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domingo, 2 de fevereiro de 2020

UM CERTO JUDEU.


ESCREVO AO SOM DE BARULHO DE CHUVA E TROVOADAS DISTANTES, NO YOU TUBE, ISSO ACALMA A MINHA ALMA.
BEM, VAMOS LÁ....


Isto se passou em meados da década de 1970.

Dudu era um menino de uns 12 anos que saiu de sua cidade natal para morar num estado muito distante e bem diferente de tudo que tinha conhecido até então.....depois de quase um ano, durante umas férias, ele retornava ao seu ponto de origem, na verdade ele não sabia exatamente porque, não havia deixado grandes amigos e o tio que ficara no apartamento outrora alugado por seu pai nunca o considerou gente, pelo menos não naquela época, mas pensando bem, que adulto respeita um fedelho dessa idade? Bom, o caso é que depois que seus pais conseguiram a autorização junto ao juizado de menores, lá estava ele encarando uma viagem de quase doze horas até São Paulo.
Ao chegar no Terminal Rodoviário da Luz, próximo à Praça Júlio Prestes, o cheiro da fumaça, as cores opacas da cidade trouxeram alguma nostalgia. Havia uma certa luminosidade no ar lembrando um pouco o cromatismo das películas de cinema dos anos 60.
Caminhou pela Avenida Duque de Caxias e dobrou na Avenida Rio Branco até chegar na Rua Aurora, onde morava o tio.
Não esperava encontrar o apartamento cheio de gente: tias, tios e primos (todos mais velhos que ele, claro) que vieram para a formatura de uma prima que seus pais abrigaram uns anos antes. A convivência não foi agradável; como sempre, ele era alvo de zombaria de um povo maledicente cuja única diversão consistia em falar mal uns dos outros.

Mas o que interessa neste relato foi o reencontro de Dudu com um certo coleguinha de infância a quem chamaremos de Israel. Este menino, de família judia era mais alto que ele, mais bonito (tinha olhos verdes) e contava com excelente educação escolar, muitos mimos o tornaram um tanto soberbo. Uns anos antes, Dudu estava com seu irmãozinho (Gil ou Dedé?) em seu colo e era acompanhado por este amigo, bem ali, na esquina da Rua Guianazes com a Rua Vitória e uns meninos de rua vieram em sua direção. O então valente Israel, que sempre dissera ser o tal, revelou sua pusilanimidade saindo correndo sem uma palavra, deixando Dudu à sua própria sorte com um bebê nos braços. Os meninos de rua apenas passavam por ali, não eram ameaça, no final das contas, mas para um guri abastado como Israel, eles eram o próprio terror encarnado.
Israel, sempre humilhou o Dudu, mas era uma humilhação diferente das que ele fora vítima por parte de seus primos e outros garotos da escola. Israel se gabava de ser judeu, de ter uma família rica, estudar num colégio caro, ter muitos gibis, brinquedos, autorama e um kart. Ah, o kart! Aquilo nunca foi o sonho de consumo de Dudu, talvez fosse demais para ele. Certa vez, Israel o chamou para ir até o galpão onde ficava o depósito de papeis (o ramo de negócios do patriarca era esse, papeis) e lhe mostrar o que aos olhos de Dudu se assemelhava a um carro de fórmula 1, só que um pouco menor. Uma bela peça, mas não lhe dizia nada, pareceu muita ostentação. O garoto pilotava em alguma pista própria para isso, mas Dudu nunca vira. Contudo, se o kart não era um sonho de consumo, o mesmo não se poderia dizer do autorama. Sempre que ele ia ao apartamento do Israel, ficava maravilhado com aquele brinquedo, que aliás, nunca teve permissão para tocar, só via o garoto mexer no controle e fazer o carrinho correr pela pista, derrapar na curva e sair da via.
Os gibis que Israel comprava, sempre indicados por Dudu, eram itens que o pobre menino invejava. Nem podia tocar. O judeu também jogava damas melhor e sobre isto é legal falar: certa vez, jogaram apostando quadrinhos; Israel colocou o Manual do Tio Patinhas - com a moedinha número 1 - contra vários gibis de Dudu, que eram umas revistas do Fantasma e do Recruta Zero. Resultado, Israel ganhou e deixou o outro sem nada. Jogo com aposta é mesmo uma coisa do diabo, foi a primeira e única vez que Dudu teve vontade de esganar alguém. O riso de deboche do judeu o acompanhou por alguns anos além.
A mãe de Israel era uma senhora agradável e muito carinhosa, havia um irmão mais velho poucos anos mas que pouco falava com o garoto pobre. O pai era inclinado a uma pinga e quando chegava em casa, geralmente alterado (maldito álcool!!!), Dudu era praticamente tocado de lá pela pobre senhora - ela tinha suas razões, com certeza.

