quero conhecer a banda e conversar sobre os velhos tempos em um lugar tranquilo. Que tal amanhã?
- Está bem. À tarde nos avistaremos com o pessoal da banda. No início da noite a gente dá uma saída. Tudo bem?
- Beleza, mermão! Até amanhã. – Depois que Félix sai, o felino cinzento fica pensando naquela feliz casualidade de reencontrar um velho amigo depois de tanto tempo.
Félix ficou maluco ao ouvir a audição dos Paquidérmicos. Não parava de repetir a palavra “foda”. Imediatamente após a apresentação, ligou para o poderoso dono da gravadora TROMBETAS CELESTIAIS e acertou a ida à recepção. Iriam ele com a esposa, os elefantes da banda e Zé Gatão na qualidade de representante da rádio. Mais à noite o felino saiu com seu amigo Félix. Jantaram em bom restaurante, novamente por conta de Félix. Quando Zé Gatão quis fazer objeções, constrangido, Félix disse pra ele se fuder! Amigo era para estas coisas. Quando a banda estourasse nas paradas, dinheiro seria o menor dos problemas de Zé Gatão. O felino taciturno não disse mais nada. Depois Félix pediu que dessem uma chegada no baixo meretrício para darem umas trepadas. As gatas que Zé Gatão arranjou eram fogosas e deixaram Félix pirado! Ele trepou como um louco. Zé Gatão foi mais comedido, mas satisfez sua parceira integralmente. Pelo menos este programa o felino acinzentado pagou do próprio bolso. Mais tarde, deitados no escuro em lençóis relativamente limpos, as duas gatas e Félix estavam ressonando em uma velha cama King Size. Zé Gatão se achava ainda acordado no canto direito. O grande gato ficou pensando que todo o dinheiro de Félix por algum motivo, não o fazia feliz no casamento.



Diante do imponente Olímpia, ou Monte Olimpo como era mais conhecido, estava movimentado. Carros luxuosos não paravam de chegar. Elementos ricos da sociedade, políticos e jornalistas acorriam à grande e seleta recepção de um dos mais poderosos empresários do ramo musical que se tem notícia. Félix, a esposa, uma deslumbrante gata branca, Zé Gatão e os membros da banda adentraram no edifício por um compartimento privado, guiados por um cão grandalhão e orelhudo que parecia ser um tipo de assessor particular do mega empresário. Tomaram um elevador expresso de portas trabalhadas e interior extremamente belo. Ao chegar a um dos andares mais altos, foram revistados por cães de guarda de ar feroz, comandados por um dálmata de expressão facial austera. Todos estavam vestidos de maneira impecável. Usavam óculos escuros. A impressão de não portarem armas era um fato meramente ilusório.



