Zé Gatão – O jovem felino.
Noite tenebrosa.
Por Luiz Fiuza – 27/08/19.
Noite quente e enluarada, emoldurada pelo frio piscar das estrelas no firmamento escuro. Uma aragem suave vinda do mar amenizava o calor, apesar do sol inclemente daquele dia de verão ter se deitado há muito. Era uma bela praia conhecida como Praia do Enlevo, lugar frequentado por casais interessados em dar uns amassos, em um ambiente para muitos pra lá de afrodisíaco!
Naquela noite em particular, só um casal estava desfrutando das belezas daquele local. Bem, não somente o casal! Havia um terceiro elemento que o acompanhava! Sem mais rodeios, o casal era formado por um jovem Zé Gatão e sua namorada Soraia. O tal terceiro elemento era o irmão mais novo dela. Estavam ali para passar momentos românticos, ou quase já que a presença do rapazola meio que cortava o barato, pelo menos assim pensava o felino cinzento, bastante contrariado, mas com bom senso suficiente para não mostrar abertamente seus sentimentos! Afinal, só havia tido permissão de sair com a garota se levasse o irmão desta a tiracolo!
Zé Gatão, Soraia e o rapaz estavam acomodados sobre uma toalha ampla, ao pé de uma pequena fogueira. Perto do rapazinho que se chamava Saulo estava uma grande cesta, contendo gostosas iguarias e um garrafão de suco de uvas bem gelado. Os três eram figuras inusitadas se parássemos para observá-los mais detidamente. Zé Gatão um jovem felino na força de sua juventude! Alto, musculoso, pele acinzentada, longas suíças brancas e orelhas pontudas eretas com tufos brancos em suas extremidades, denotando ser ele um mestiço de gato e lince. Os cabelos de um cinza intenso, amarrados no indefectível rabo de cavalo que seria sua marca! Olhos de um amarelado penetrante! Usava roupas leves que consistiam em uma camiseta branca sem mangas, calças também brancas folgadas e um par de sapatilhas cinza claro bem leves de estilo oriental Embora descontraído, já tinha as marcas de expressão que aumentariam com os sofrimentos que grassariam em seu futuro ainda para ele desconhecido. Soraia era uma gata esguia, riponga com seus cabelos soltos em desalinho de cor abricó, tal qual sua tez aveludada. Rosado narizinho delicado que se empinava ao sabor de seu temperamento impulsivo! Envergava uma camiseta leve, esverdeada que deixava antever boa parte de sua barriguinha sem nenhum sinal de adiposidade, cuja tonalidade esbranquiçada fazia um contraponto com a cor mais intensa do resto do corpo! Pequenos óculos de lentes azuladas e armação redonda, compunham seu rosto inteligente. Usava uma calça comprida azul, boca de sino. Das orelhas de ponta preta, pendiam uns brincões prateados de formato circular. Em torno da cabeça uma faixa florida e no pescoço aquele colar com o símbolo Paz e Amor em voga naquela época. Ah! Havia o irmão menor! O tal de Saulo! Mancebo longilíneo, das mesmas cores da irmã. Cabeleira basta amarrada em um rabo de cavalo feito às pressas. Temperamento agitado! Mais impulsivo que o de Soraia! Trajava uma camisa vermelha muito larga, bermudão preto folgado e calçava uns chinelões de couro cru também um pouco acima de seu número. Era meio sem noção e o número de encrencas em que havia se metido dava para escrever um livro! Não fosse a intervenção da família já teria sido preso, ou se acharia esticado na mesa do necrotério! Falava muito e ouvia pouco! A custo, Zé Gatão escondia seu mau humor ao escutar as besteiras que o mocinho vomitava a cada segundo! Portanto, a noite que seria para o amor, na verdade ia ser das mais sacais! O felino cinza precisava dar um jeito de despachar aquele bucéfalo dali para ter uns momentos a sós com Soraia. Podia mandar o moleque procurar mais lenha para a fogueira, sei lá! Estava a matutar esta ideia quando um ruído forte para além das dunas, entre as quais se encontravam, chamou a atenção dos felinos!