O reencontro dos meninos foi muito amistoso. Para matar o tempo perdido, faziam belas caminhadas pelas ruas do centro, olhando as bundas das mulheres e comentando sobre bucetas e punhetas. Numa tarde, Israel falou:
- Dudu, posso te pedir uma coisa?
- Claro!
- Mas antes, promete que não vai rir de mim?
- Ora, o que é?
- Promete!
- Ok, prometo!
- Mas promete mesmo? Se não cumprir você pode ser castigado por Deus.
- Certo, certo, Israel, eu prometo que não vou rir!
- Tá bem....poderia amarrar meus sapatos?
- Como é?
- Eu não sei amarrar sapatos e meus cadarços se soltaram.
- Cê tá brincando!
- Você prometeu que não ia rir!
- Não estou com vontade de rir, eu só achei que.....tá certo, vou amarrar.
Dudu se ajoelhou aos pés do amigo ali na rua e atou os cadarços.

Não muito depois surgiu a conversa que inspirou este relato.
- Dudu, você já furtou alguma coisa?
- Como assim?
- Roubou alguma coisa de alguma loja?
- Bem, uma vez eu peguei um número da coleção "Os Bichos" de uma banca de jornal sem pagar...é só o que lembro...e você?
- Eu nunca. Uns amigos meus do colégio já surrupiaram uns compactos de uma loja de discos e fitas cassete também......hei, vamos "afanar" alguma coisa do Pão de Açucar?
- Não, cara, isso dá merda!
- Ah, só um biscoitinho! Só pelo prazer da aventura!
O menino insistiu tanto que o outro aquiesceu. Pegar um lanchinho Mirabel, não ia dar em nada. Incrível o que garotos bem orientados pelos pais podem fazer a título de uma transgressão!
Devia ser umas 15, 16 horas, por aí, de um dia sem sol, quando eles andavam pelos corredores do supermercado praticamente vazio, procurando o que poderia ser levado que não chamasse tanto a atenção. Dudu não sabia porque fazia aquilo, talvez para não parecer covarde aos olhos do colega, o outro, com certeza, para parecer corajoso e durão para si mesmo.
Israel, veio até ele em atitude pra lá de suspeita e falou em sussurros:
- Vou levar um Lanche Mirabel, e você?
- Ah, sei lá, acho que essa cola Tenaz.
- Psiu! Fale baixo!
- Ok, desculpe.
Mais esperto, com certeza, como um gato que sonda um aquário de peixe, Dudu enfiou o tubo de cola branca na manga do seu suéter azul marinho pelo punho, ao contrário do outro que como o pior dos canastrões olhou para os lados e enfiou apressadamente o pacote com os biscoitinhos no bolso da calça de tergal cinza, fazendo enorme volume.
Depois disso caminharam mais um pouco pelo ambiente e se apressaram em direção à saída. Nervoso, Dudu acelerou sem olhar para trás. Já estava na calçada, em frente a uma banca de revistas quando olhou pelo vidro e viu o amigo ser agarrado com rispidez pelos seguranças do estabelecimento. Ele poderia ter fugido como Israel fez uns anos atrás, mas seu caráter o impedia de deixar o companheiro se foder sozinho. Entrou no mercado ouvindo um moreno alto falar:
- Havia um outro com este ladrãozinho, juro que vi. Ah, olha ele ali, pegue ele!!!
Um cara de óculos, jeito distinto, o agarrou violentamente pelo braço.
O senhores da lei daquele local os conduziram aos fundos da propriedade sob protestos de Israel que bradava:
- Vocês vão se arrepender! Vou chamar o meu pai! Ele é uma pessoa importante!
- CALA A BOCA, LADRÃO! Você vai para o Juizado de Menores!
Tiraram o pacotinho de biscoitos do bolso do judeu e esfregaram na sua cara!
- Cê roubou isso aqui, seu pivete! Vai preso por isso!
Dudu era revistado mas o moreno não conseguiu localizar o tubo de cola.
- Tenho certeza que vi esse aqui roubar alguma coisa, tenho certeza!
O menino judeu gritava:
- Vocês tão fudido! Meu pai é dono de uma grande papelaria.....
- CALA A BOCA!!!! Dizendo isso o cara de óculos deu um soco na boca de Israel, que tombou ajoelhado e urinando nas calças. Ele chorava e segurava os lábios como se eles fossem cair.
Dudu, temendo que encontrassem o objeto do roubo consigo e isto agravasse a situação, aproveitou o momento onde as atenções eram voltadas para o menino ajoelhado e se livrou da cola, deixando-a parcialmente escondida ao lado de uma caixa que estava por ali.
Escarneciam do menino no chão.
- Acabou a tua valentia, pivete?
- Ei, e essa cola aqui? Foi você que a escondeu? Perguntaram ao Dudu.
- N-não!
- Fala a verdade moleque ou vai sobrar porrada pra tu também!
- Moço, temos dinheiro para pagar por isso....não somos ladrões, essa foi uma travessura, nada mais. Disse Dudu.
Os adultos se entreolharam. Não precisava ser adivinho para notar que não estavam afim de ter trabalho chamando polícia, Juizado de Menores ou o que fosse, por tão pouco, e tinha o agravante do soco que deram no menino, aquilo podia custar caro ao cara de óculos.
O moreno abriu a cola e deixou uma farta quantidade esguichar na roupa do pobre Israel.
- Tu tem grana, ô moleque? Pra pagar isso aqui?
- T-te-tenho! balbuciou.
- Então dá, aí!
Dudu ajudou o colega que não tinha forças nas pernas a se levantar. O menino tirou a carteira e retirou a quantia para pagar pelo biscoito e a cola.
- Tu pensa que é o tal, né fedelho? Podia ser como seu amigo aí, que é muito mais razoável. Vamos, vamos lá para o caixa!
Escoltados, os dois meninos, observados por algumas pessoas dali, foram até o caixa e pagaram pelos objetos e dispensados.
- SE VOLTAREM AQUI, VÃO PRA CADEIA, SEUS VAGABUNDOS!
Nem precisavam avisar, jamais voltariam.

