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sábado, 7 de março de 2020

REFLEXÕES SOBRE MEDO, ANGÚSTIA E MORTE ( PARTE DOIS DE DOIS)


Parece que foi a poucas semanas que escrevi a parte um desta série dedicada ao meu alter ego, Ed Palumbo. Como o tempo passa depressa!!!! Caso vocês não tenham lido ainda, recomendo acessar este link: ( http://eduardoschloesser.blogspot.com/2018/11/reflexoes-sobre-angustia-medo-e-morte.html ) e também consultar o primeiro ato, onde o artista vai para a metrópole carioca atrás de novas oportunidades, escrita a mais de um ano atrás, neste outro link ( http://eduardoschloesser.blogspot.com/2019/03/reflexoes-sobre-angustia-medo-e-morte.html ):

Boa leitura e desculpem a demora na escrita da conclusão!                                                         
                                                             

                                                                 SEGUNDO ATO

Era uma segunda feira de um calor mortal, o ar parecia saído de um forno. Ed Palumbo sentia como se suas roupas estivessem sendo passadas a ferro sobre seu corpo. Sentado em uma pequena sala com seu portfólio ao lado, em uma loja que ficava no térreo de um grande hotel, aguardava pelo Adalberto, o diretor daquela empresa de comunicação, como chamavam. Já estava ali a quase uma hora e a secretária que a todo instante atendia o telefone com ar pedante, sequer notava sua presença. Era do tipo mignon, com um belo corpo, cabelos encaracolados na altura do ombro, o rosto tinha graça e formosura, sendo maculado apenas por uma verruga no nariz e um olhar arrogante que em nada deixava transparecer simpatia. Trajava um vestido de tecido leve, estampado com pequeninas  flores coloridas
- Por favor, qual é o seu nome?
- Me chamo Lídia.
- Então, Lídia, será que o tal Adalberto vai demorar muito ainda?
- Na verdade o Adalberto não tem um horário certo, tem muitos compromissos, talvez ele nem venha hoje.
Porra! pensou Ed.
Neste exato momento, um indivíduo de baixa  estatura, de cabelos cacheados grisalhos e olhos verdes faiscantes entra cuspindo ordens num forte sotaque paulistano. A secretária prontamente se ergue e executa os pedidos como se fosse uma máquina. O homem entra em uma das salas e desaparece.
- Este é o Adalberto? Indaga Palumbo.
- Sim.
- E quando ele vai me atender?
A secretária o encara com desprezo.
- Aguarde, ok? Ele tem muitas coisas urgentes para resolver.