Todos ergueram as cabeças cautelosamente, sem se mostrar totalmente e estupefatos viram uma aterradora figura emergir das águas prateadas do mar noturno! A coisa envergava uma roupa pesada de tom escuro que lembrava a de um astronauta. Sob um enorme capacete transparente cheio d’água viram distintamente a cabeça cônica de um enorme tubarão! A passos lentos, mas firmes aquele ser de pesadelo caminhou da arrebentação até a areia da praia. A sinistra barbatana dorsal podia ser vista, coberta pelo grosso tecido daquela fantástica vestimenta que protegia dos perigos do ambiente externo, o monstruoso peixe vindo das profundezas sombrias do oceano imutável!
O que fazia ele ali? Que desígnios inconfessáveis trouxeram aquela fera marinha para o mundo da superfície? Sem aviso e de chofre, Saulo se ergueu e acintosamente gritou para o sinistro ente, exigindo que desse o fora rapidinho, pois estava atrapalhando e não era nada bem-vindo! O monstrengo se voltou de brusco. Saulo ainda vociferando, caminhou em meio às dunas na direção do alvo de seus impropérios! Soraia também se ergueu gritando pelo irmão! Zé Gatão agindo contra seus instintos, seguiu o exemplo da gata, pensando – Maldito idiota! - Mas já era tarde! O tubarão lançou-se para frente de forma repentina, ao mesmo tempo em que seu poderoso punho atingia brutalmente a face do desavisado louco que ousara desafiá-lo! Como se nada pesasse, Saulo foi arrancado do solo. Sua boca explodiu em sangue e sua carcaça foi projetada sobre uma duna arenosa, o que impediu que os ossos de seu corpo se quebrassem em mil pedaços! Semiconsciente, sentiu a força titânica do tubarão levantá-lo do chão e cingi-lo em um abraço fatal! Nada pode ser feito para o salvar! O estalo da espinha de Saulo se partindo soou como uma chicotada funérea no silêncio daquelas plagas distantes, interrompido apenas pelo fragor inalterado das ondas batendo na arrebentação! O grito alucinado de Soraia tirou Zé Gatão do choque que momentaneamente o paralisara! Sem pensar em si, o felino taciturno arremeteu contra o assassino de Saulo com o ímpeto de uma fúria insana! Como que por encanto, um estranho objeto surgiu na mão do pisciforme! Em meio à corrida, Zé Gatão foi atingido por um disparo ultrassônico que o derrubou, jogando-o no abismo da inconsciência!
Por causa disto, não viu Soraia cair de borco, atingida por outra rajada ultrassônica de baixa intensidade. Não presenciou o tubarão se inclinando sobre ela com um sorriso malfazejo em seus lábios, descobrindo as presas agudas. Soraia ululava tomada por um terror cego, totalmente a mercê da fera do mar! O capacete do desapiedado peixe se recolheu para trás com um chiado agudo. Um aparelho especialmente projetado, conectou-se às suas guelras frementes, mantendo a circulação de água entre estas e o precioso líquido existente no interior de seu incrível traje. O monstro escancarou a goela e se aproximou da face da pobre Soraia que tentava inutilmente se desvencilhar daquele ser que corporificava a própria Morte! A felina sentiu o odor apodrecido daquela boca e ouviu um som inarticulado que denotava extrema satisfação. Sem comiseração, o tubarão feroz enterrou os dentes na carne macia da jovem felina. O corpo da besta tremia em êxtase, enquanto a gata sentia o sangue quente escorrer da ferida e entre o mais atroz dos sofrimentos morreu como pasto para aquela anomalia das profundas!
Foi curto o desmaio de Zé Gatão. Despertou sacudindo a cabeça, sentindo os músculos doloridos e uma intensa languidez física. No entanto, ao ver o corpo destroçado de Soraia e mais adiante o de Saulo tombado tal qual um boneco quebrado, um forte jato de adrenalina e uma ira sem precedentes como que o arrancaram violentamente daquele marasmo inicial! O tubarão estava de costas para ele se preparando para abandonar o local da chacina que perpetrara! O grito rouco do felino cinzento fez a cria do oceano voltar-se. Seus olhos escuros e inexpressivos encararam a figura impressionante do gato! Musculatura retesada! Os olhos chispando, dentes trincados. O peixe sorriu e disse algo em uma língua totalmente desconhecida e incompreensível para Zé Gatão. O som daquela voz parecia vir de um rádio transistorizado daqueles bem antigos, onde às vezes as estações se misturavam. A resposta do jovem felino sorumbático foi um urro que partiu do âmago, reverberando pelas cercanias! Avançou contra seu odiado adversário, mas desta vez de maneira refletida, disposto a moê-lo de pancada!
