Eu devia ter quatro ou cinco anos, talvez até seis, realmente a idade exata não dá para lembrar, mas neste período complicado na vida dos meus pais eu passei com minha saudosa avó materna. Ela era uma mulher de pavio curto, de veneta, de humor oscilante. Se eu espirrasse num momento em que ela achava não era para pra espirrar, lá vinham sopapos, beliscões e puxões de orelha. Foi uma infancia dificil e infeliz. Mas não por causa das sovas sem motivos, mas por uma sensação onipresente de desproteção.
Lembro de forma vaga de um episódio ocorrido naqueles idos de 60. Minha avó tinha um coração muito grande, já comentei aqui que ela ia aos velórios prestar condolências a pessoas que ela nem conhecia, talvez fosse assim uma forma de se fazer notada, de ter importância para aqueles individuos. Morávamos em Guarulhos, num lugar que chamavam de Taboão (acho que era isso). Certa tarde, uma vizinha nossa, estava prestes a dar a luz, minha avó acudiu. Não sei dizer se a tal moça, não tinha ninguem por ela, mas a realidade era que minha avó esteve ao lado dela naquele momento crucial. Como não havia com que me deixar, acompanhei as mulheres naquela odisséia. Primeiro fomos de charrete até não sei onde (um posto de saúde ou hospital talvez?) e de lá para uma ambulância. No veículo (e isto eu me lembro bem), haviam dois leitos, de um lado a grávida, do outro um cara de farda militar com um dos pés (ainda com a bota) torto e totalmente esmagado. Foi uma visão estranha, o couro do coturno lacerado com muito sangue pingando. Aqui as lembranças ficam mais difusas, mas creio que chegamos ao hospital onde a parturiente ficaria internada. Recordo de um certo temor por todas aquelas luzes da cidade grande. Eu nunca havia estado num lugar com tantos neons multicoloridos. Um mundo novo e assustador. Devia ser o centrão de São Paulo. Ficamos horas a espera de um ônibus. Até hoje ignoro como regressamos para casa pois minha avó era analfabeta de pai e mãe.
Chegamos era madrugada alta. Realmente a misericórdia de Deus na minha vida é infinita.
Me lembrei disto hoje nem sei porque e me senti compelido a registrar aqui, antes que eu venha a me esquecer de novo e quem sabe permanentemente. Foi a minha infancia, não há como nega-la.
Na boa, não há qualquer tipo de mágoa ou ressentimento pela ausência dos meus pais neste período, sei que eles estavam batalhando para que tivéssemos nosso lugar, isto aconteceu um tempo mais tarde.
A arte de hoje é mais uma ilustração a bico de pena para o livro Quincas Borba. Gosto do tom dado a estas imagens. Como já disse em vezes anteriores, muito do que faço, é a forma como sinto a cena. Olhando para estes traços, eu me pergunto o que fatos como o que eu relatei acima influenciaram minha arte.
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Verdade, Eduardo! A infância traz sempre lembranças que podem ter marcado muito o nosso modo de ver e reagir ao mundo. Eu tenho algumas lembranças que volta e meia voltam. Não há dor, nem mesmo muita identificação. Algumas imagens até parecem que não são minhas, kkk. Mas é a vida. Vamos vivendo da melhor forma possível, e fazendo dos limões do passado, gostosas limonadas.
ResponderExcluirEsse seu traço está muito adequado para esse romance.
Abração,
Valeu, meu amigo, por suas gentís palavras e apoio sempre presentes.
ResponderExcluirForte abraço.