Vinte minutos depois aparece um indivíduo negro, magro, alto e muito bem vestido vindo em sua direção.
- Me chamo Wesley, sou o gerente de produção da Trix Comunicações, em que posso ajudá-lo?
- Vim para falar com o Adalberto.
- O Adalberto está muito ocupado, do que se trata?
Palumbo suspirou e disse:
- Bem, é o seguinte, liguei semana passada para cá a respeito da seleção de desenhistas e a moça ali me falou que só o Adalberto resolvia estas coisas.
- A seleção já foi feita e fechamos o quadro, perdeu o seu tempo.
- Sei disso, mas será que ao menos vocês poderiam dar uma olhada no meu material? Me indicar alguém que pudesse se interessar? Creia, tenho experiência e preciso muito de um emprego.
O negro consultou o relógio e o fitou com ar condescendente.
- Ok, o senhor tem cinco minutos.
Ser tratado como um merda era algo que Ed já estava acostumado, sabia que em situações assim tinha que ser perseverante.
Numa pequenina sala contígua, o ilustrador abriu sua enorme pasta emborrachada e exibiu suas peças, que iam desde belas aquarelas de nu artístico a caricaturas, de material publicitário ricamente trabalhado a páginas de quadrinhos. O jovem afrodescendente não pode deixar de ficar boquiaberto.
- Você fez isso tudo? Indagou incrédulo.
- Sim.
Haviam também exemplares de revistas ilustradas e álbuns de quadrinhos.
Wesley pegou uma das revistas, folheou com olhos vidrados e falou:
- Posso levar isto para o Adalberto dar uma olhada?
- Claro! Fique a vontade.
Palumbo esperou em pé, conversavam em uma sala próxima e ele pensou ter ouvido algo do tipo: "temos uma mina de ouro aqui" mas não sabia se falavam dele.
Wesley apareceu e disse:
- O Adalberto vai atende-lo.
A sala onde se encontrava o "chefão" do lugar tinha ar condicionado, adentrar ali era como sair da boca de um vulcão ativo para penetrar em um tanque cheio de gelo, não era uma experiência ruim, pelo contrário. Ele intuía que sairia dali com boas notícias, algo dizia que sua sorte ia mudar.
- Grande Ed Palumbo!!!! A saudação vinha de um cara que parecia conhecê-lo de longa data. Ed sacava bem desta politicagem, era como lubrificar bem o pau antes de uma enrabada.
- Como vai Adalberto?
- Melhor agora, é sempre um enorme prazer apertar a mão de um grande artista!
Palumbo não sabia bem como responder a esta bajulação por isto limitou-se a sorrir demonstrando gratidão.
- Pois é, todo mundo vive repetindo que eu perco meu tempo vindo aqui pois seu quadro de artistas já está fechado, mas eu sou teimoso, talvez você possa me indicar algo dentro do que eu seja capaz. Poderia dar uma olhada no meu portfólio?
- Será um prazer, mas eu não preciso olhar seu material para saber que você é um dos melhores, além de ser um profissional que cumpre prazos.
- Já me conhecia antes?
- Na verdade não, mas eu tenho esse dom, de avaliar as pessoas por seus gestos, educação e olhar. E não vou te indicar nada. Vou te contratar para trabalhar com nossas histórias em quadrinhos instrucionais. Esta empresa está começando para revolucionar o mercado, para desbancar o monopólio dos que estão aí faz tempo, sem apresentar novidades. Quando nossos produtos chegarem ao público ninguém mais vai querer saber do Menino Maluquinho ou da Mônica e Cebolinha.
O desenhista não pode deixar de ficar perplexo com a megalomania do baixinho, mas não se conteve de alegria ao notar que sua insistência rendia frutos.
- Tá, beleza! Fico grato! Quando eu começo?
-  Na semana que vem. Estaremos mudando as instalações para um espaço maior, num prédio em Botafogo.
- Certo. Escute, é carteira assinada, né?
- Calma, não vamos colocar os carros na frente dos bois, você terá que passar por três meses de experiência.
Ed era macaco velho. Conhecia bem esse papo de experiência. Primeiro o cara chupa seus ovos dizendo que intuía que ele era o tal, que nem precisava olhar seus trabalhos, na verdade o negão já tinha mostrado antes, e ele vira que era bom, do contrário nem teria olhado na sua cara, agora vinha com a conversa de experimentá-lo por três meses. Tinha que ficar esperto e não nutrir muitas ilusões. Mas ok, tudo a seu tempo. No momento ele precisava de grana.
De posse do novo endereço onde deveria se apresentar na semana seguinte e começar a trabalhar, Palumbo agradeceu ao Adalberto e saiu dali.

O coletivo que o levaria de volta ao quartinho da farmácia demorava e ele observava uns casais próximos voltando da praia, umas belas moçoilas com rapagões tatuados e suas pranchas de surf. Se beijavam como se fossem transar ali mesmo. Não pode deixar de pensar nas ilusões da vida, tudo passava tão rápido! Aquela belas moças bronzeadas ficarão prenhas e engordarão, serão avós e darão muita sorte de não terem câncer nos seios.
O ônibus chegou e pra variar estava lotado. Tempos depois chegava ao seu destino. Entrou no mercadinho e comprou mais dois Mata Baratas. Viu umas caixas de isopor, pegou uma, um saco de gelo, várias latas de refrigerante e garrafinhas de sucos de frutas. "A grana está acabando", pensou Ed, mas se tudo der certo, na semana seguinte estará na ativa de novo.
Era perto de quatro da tarde e o desenhista esboçava em seus papeis o que viria a ser sua nova HQ, invadia-lhe, depois de muito tempo, ideias e inspirações. Contou seu dinheiro. Ainda tinha algum. Daria pra pagar ao Milton pelo quarto e pelas frutas que gostava de comer à noite. Uma inquietude o afastou da farmácia e ele caminhou um pouco até um outro bairro. Jantou em um boteco aconchegante e voltou à farmácia quase na hora dela fechar. Um vento forte uivava e prometia uma caudalosa tempestade.
- Vai chover feio! disse o Milton.
- Pudera, depois de todo este calor!
- Sim.
- Ei, Milton, não tenho que me preocupar, né?
- Com o quê?
- Tempestades, goteiras, raios, essas coisas....
- Nããão, tudo tranquilo, seu Ed.
- Certeza que aquele beco não inunda?
- Nunca tive problemas com isso.
- Ok. Boa noite.
- Boa noite e até amanhã!
O ilustrador urinou sofregamente - tinha que se consultar com um urologista - e foi para o seu quartinho. Borrifou tudo com inseticida nas frestas. Desde que adquirira este hábito raramente aparecia uma barata.
Ficou um tempo sentindo a umidade do vento até passar o cheiro do veneno em seu quarto. A chuva começou a cair em profusão. Despiu-se, pegou o sabonete e foi para o pátio. A água torrencial que caía dos céus lavavam o suor do seu corpo de músculos magros. Coriscos seguidos de estrondosas trovoadas o fizeram abreviar aquele prazer, o calor deu lugar ao frio. Secou-se. Deitou no colchão, pegou um refrigerante da caixa com gelo e começou a ler seu livro. Um miado do lado de fora o fez levantar-se. Era o gatão valente da orelha decepada. "Entre, Conan dos felinos". O animal roçou suas penas e pulou para cima do colchão. Ficaram estendidos, ouvindo a ruidosa chuva que acoitava a noite. 