A contenda foi seca! Brutal! Zé Gatão dirigiu seus pesados murros contra o estômago do monstro, cuja vestimenta não o protegeu dar dor profunda dos impactos daqueles punhos explosivos! O peixe nunca sentira tanta dor em sua vida! Parecia que suas entranhas estavam sendo pulverizadas! Uma joelhada fortíssima no ventre fez o esqualo se curvar. Se pudesse verter lágrimas, sua face estaria banhada pelas mesmas. De sua garganta projetou-se um gorgolejar semelhante ao de uma infecta pia de cozinha sendo desentupida! Os olhos negros se arregalaram naquela face sem expressividade, tornando-a uma máscara abjeta e caricata de sofrimento! Um chute no capacete completou a obra, jogando o tubarão com rudeza na areia branca da praia.
Porém, o filho das profundezas era forte e resistente. Rolou de lado e ergueu-se dando um salto acrobático que pegou Zé Gatão de surpresa. O felino caiu de costas com o tubarão por cima! Como tinha ocorrido com Soraia, o capacete da besta-fera deslizou para trás e a cabeçorra do cartilaginoso ficou descoberta. As guelras imediatamente ligadas ao suporte de vida da roupa! A bocarra se projetou sedenta de carne e sangue! O miasma expelido daquela fauce aberta era nauseabundo! Lutando contra a ânsia de vômito, o felino cinza esmurrou com o punho direito aquela caraça aterrorizante, arrancando sangue, enquanto que com o braço esquerdo impedia o avanço das mandíbulas destruidoras! Nunca tendo levado um soco tão potente em sua existência, o tubarão ficou desnorteado, cérebro bombardeado por mensagens sensoriais conflitantes. Aproveitando-se desta situação, onde a força do oponente se reduziu, aplicou mais um murro no focinho do esqualo, fendendo ainda mais a fina pele do peixe, de onde manava sangue em profusão. Em desespero, o felino agarrou com a mão direita um dos conectores do suporte de vida do grande esqualo e o arrancou! O tubarão soltou um silvo premente! Em vez de soltar Zé Gatão, agarrou-o com mais força, tentando puxar a cabeça do gato para sua malcheirosa goela timpânica! Morreria, mas levaria o maldito mamífero consigo!
Por segundos intermináveis, os dois ficaram imobilizados em um impressionante equilíbrio de forças! Zé Gatão gritava! Não de medo, mas de ódio! O tubarão já não conseguia respirar! Do sistema de suporte de vida arruinado, a água se derramava! A água que era sua vida, caindo se perdendo sobre a areia de um mundo desconhecido que ousara arrostar! A pressão do tubarão sobre Zé Gatão foi se enfraquecendo. Seu enorme corpo moleou! Estava morto! Em um arranco, o felino cinza empurrou o cadáver para o lado e ficou no solo arenoso, esgotado, arfando penosamente. Nunca se sentira tão cansado e fraco. Após recuperar-se um pouco, afastou-se da carcaça morta do tubarão. Que apodrecesse ali mesmo sob as intemperes! Quanto aos desafortunados Soraia e seu irmão, enterrou-os juntos em uma cova rasa que cavou na areia com as mãos, longe do alcance das águas do mar!
Ao romper da aurora, partiu em sua moto, ainda ligada ao side car onde viera o pobre Saulo. Era o começo de sua vida de andarilho! Desde criança ouvira que os seres do mar eram inimigos mortais de todos os habitantes da superfície! A presença daquele tubarão naquela praia isolada talvez não fosse um acaso. Só o tempo poderia dizer.
Bem no clima do personagem mesmo.
ResponderExcluirO Luiz captou bem a essência do personagem, Hans.
ExcluirGrato!