Foram deixados em uma sala ampla, ricamente decorada.  De repente um enorme painel diante deles iluminou-se e em uma tela translúcida apareceu uma imagem meio distorcida e bastante indistinta. Uma voz cava, meio tremida se fez ouvir.
- Sejam bem vindos ao meu santuário. Abençoados sejam. Sintam-se em casa, meus filhos! – A imagem se fixou. A face alva de um carneiro das montanhas se delineou. A seu lado estava seu chefe de segurança o austero dálmata, impávido e solene. No olhar do ovino majestoso, misturavam-se severidade, poder e uma espécie de compaixão magnânima como a de um pai por seus rebentos imaturos e inconsequentes. O único que não se surpreendeu com a visão daquela figura foi Félix que falou de modo respeitoso.
- Aproveitei o convite para a grande recepção e vim lhe apresentar uma banda fantástica que está fazendo grande sucesso radiofônico, meu Senhor. Com ela também trago o DJ e representante da rádio RKOYZ FM que os lançou da obscuridade para a luz.
 - Já havia ouvido falar tanto desta banda sui generis quanto deste felino DJ. Tenho acompanhado de longe sua carreira em outras cidades e sua ascensão gradual aqui em nossa megalópole. Fez bem em trazê-los, Félix! Sua esposa cada vez mais bonita!
Em um tom de voz sempre suave prosseguiu:
- Sintam-se à vontade. Meu assessor, Bernardo Saint Clair os conduzirá ao Salão Campos Elísios onde está se realizando a recepção. Solicito que a banda toque durante o evento. Há no salão um palco montado e devidamente aparelhado com equipamento de última geração. Uma bela noite os aguarda, filhos! Que a banda se apresente e aguarde meu beneplácito. Breve estarei com vocês. Vão em PAZ. A imagem foi empalidecendo até desaparecer por completo na gigantesca tela agora totalmente escura.
         O Salão Campos Elísios estava apinhado de convivas, mesmo assim era tão amplo que ainda sobrava muito espaço para acomodar muito mais indivíduos.
         A apresentação dos Paquidérmicos inflamou o ambiente. Cantaram além de seus sucessos, músicas de variados estilos e de artistas consagrados como Jan Joplin, uma gata hippie falecida há décadas por uso excessivo de drogas. Rock, baladas, Heavy Metal, Love Songs. Tocaram de tudo. Zé Gatão conheceu uma gatinha voluptuosa filha de um fabricante de reatores atômicos. Chamava-se Jade. Não se largaram mais. Félix olhava-os divertido e dançava de maneira sensual com sua esposa, olhando-a profundamente nos olhos. Zé Gatão pensou consigo que até poderia ter interpretado errado aquela noite em que ele e o amigo foram trepar com aquelas gatas da noite. Não devia ter nada errado no casamento de Félix. Como ele próprio, o amigo era um felino e os felinos eram bem ecléticos em se tratando de relacionamento sexual. Ele, Zé Gatão, fugia um pouco a esta regra.
Bebidas finas corriam à solta, caviar da melhor qualidade e os mais variados petiscos a que só ricos tinham acesso. Zé Gatão nunca comera nada daquilo, mas a boa educação que recebera de sua mãe não permitiu que fizesse feio ou se descontrolasse à mesa.
Mais ou menos em torno das duas da manhã, o anfitrião apareceu ladeado pelo seu segurança sempre vigilante, o dálmata e pelo diligente secretário o cão Bernardo Saint Clair. Junto do mega empresário estava uma ovelha simplesmente deslumbrante, possivelmente uma de suas muitas namoradas do solteiro mais cobiçado do momento. Embora já de meia-idade, o apetite sexual do carneiro era lendário. Fez um breve discurso ao som de uma música instrumental suave tocado pela banda. Depois, chamou Félix, Zé Gatão e Sylvia, a aliá líder e vocalista dos paquidérmicos para acompanhá-lo com o intuito de fazerem uma rápida reunião de negócios. Tomaram um elevador ultra expresso para a cobertura onde ficavam os aposentos privados do mega empresário. Ele era conhecido em todo o lugar onde se tocava música no mundo civilizado. Seu nome era Ovinus Lanosowick. Respeitado, admirado, temido e odiado por muitos.
Na ampla sala de reunião, os acertos para gravação e produção de CDs, bem como apresentações por cidades a fora foram acertados com uma penada só. Satisfeito, Ovinus Lanosowick deu um gordo adiantamento em espécie a seus espantados interlocutores e convidou-os a passar algumas semanas em sua companhia para juntos arquitetarem os próximos passos para o grande lançamento da banda os Paquidérmicos na mídia.
Os dias ali vividos foram idílicos. O Monte Olimpo era um verdadeiro universo de prazeres. Uma tecnologia revolucionária chamada de Holodeck.  Ela permitia que em espaços não maiores do que um quarto ou uma sala através de um programa de computador você pudesse, em ambientes programados à escolha do freguês, estar em uma praia paradisíaca, em uma floresta, deserto, pradarias, estepes, um cassino, em outros países ou mesmo outros planetas. O mais interessante é que você podia interagir com pessoas holográficas em 3D geradas por computador como se estivesse vivendo uma fantástica realidade. Até as comidas e bebidas podiam ser sorvidas e o cérebro era sugestionado com uma sensação de saciedade. Zé Gatão e Jade, a gatinha voluptuosa, gostavam de ficar em um bosque bucólico junto de um regato murmurante. Quando estavam com Félix e esposa, iam a cassinos, pescarias de iate no Oceano, shows musicais e dirigiam carros possantes por estradas sinuosas. Era fantástico! Esta tecnologia ainda nem tinha sido divulgada para o mundo exterior e já estava a serviço de um único indivíduo que podia pagar por ela. Apesar do