O resto da semana se passou naquela rotina. A farmácia sempre vazia, Milton ainda lendo os Tex que Ed comprara na feira, a bunduda gostosa que ia tomar injeção às quintas, o sobrinho anão que só falava merda e o desenhista sempre com suas caminhadas pensando longe, imerso em sonhos e lembranças. Rabiscava nos papeis criando personagens e thumbnails para sua nova HQ de detetive. Nas madrugadas, páginas e mais páginas de uma saga ganhava vida em lápis e nanquim. Nesses tempos,  o calor deu lugar a um clima agradável, fresco, chegando a esfriar a noite.

A segunda feira finalmente havia chegado e Ed banhou-se demoradamente, fez a barba aparando cuidadosamente o cavanhaque grisalho, pôs sua melhor roupa e pegou o ônibus - sempre lotado - até o endereço onde funcionaria as novas instalações da Trix Comunicações. Não havia expectativas, para ele não existia mais o "sonhar", era uma forma de não sentir tanto o impacto das decepções. Sabia que poderia muito bem chegar ao local e encontrar a porta fechada, ter sido vítima de uma brincadeira de mal gosto. O desapontamento com Prattes deveria ser o último, mas ele sabia que não era.

Chegou ao local e foi recebido por Wesley.
- Certo, Ed, esta será a sua mesa. Você não ficará junto aos demais desenhistas porque lá não tem mais espaço.
Palumbo olhou aquilo meio perplexo;
- É uma mesinha com um computador!
- Sim, isto mesmo, qual é o problema?
- Pensei que seria uma prancheta de desenho com régua paralela e tal.
- Aqui funciona tudo em rede, você recebe um roteiro de história em quadrinhos, desenha no Photoshop, faz a colorização e com a página pronta você envia ao Maurão ali, que coloca os balões de texto.
O desenhista coçou a cabeça.
- O que há? Perguntou Wesley.
- Cara, na boa, sempre desenhei a mão. Finalizava, escaneava e enviava ao editor que fazia todo o resto.
- Mano, isto já está obsoleto. Perde-se muito tempo e dinheiro assim.
- É, mas....não tenho nenhuma familiaridade com estes novos processos.
- Porra, isto vai ser um problema!
De repente o Adalberto entra na sala, ouvindo a última frase do gerente de produção.
- O que vai ser um problema?
- O desenhista aqui é das antigas, ele não sabe trabalhar com Corel ou Photoshop. Acho que ele não poderá ficar conosco!
- O caralho! Quem decide isso sou eu!
O negro ficou meio aturdido com a grosseria do baixinho.
- Nem todo mundo tá acostumado com essas merdas de computador, eu mesmo sou um deles. Vamos fazer assim, o Ed faz as páginas como está acostumado a fazer, desenha a mão e faz scan das páginas e cuidamos do resto. Ele tira umas horas do dia para treinar no Corel e Photoshop, até pegar as manhas, quando ele tiver ok, passa a fazer tudo no computador. O Maurão pode dar todas as dicas, certo?
- Ok pra mim, disse Ed.
- Beleza, só não temos mesa de desenho profissional, você terá que se virar nesta merdinha que aqui está.
- Tudo bem, pra mim.
- Resolvido, então! Wesley, você vem comigo.