A tarde caía  e os dois andavam pela Avenida Rio Branco, Dudu sabia que Israel, calado, depois de tudo, procrastinava para voltar ao lar.

- Dudu?
- Sim?
- Você nunca vai contar isto a ninguém, não é?
- Não, nunca!
- Nem que mijei nas calças, né?
- Nada!
- Obrigado!

E DE FATO, NUNCA CONTEI, SÓ A VOCÊS, NESTA POSTAGEM.

*************                                                            ***********                                                                   

Post Escriptum:

Dudu muitos anos depois voltou a morar com a família em São Paulo, no mesmo lugar de outrora. Viu Israel algumas poucas vezes, herdaram os negócios da família e tinham um escritório na Rua dos Timbiras. Era a cara do pai. Estava casado e segundo o irmão mais velho, com uma mulher bonita e megera, que o dominava. A mãe, morreu vitimada por uma câncer no intestino. O pai, doente, cego pelo diabetes.
Depois daqueles primeiros contatos, nunca mais o viu, nem soube mais nada dele.


















8 comentários:

  1. Não vou negar meu caro, tive que procurar o significado de pusilanimidade. Mas foi uma bela história. É incrível como pessoas reagem com tanta violência por coisas pequenas.

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    1. Isso foi nos idos de 1975, caro Elton. Eram tempos diferentes. Hoje em dia não procederiam com essa violência. Contudo, levam pra cadeia por bem menos.

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  2. Cara, pareceu uma história do Stephen King só que sem terror. Tipo, Conta Comigo.

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    1. Sim. Histórias que envolvem garotos nessa idade em situações de tensão sempre vão lembrar esta obra do King. Mas antes dele houve Tom Sawyer e outros.

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  3. Sensacional história,contada com maestria.

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  4. Que história, viajei na narrativa.

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