inusitado e do prazer proporcionado, Zé Gatão achava tudo aquilo uma enorme futilidade. Mas guardou sua opinião consigo. Por mais que gostasse de Félix ele nunca fora um cara reflexivo. Ele e sua esposa eram mundanos. Ambos existiam apenas para aproveitar a vida o máximo que podiam.  Além dos longos momentos de ócio e diversão, sentavam com Ovinus para delinear o trabalho de promoção da banda. O curioso que fora a aliá Sylvia, nenhum membro da banda foi jamais chamado para participar das negociações. Não que eles se importassem, uma vez que passavam todo o seu tempo em uma casa de fumar ópio criada pelo Holodeck. A simulação era tão perfeita que havia o perigo de gerar uma espécie de irreversível vício psicológico. Zé Gatão como DJ também animava as inúmeras festas que Ovinus promovia. Cada evento era realizado em um salão diferente a cada noite e cada um deles tinha um nome sugestivo: Ares, Palas Atena, Hermes, Hefaístos, Afrodite.
Passaram-se quatro semanas. Zé Gatão já estava cansado de ficar ali e manifestou a Félix o desejo de partir na manhã seguinte. Félix olhou-o estupefato! Disse que se possível, ficaria ali o resto da vida. Seu olhar era sonhador, parecia totalmente alheio às ponderações do felino taciturno. Exasperado, Zé Gatão pediu uma audiência com Lanosowick. Em uma antecâmara, contígua ao escritório do carneiro, Zé Gatão tomou um chá de cadeira de mais de duas horas. Quando o deixaram entrar no recinto já tinha contado até mil para não meter o pé na porta e invadir o sacrossanto escritório daquele velho pretensioso. Procurando imprimir um tom moderado à voz, expôs sua decisão de partir imediatamente. Lanosowick olhou-o como se ele fosse uma criança birrenta. Denotando complacência no falar disse:
 - Meu filho, não posso ainda prescindir dos seus serviços.  De mais a mais o que vai fazer lá fora? Aqui você está no paraíso terrestre, nos verdadeiros Campos Elísios, onde você pode ser quem quiser! Pode fazer o que quiser, ir aonde desejar, bastando entrar em um cômodo e mergulhar em universos reais, fictícios ou paralelos sem hora para voltar através do Holodeck. Além disso, tem emprego fixo e é regiamente remunerado. Que mais pode alguém querer?
- Escute, não nasci para ficar preso em uma gaiola dourada! Foi divertido, mas para mim chega! Vou dar o fora deste seu paraíso de merda agora!
A expressão do rosto de Ovinus ficou extremamente sombria, sua voz tornou-se áspera. Lentamente, labaredas de uma fúria intensa fulguravam em seus olhos arregalados, os músculos da face em um fremir incontrolável era uma visão dantesca.