Depois disso ele assinou um contrato formal de três meses com um salário que se não era grande coisa também não era dos piores. Lhe permitiria se alimentar e pagar algo melhor do que aquele quartinho úmido cheirando a veneno de matar baratas. Ele precisava dar tempo ao tempo.

Ed foi apresentado aos demais funcionários. Os mais antigos eram o Mauro, que cuidava da editoração das histórias, Kleber, fazia o design de personagens, o Pablo, que não ficou claro qual era a função dele, Fábio, que cuidava de toda a manutenção dos computadores e Lídia, a antipática secretária, todos jovens.
O resto eram dez desenhistas, todos na faixa dos vinte anos, recém contratados como Palumbo. Todos sentados em seus computadores, fazendo troças um com a cara do outro. Havia também um rapaz, Eliaquim, recém contratado, que lembrava muito um ator de novela, não exatamente bonito, mas com muito carisma e cultura, que seria o novo roteirista das histórias e faria a defesa dos projetos a serem oferecidos às empresas.

Os materiais já criados pela casa eram ruins de doer. Com toda a empáfia com que falavam da firma ele imaginava algo de nível, não aquelas revistinhas mequetrefes sobre não vandalizar patrimônios públicos, escovar bem os dentes e coisas assim. Os personagens, criados pelo Kleber, uma família classe média, com pai, mãe, dois filhos e um cachorro, eram horríveis, cabeçudos, rostos redondos de sorrisos idiotas, com braços e pernas muito curtos. "Como essas criaturas vão coçar a cabeça ou o cu?", pensou Palumbo. Mesmo em personagens iconizados, tem que ter proporção. Os roteiros eram risíveis, infantis, mas de uma infantilidade retardada, de dar dó. Entretanto, guardou essas impressões para si. Não estava ali para questionar.

Depois deste reconhecimento da casa o tal Maurão, um cara miúdo, nariz largo e a cara destruída pela acne, lhe mostrou umas páginas de roteiro. O básico do básico.
Não havia lá estrutura para atender um desenhista como ele, nada de papeis de qualidade ou canetas nanquim. Foi falar com o Adalberto, que num momento de mal humor, disse:
- Cara, se vira com o que tem, não leva a mal, você é muito bom no que faz mas não é especial, já faço muito sendo tolerante com suas limitações!
- Posso pelo menos sair para comprar uns papéis, réguas e canetas?
- Pode, mas não vamos ressarci-lo.
- Tudo bem. Não demoro.

Ed saiu para o calor do dia, era bom trabalhar mas ele não curtiu o ambiente, não era acolhedor, bem, nenhum lugar era. Gostava de caminhar entre os transeuntes, se sentir anônimo, como sempre; se imiscuir na multidão para não ser encontrado pela tristeza, misturar sua dor obscura com as comiserações incógnitas de outros.

Havia visto uma papelaria quando desceu do ônibus, e por sorte era dessas casas com materiais para artistas. Comprou várias folhas de papel Opaline, lapiseiras e borrachas macias, canetas nanquim descartáveis de diversos números e um esquadro grande. Toda essa despesa o deixou quase a zero, mas dava pelo menos para pagar sua passagem de ônibus até que recebesse o salário. De resto, ficaria sem suas frutas e sucos a noite, mas ele estava acostumado a situações ruins. Bastava ele comer menos no almoço e deixar algo para quando chegasse em casa, quer dizer, no quarto da farmácia.

Apesar do roteiro merda e dos personagens bostas, desafio era algo que instigava o velho Ed Palumbo e ele com toda a restringência para produzir, fez o seu melhor; na folha, surgiram quadros com ângulos e planos muito ousados, das pequenas e pobres figuras surgiram expressão e força. Ficou orgulhosos do que fez e após cinco páginas o gerente de produção passou por ele e disse:
- Pare tudo o que está fazendo!!! O Adalberto precisa ver isto!
O negro pegou as páginas a lápis e se encaminhou para a sala do chefe, seguido pelo ilustrador.
Ao entrar, notaram que um rapaz gordo estava sentado ao lado do Adalberto.
- O que querem afinal?
- Veja isto, Adalberto!
- Antes deixem eu apresentar o Betinho, meu filho, para nossa mais nova aquisição, o grande desenhista Ed Palumbo!
O rapaz, atarracado, de ossos largos e adiposo de todos os lados, exibiu um semi sorriso com os lábios finos, grossas pestanas, traços quase femininos e uma cabeleira tão basta que parecia brotar do meio da testa. Em nada lembrava ao pai. Estendeu a mão rechonchuda para Ed e disse:
- É um prazer e uma honra apertar a mão de um artista tão talentoso! Pesquisei sobre você e achei incrível!!!
O quadrinista sacudiu a mão gorda, de um aperto gelatinoso.
- Obrigado, mas nem tanto assim, ando num momento baixo da vida.
- Estamos aqui para te ajudar, e tenho certeza que seu talento nos colocará em primeiro lugar no quadro de empresas de educação deste país!
A voz do gordo se assemelhava a uma taquara sendo rachada. Toda aquela babação não era inédita a Palumbo, acontecera tantas vezes que ele já antecipava o próximo movimento, pegariam pesado com ele na primeira escorregada.
- Saibam que eu não mando nada aqui, ele é o herdeiro de tudo, ele é quem dá as cartas! Falava Adalberto sobre seu rebento com orgulho fingido.
- Mas o que você quer mostrar Wesley?
- Estas são as primeiras páginas que ele desenhou sobre a "Família Pereira".....achei que era melhor você opinar antes que ele fosse mais longe.
Adalberto colocou as páginas sobre a mesa e estudou. O gordinho colocou a mão no queixo e fingiu entender do que se tratava.
Depois de um tempo o baixinho de olhos verdes disse a Ed.
- Meu caro, você desenha muito bem, mas não entende nada de educação. Isto aqui certamente agradaria muito aos caras que publicam o Superman, mas não aos pedagogos do ensino. Nós trabalhamos para crianças, não para adolescentes ou adultos. Espelhe-se nas aventuras da Mônica ou do Menino Maluquinho. Refaça tudo!
Ed já tinha passado por esta mesma situação, pessoas que subestimavam a inteligência infantil, mas ok, ele não ia contra argumentar, estava ali não para revolucionar, mas para fazer o que mandavam.
Pediu licença e saiu. Deu uma folheada nos gibis que produziam ali. Porra, que coisa medíocre!

- Ed Palumbo? Era o Eliaquim, o roteirista.
- Eu mesmo!
- Rapaz, quase não acreditei quando disseram que você viria trabalhar com gente. Sou fã de longa data. Acompanhei muito alguns dos gibis que você lançou no passado! Seu estilo calcado na Metal Hurlant é inconfundível!
- Oh, obrigado! Escute, é você quem fará os novos roteiros das histórias? Já leu isso aqui?
- Já. É muito ruim, isso era feito pelo Kleber, que desenhou seguindo as instruções do Adalberto e fez os roteiros nos mesmos moldes. Tentei criar algo novo, mais dinâmico, mas recusaram, querem que continuemos nisto que aí está.
- Nem me fale! E isto vende?
- Porra nenhuma!
Nisto o escritor se aproximou dele falando baixo:
- Esses quadrinhos nunca vão vender, esta empresa só existe por causa de um contrato que minha mãe, que é funcionária do Ministério da Saúde, arrumou para o Adalberto, ele produz uma cartilha de DSTAids que rende uma boa quantia. Com isto ele banca essas revistinhas, tentando vender para empresas privadas. Só que até agora não emplacou nada.
- Putz!
- Éééé! E tome cuidado com o Betinho, o filho dele. O gordo não entende merda de bosta alguma, mas posa de fodão dono do pedaço. Adora humilhar as pessoas para se sentir poderoso! E fica esperto também com a Lídia, ela é lambe cu do Adalberto. Ela come até a merda dele se ele pedir!
- Ok, obrigado pelas dicas.
- De nada! Volto para minha sala.....
Nisto apareceu o Fábio, um jovem alto, de ar nerd, óculos de lentes grossas, bem apessoado, ele cuidava da manutenção dos computadores.
- Ei galera, o Betinho chama todo mundo para uma daquelas reuniões perda de tempo dele. Vamos lá que o gordo não curte esperar.