- Filho...! Terá você a ousadia de dar as costas ao Paraíso? Renegará você a redenção?!
- Você é maluco!
- Silêncio, ímpio! Incréu! Como ousa você, um mero mortal blasfemar desse modo?! Como se atreve a me desrespeitar?! Eu que sou o ETERNO?! Desci do Céu a este mundo para arrebatar do fel os Eleitos! Vim saciar os sedentos com o néctar da Paz Celestial! Vim alimentar os famintos com a ambrosia da Remissão! Aos incrédulos e escarnecedores o fogo devorador da minha ira os consumirá! Consumirá toda a carne impura que rasteja sobre esta terra!! Ingrato! Com o soprar do vento divino de minha boca posso lançá-lo às profundezas do Tártaro! Em um piscar de olhos, reverto você ao primitivo pó de onde o formei! NÃO SOU EU O SENHOR DOS EXÉRCITOS? NÃO SOU EU O PRINCÍPIO E FIM? O ALFA E O OMEGA? – Zé Gatão estava abismado. O sujeito definitivamente era louco! E da pior espécie! Um louco religioso! Megalômano! De repente, sua fisionomia sofreu uma alteração drástica. Da mesma forma que a ira divina se acendera nele, agora tomado de uma compaixão profunda, dirigiu-se a seu interlocutor suavemente:
 - Retorne agora a seus aposentos, filho ingrato. Esta noite, entrará comigo em um Holodeck, onde terá contato com a Doutrina Sagrada de nossa Religião. Então, ó FILHO PRÓDIGO, ainda hoje em genuflexo, vai me adorar como seu único deus. Assim, tendo-o de volta ao redil a tudo hei de perdoar, pois você antes estava cego! Mas no porvir seus olhos enxergarão nitidamente iluminados pela luz brilhante da Verdade! Você será o Grande divulgador da Palavra através da música. Aos crentes a absolvição e a Felicidade! Aos descrentes a ruína e a Morte! Você será meu Arcanjo Vingador! Meu Anjo de Luz!
- Não! – Rugiu o felino taciturno. – Lanosowick acionou um alarme silencioso e dois mastins apareceram como que por encanto atrás de Zé Gatão. O felino olhou fixamente para Ovinus e rosnou:
- Carneiro! Tive paciência de ouvir suas baboseiras até agora! Me deixe ir embora em paz, ou terei que rachar algumas cabeças!
- Cães! Prendam o infiel! Sem armas de fogo! Coloquem-no em seus aposentos! Ele vai ter uma doutrinação especial! – Os dois guardas velozmente agarraram o felino cinzento, imobilizando seus braços. Ovinus murmurou, cofiando a barbicha que pendia de seu queixo: - Estranho...Félix e os demais não deram trabalho! Foram doutrinados subliminarmente no Holodeck comum! Você estava com eles. Por que...? Já sei! Você é um mestiço! Talvez seu lado selvagem tenha resistido ao processo! Mas no Holodeck doutrinador onde vou colocá-lo, nem mesmo você poderá resistir! Será meu! Meu para todo o sempre!
- Uma ova! – Zé Gatão mesmo manietado pelos cães, conseguiu soltar-se. Agarrou os dois canídeos pelas gravatas e os chocou um contra o outro com tal violência que o som forte de ossos quebrados se ouviu nitidamente.