A tarde morria e toda a equipe estava estava sentada numa ampla sala, em círculo. O barulho do trânsito era alto e o gordinho antes de dar a palavra fechou a porta do varandão que dava para a rua. Baixou as persianas porque o sol poente lhe incomodava os olhos.
Começou então um blá blá blá sobre educação, cortesia, limpeza, pontualidade e dar descarga toda vez que alguém fosse ao banheiro e nisto ele deu ênfase. "Tô cansado de ir no wc e ver aqueles cagalhões nojentos boiando na privada", disse. "E não joguem papel no vaso, no local anterior tínhamos que desentupir direto!"

No ônibus lotado que o levava de volta para seu dormitório, Palumbo sentia-se oprimido, com o peso de saber que não tinha um lugar no mundo. A arte funcionava como um cano de descarga, mas mesmo esse tubo parecia abarrotado na maioria das vezes. Sentia que seu tempo se extinguia rapidamente. 

Dormiu mal aquela noite, a bexiga incomodava.

No dia seguinte, no trabalho, esforçava-se para criar as páginas das historinhas com as linhas fieis ao máximo possível do traço medíocre do Kleber. Vez por outra tinha que consultá-lo sobre algum detalhe. Era um rapaz de baixa estatura, cabelos negros e roupas amarfanhadas, simpático de expressão, muito divertido no falar, o problema é que a boca do cara fedia horrivelmente. Um outro cara lá, o Pablo, nunca deixava por menos, dizia: "se alguém tiver a fim de uma pastilha de merda, é só pedir para o Kleber, ele criou a fórmula exclusiva!" Todos: "Hahahahahah!!!" Kleber não se importava, sempre respondia: "no cu da puta da tua mãe, Pablo!" "Hahahahahah!!!

Palumbo sorria, mas era azedo demais para essas brincadeiras pueris; contudo, era sempre abordado pelos desenhistas mais jovens, que nunca tinham ouvido falar dele, mas depois de consultarem na internet, ficavam maravilhados com seu talento.
Um deles, chamado Caíque, gostava de conversar, não era um bom desenhista, mas era um minúsculo rapaz de bom coração, sensível e bonito de aparência.
- E aí, Ed, tudo bem?
- Tranquilo, e você?
- Tudo joia. Tem um tempo?
- Pouco, não quero parecer disperso, noto que aquele tal de Betinho fica de olho em mim, acho que o cara se incomoda por ter um sujeito mais velho trabalhando aqui. Mas pode falar, o que há?
- Ah, nada demais, só conversar um pouco.....esses caras daqui não passam de uns merdas...
- São apenas rapazes, a zoação faz parte da tribo.
- Rapaz, briguei com minha namorada....quer dizer, isso é frequente....não nos entendemos bem....nem gosto muito dela, nem sei porque estamos juntos.
Palumbo era bom em ler as pessoas. Aquele rapaz, apesar de tímido, se achava a última bolacha do pacote. Batia muita punheta, isso era certo, todo homem faz isso, claro, mas esse era viciado, e tocava uma sempre pensando na mulher de seus sonhos que nunca chegaria, porque tal criatura não existia.
- Na verdade gosto de uma outra mina, uma que conheci na casa de um chegado no Méier.
- E qual o problema com ela?
- Pois é, fui visitar esse amigo e essa prima dele estava lá. Ficava perto de nós ouvindo nossas conversas, dando pitacos. Tentei ser gentil mas a menina não dava espaço, era de uma arrogância tamanha que....sei lá, achei que pelo jeito que ela me olhava só estava se fazendo de difícil. Depois esse amigo me falou que a tal prima tinha me achado bonitinho, isso mesmo, bonitinho, mas que eu era infantil e muito baixo para ela.
- E você gostou dessa garota boçal?
- É, bem...
- Eu nunca fui feliz na vida amorosa, espero que apesar dos seus insucessos atuais você encontre alguém mais afinado com você.
- Porque não foi feliz, Ed?
- Se eu soubesse talvez eu tivesse a solução de todos os casos aí então escreveria um livro e ficaria rico, quem sabe? Sei lá, acho que sempre me senti atraído por mulheres complicadas, egoístas, loucas...não sei.
- Ainda pode aparecer a mulher da sua vida.
- Pode ser, mas na boa, estou dando um tempo, longo tempo...não tenho mais saco para ser cobrado e policiado....
Nisto o gordinho entrou na sala e ao ver os dois conversando logo chamou Palumbo à sua sala.
- Ed, seguinte, cara, direto ao ponto: se você não trabalha eu não ganho dinheiro....não perca tempo com esses carinhas, eles tem toda uma carreira pela frente e você está no fim da linha, faça teu trampo apenas e se quiser bater papo, espere o fim do expediente.
- Ok, desculpa, aí.
- Ei, não leva a mal, tocamos um negócio aqui, não é nada pessoal.
- Sem problema. Posso voltar ao trabalho então?
- Demorou!