Ambos tombaram desacordados. Ato contínuo, o dálmata entrou no local, saltando acrobaticamente. Sua intenção era derrubar o felino e dominá-lo no chão. Aproveitando o impulso do salto do adversário, o grande gato agarrou-o e no mesmo movimento arremessou-o contra a pesada mesa de trabalho de Ovinus. O impacto brutal rachou-a ao meio. Em seus destroços, o dálmata rapidamente mergulhou na inconsciência.
- Bravo! Você será verdadeiramente meu campeão!
- Agora é sua vez, cabeça de merda! – Zé Gatão avançou determinado a dar uma surra exemplar naquele arremedo de deus louco.  Contudo, antes que o felino enfurecido o alcançasse, Lanosowick apertou um botão secreto. O chão se abriu e da abertura emergiu uma figura impressionante. Era um carcaju, também conhecido como glutão ou Wolverine. Era atarracado, quadrático. Musculatura compacta e sólida. Olhos injetados, ódio encarnado!
- Este é Necromantis ou Necro se preferir! Ele é a mão esquerda de deus! Se sobreviver você será a direita! Portanto, lutem em honra de seu Criador, meus filhos! Lutem!
Zé Gatão atacou forte e rápido, no entanto seu soco encontrou o vazio. Por um triz as garras de Necros não rasgam seu peito. Um salto para trás livrou-o de receber um ferimento sério. Sem perder o feroz mustelídeo de vista rasgou a camisa para facilitar os movimentos. Coincidentemente, o carcaju fez o mesmo e avançou já esmurrando em uma sequência rápida com os dois punhos ao mesmo tempo. Zé Gatão mergulhou sob a barragem de murros e aplicou um soco animalizado no plexo solar do antagonista. O ar foi expelido fortemente dos pulmões, sem que Necros conseguisse voltar a novamente inspirar oxigênio. Ainda assim, a fera jogou-se contra Zé Gatão, derrubando-o em cima de um conjunto de poltronas que se achava no canto direito do escritório. A mobília se despedaçou ante o impacto dos corpos daqueles magníficos contendores.  De boca aberta em uma inspirada forçada que fazia arder a garganta e provocava dor atroz nas costelas ao expandirem a caixa torácica, Necro inundou o corpo carente de ar fresco. Com a mão direita, apertou a garganta do felino taciturno, ainda estonteado pela violenta queda. O braço esquerdo se ergueu. A mão em garra pronta para desferir um golpe devastador que transformaria o rosto de Zé Gatão em frangalhos sangrentos. Face cianótica, pulmões em brasa, vista ficando turva, Zé Gatão lutava pela vida. Com as últimas forças restantes deu um tranco que desequilibrou Necros e o fez cair de lado. Antes que seu brutal êmulo se recuperasse, o felino cinzento, respirando rápida e profundamente se posicionou por trás de Necros envolvendo seu pescoço. Aplicou um brutalizado mata-leão e foi forçando cada vez mais até o limite do suportável.   Desista! Pensou o felino. Um
gemido estrangulado escapou da goela de Necro, mas ele não se rendeu. Então, um som repentino, funéreo e seco evidenciou a quebra de seu pescoço. Estava morto.
Esgotado, Zé Gatão ergueu-se do solo. Uma dor de cabeça terrível! Uma enorme sensação de inutilidade! Não era a primeira vez que matava para sobreviver. Mas o cadáver a seus pés não tinha sido um ente livre, dono de si mesmo. Antes fora um peão, um instrumento nas mãos de um fanático! deus falso que decerto já destruíra muitas outras vidas. Uma horda de cães cercava o grande gato, desta vez empunhando pistolas. A um gesto de Ovinus ficaram parados, aguardando ordens. O carneiro maldito dirigiu-se ao felino taciturno:
- Você é fantástico! Que luta! Sabe que até hoje ninguém tinha derrotado o pobre Necro? Em minha benevolência, volto a fazer a oferta para que você se torne meu Arcanjo Vingador. Terá o livre arbítrio, a prerrogativa de um deus. Será um gigante entre anões! – O olhar enojado de Zé Gatão valeu mais do que mil palavras. Até a mente doentia do carneiro enlouquecido compreendeu.
- Que assim seja! Você está expulso do Paraíso! Trabalhará pelo seu sustento e a terra te será maldita! Colherá cardos e abrolhos! Comerá pó todos os dias de sua vida!
- Já conheço esta cantinela! Quanto a Félix e os outros?
- São meus filhos, agora! Levá-los de volta ao Mundo os condenaria a mergulhar em uma insanidade total e completa! Cães! Deixem-no ir! Ele já fez sua escolha.

E Zé Gatão voltou ao Mundo frio e cruel, mas verdadeiro. Deixou para trás um pseudo Paraíso, tendo perdido para aquele horror travestido de idílio, um querido e fiel amigo.

17 comentários:

  1. ESTE FOI O COMENTÁRIO DA MINHA AMIGA CARLA CERES:

    O Ovinus escapou, Luca!? No próximo conto, ele tem que se dar mal. Vou esperar. :) Parabéns pelos desenhos, Schloesser!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eh, Lucão, a Carla te encostou na parede, hein! A resposta tá contigo, mas acho que cê tá devendo um novo conto para responder esta pergunta a ela. Eu pessoalmente, Carla, não acho que o carneiro louco/megalomaníaco/fiadaputa vá se dar mal, é um indivíduo poderoso monetariamente, move praticamente sozinho uma série de engrenagens iníquas, lembrando estes políticos ou líderes religiosos sem vergonha que nunca sofrem as sanções da lei. Lembre-se, o universo de Zé Gatão é pura fantasia mas com um pé bem fincado em nossa realidade. Grato e um abração

      Excluir
  2. COMENTÁRIO DE LUCA FIUZA:

    Meu velho, acabei de apreciar Néctar no Blog! Ficou sensacional! A Carla, fã do Zé Gatão, quer o que todos nós queremos! Que os maus sejam punidos! Mas a vida nem sempre é assim. Como você disse, os poderosos prosperam sobre as cinzas dos que se esforçam, trabalham e procuram agir e viver com honestidade. Eu já havia pensado na época em que escrevia Néctar em uma sequência da história de Ovinus e desta vez sem a presença de Zé Gatão. Está tudo ainda em estágio embrionário. Deixei na gaveta! A Carla quer abrir esta gaveta? Vamos ver a reação do público a Néctar e então veremos e a tal gaveta abre ou não...! Obrigado, velho e agradeça também a ela.

    Lucão.

    ResponderExcluir
  3. É, Schloesser e Luca, vocês estão certos. Droga de realidade! :) Abraços!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mas, minha amiga Carla, não percamos as esperanças de ver o carneiro metido a deus entrar pelo cano, como o Lucão falou, se este conto tiver uma boa receptividade junto ao meu público, ele poderá escrever outro conto dando um destino adequado a este animal que tantas vidas destruiu. Mas sei lá, não estou muito animado, sei que ainda é cedo mas até agora não obtive retorno por aqui. Zé Gatão nunca foi muito popular, mas vamos ver.

      Uma abração e obrigado.

      Excluir
  4. Não vejo muito a necessidade de um desfecho moral para o carneiro,já que a lógica do mundo não é tão cartesiana quanto a moral greco-romana quer fazer crer ser. Hitler,ao morrer com um tiro na cabeça,não compensou,quantitativamente,todas as inúmeras perversidades comandadas,ou ao menos consentidas,por ele. Creio sim,numa logica universal,porem,sem ter nada haver com a necessidade humana de compensação do mal sofrido. A citação do final do conto à Gênese da Bíblia,relegando o Zé Gatão ao livre arbítrio e suas conseqüências,e o Zé Gatão optar por isso,mesmo sabendo para onde estava voltando,me parece muito mais humanamente verossímil,e por isso mesmo,extremamente dramático. Conto,alem de questionar princípios do livre arbítrio e o egocentrismo característico do ser humano,trás as ilustrações carregadas de expressividade do exímio mestre Eduardo Schloesser,que num contraponto da textura granulada com a leveza de um traço de contornos concisos,mais uma vez mostra toda a força de sua arte. Parabéns Luca Fiuza e Eduardo Schloesser. "Néctar,ambrósia e fel" é um conto que,muito alem de valer a pena de ser lido,vale a pena ser pensado.Parabéns pelo belíssimo trabalho desenvolvido com esse personagem tão rico,que é o Zé Gatão.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. A palavra do mestre das artes, Allan Alex. Uma perfeita reflexão deste conto em que mostra o nosso felino sorumbático numa situação atípica, envolvido com a nata de uma sociedade carcomida pelo ego e inchaço da ganancia, onde os excessos transformam meros mortais em deuses de areia e ali no meio deste caldo de loucura, o protagonista tenta manter intacta a sua integridade.