A noite, de volta para casa, o coletivo estava parado no trânsito, todas aquela pessoas suadas, encostadas nele o agoniavam. Palumbo era um cara susceptível, a conversa com o Betinho o fez mergulhar num negro e profundo poço de depressão, queria não se importar, mas aquilo era maior que ele. Pensando numa forma de morrer, imaginou que o ônibus ao passar por uma das favelas no percurso, seria invadido por bandidos e na confusão, uma bala o atingiria no peito ceifando sua vida automaticamente. Sempre que tinha essas ideias, a coisa tinha que ser rápida, indolor.

Chegou à farmácia e encontrou o Milton e a esposa na porta lhe esperando.
- Salve! Aconteceu alguma coisa? Estão com uma cara!
- Seu Ed, o senhor terá que se mudar daqui!
- Ora essa, porque?
- Meu sobrinho, Florêncio falou para a Edilsa que o senhor fez propostas sexuais para ele! E isso eu não posso permitir em meu estabelecimento.
- Como é?!?
- Isso mesmo que o senhor ouviu!
- Mas isso é mentira!
- Meu sobrinho não mente - falou a mulher.
- Desculpe, senhora, mas mentiu desta vez! Eu nunca faria uma coisa dessas.
A mulher o olhou com nojo. Usava óculos fundo de garrafa e tinha muitos pelos, nos braços e sabe-se lá mais onde, notava-se que raspava o queixo e o buço.
- Um homem que vem atrás de outro, de mala e cuia, sem mulher.....eu devia ter prevenido o Milton! 
Palumbo pensou em jogar as cartas na mesa, falar da bunduda que vinha as quintas feiras e deixar o Milton numa saia justa com a esposa e dizer que o anão é que quis mostrar o pau para ele, mas não era seu hábito pagar o mal com mal e possivelmente ela nem acreditaria. Constrangido e sem ação não soube o que dizer.
- Vou lhe dar um tempo para o senhor encontrar outro lugar para morar, mas por favor, não demore muito.
Dizendo isto, o narigudo voltou com a mulher ao balcão e Ed entrou calado. Seu silêncio parecia uma admissão de culpa, mas o que ele poderia fazer?
Entrou no quartinho e ficou lá, ruminando sua vergonha até que ouvisse a porta de ferro descer.
Saiu e foi tomar seu banho. Não tinha fome, apenas uma sede abrasadora. Tomou as últimas duas garrafas de água sofregamente. Pegou no colo o Conan dos felinos e o acariciou. O gato se debateu para voltar ao chão e Ed o soltou. "Vou sentir falta de você, meu solitário amigo."
A vontade de criar, de trabalhar em seus projetos, lhe dando combustível para continuar vivendo, o abandonou naquele momento.
Deitou-se no escuro pensando na infâmia. Parecia suspenso no ar. Adormeceu sem perceber, depois de muito tempo.

O dia nasceu nublado e frio. No trabalho, Ed encontrava dificuldades para se concentrar na tarefa, levara sua pasta com seu novo projeto, não confiava mais deixar coisas que para ele tinham mais valor na farmácia do Milton; ouviu alguém dizer que Adalberto estava viajando. A secretária antipática veio chamá-lo dizendo que o Betinho queria falar com ele. "Caralho, pensou Palumbo, que será que esse bosta quer agora?¨"
Chegou na sala do gordo e encontrou-o com uma camisa amarela e um cachimbo na boca. O desenhista se segurou para não rir. Não havia nada mais díspar do que um objeto como aquele no rosto de um cara que mais parecia um ovo cozido no pequi.
- Queria falar comigo?
- Sim. Cara, tu chegou e nem apareceu aqui para dar um bom dia.
- Tá falando sério?
- Claro, aqui praticamos a urbanidade, somos uma família.
- Ok, capisco. Devo dar boa noite na hora de ir embora?
- Tá sendo irônico, Ed?
- Jamais, só quero entender as regras do jogo.
- Não há jogo nenhum, não sei como eram os locais onde você já trabalhou mas aqui somos civilizados.
- Tá certo.
- Ok, pode ir agora.