      Sabe, Allan, este é um conto que melhor retrata o universo do Zé Gatão criado por mim. Toda a pompa e tecnologia, não torna os seres vivos melhores e, pior, mostra que não existe lugar seguro. Isto sempre foi o que quis transmitir em minhas hqs, seja nas cidades, desertos, florestas ou mares, não há lugar seguro para o descanso, tal qual nosso próprio mundo. O Luca captou isto muito bem e deu ao grande Gato fôlego além, visto que publicar meus álbuns de hqs num mercado tão viciado e inconstante está além dos meus esforços.

      Eu e o Lucão agradecemos sua visita e as gentis palavras.
      Apareça sempre, grande artista.

      Abração.

      Excluir
  5. Demais! Dei uma pausa agora nesta sexta-feira e li de um fôlego só. Parabéns ao Luca e a você, Eduardo! Esse mundo do Zé Gatão é mesmo fantástico! Bacana a referência (inspiração) a Jornada nas estrelas, a nova geração. Mas a princípio, o nome Holodeck me incomodou um pouco. Chatice minha. Talvez usando apenas o conceito, não sei...
    Sabe que ainda não li o conto anterior? Preciso ir lá o mais breve possível. Grande abraço!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Salve, Gilberto! Rapaz, quando criei este universo antropomorfo, quis situa-lo num ambiente de alta tecnologia, com naves pelos ares e coisas assim, um futuro retrô pra ser mais preciso, isto fica mais evidente no segundo álbum da Via Lettera. Já no Memento Mori a ação se passa no deserto e na floresta. Acho que o Luca pegou o espírito do ambiente urbano em que se passam algumas aventuras do felino. Quanto ao nome Holodeck, bem, não tenho o que comentar.

      Quanto ao Cloaca Dos Mares, que você ainda não leu, experimente, afinal é mais uma saga do Zé Gatão, não se vê isto toda hora.

      Obrigadão por sua ilustre presença, meu caro desenhista.
      Abração.

      Excluir
  6. Luca a qualidade do seu texto é impressionante!!! Vocabulário rico, prosa envolvente, enredo meticuloso. Incrível!!!! Isso sem falar nos desejos do Eduardo que são fantásticos!!!! Fiquei fã do Zé Gatão, e agora leitor.
    Abraços, Maurício Nascimento

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Salve, Maurício, prazer tê-lo por aqui! Obrigado pelas palavras. O Luca, como você sabe, é extremamente peculiar e competente em sua escrita. Fico feliz que este universo antropomorfo tenha lhe agradado, as aventuras de Zé Gatão continuam, tanto em contos como nos quadrinhos.

      Forte abraço e volte sempre.

      Excluir
  7. Luca que texto fantástico!!! Vocabulário riquíssimo, prosa envolvente e enredo meticuloso. Isso sem falar nos desenhos do Eduardo, que qualidade!!!!!.... Zé Gatão ganhou um novo leitor.
    Abraços, Mauricio.

    ResponderExcluir
  8. Que belíssimo conto, Grande Mestre Luca Fiuza. Acabei de desfrutar da prazerosa leitura desta linda obra. Eduardo, sua arte é fantástica! Que talento! Parabéns! Vou ler todos os contos! Abraços eternos!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Um grande prazer tê-lo por aqui, Paulo! Obrigado pelas visita e palavras. O Lucão manda muito bem mesmo na escrita, não é?

      Apareça.

      Grande abraço.

      Excluir
  9. Boa analogia entre prazeres e realidade.

    ResponderExcluir

ZÉ GATÃO POR THONY SILAS.

 Desenhando todos os dias, mas como um louco, como fiz no passado, não mais. Não que não queira, é que não consigo; hoje, mais que nunca eu ...