Parecia que era até mentira, tantos problemas na vida e o cara vinha cobrar este tipo de coisa. Quanta hipocrisia!

Mal se sentou na sua mesa e ouviu-se uma gritaria.  "SUA PUTA NOJENTA, CÊ FOI FAZER FOFOCA DE MIM PRO ADALBERTO? TE ARREBENTO A CARA, SUA PORCA!!!! VOLTE AQUI, PUTA IMUNDA!"
"AFASTEM ESSE LOUCO VICIADO PRA LONGE DE MIM OU EU JURO QUE ENFIO UMA FACA NA BARRIGA DELE!!!!"

Ed nem se ocupou de ver o que ocorria, enquanto a baixaria rolava ele procurou focar no trabalho. Depois ficou sabendo pelo Eliaquim que o Pablo, que passava a maior parte do seu tempo cheirando pó, quase não aparecia para trabalhar e a Lídia o entregou para o Adalberto.

À tarde quando o Palumbo treinava com o Photoshop, pintou uma dúvida e ele foi procurar o Fábio. Encontrou o cara saindo de sua sala as pressas.
- Fabio, não tenho muita confiança nos conhecimentos do Mauro, por isto vim a você, tô com uma dúvida....
- Agora não cara, agora não!!! Eu tenho que CAGAR!!!! - e foi as pressas ao banheiro.
Ed se sentou numa cadeira, pegou uma revista e esperou. Não via as imagens das páginas que passavam por seus olhos. Em seu íntimo o caos se revolvia. Estava arrependido de vir a esta cidade que todos insistiam em dizer que era maravilhosa, mas que ele detestava. Procurava na memória o ponto onde sua vida começou a dar errado e ele não sabia dizer, um abismo sempre puxava outro abismo e assim sucessivamente. Tudo parecia estar se encaminhando até o anão sobrinho do Milton caluniá-lo - e também esse tal Betinho pegar no seu pé. Tinha que arrumar um local para ficar mas não tinha dinheiro para pagar. Ele não tinha um único amigo que pudesse acolhe-lo por um tempo. TEMPO, era tudo o que ele precisava e tudo o que não tinha. Estava velho, já, e as esperanças morriam dia a dia.
O Fábio entrou suado e com cara de satisfeito.
- Porra, cara, saiu muita bosta! Não tem nada mais prazeroso do que uma boa cagada! Mas diga aí, em que posso ajudá-lo?
- Ah, sim é....
- Antes deixe-me te mostrar uma coisa:
O jovem alto de óculos, colocou um pendrive no computador e abriu uma pasta, logo um vídeo mostrava um cara robusto enrabando um loura de bunda enorme.
- Escuta Fábio, minha época de assistir vídeos pornôs já passou há duas décadas...
- Espere, espere...é agora!!!!
Então, o grandão tirou o pau do cu guloso da loura e em seguida saiu um monte de merda onde o cara pegou com as mãos e lambuzou o rosto.
- Porra, cara, cê é doido? Fez Ed com cara de nojo.
- Hahahahahahahah! Hahahahaha!
- Ok, deixa pra lá, vou nessa!
- Hahahahahahahah!

Apesar dos pesares Palumbo produziu bem, mesmo tendo que limitar seu estilo para atender à mediocridade que produziam ali; seus traços tinham elegância; seus cenários eram detalhados. Ficou satisfeito com suas páginas. Preparava-se para ir embora quando foi anunciado que o Betinho convocava a todos para uma reunião.

Todos em círculo e o gordinho da camisa amarelo vômito de neném começou a falar com sua voz típica:
- Pessoal, o que foi que eu falei na última reunião? Dar a descarga todas as vezes que alguém usar o banheiro. Alguém deu uma cagada homérica e não teve a decência de sumir com aquilo!!!!
Eu não fui! Eu também, não! Nem eu! Diziam todos.
Ed sabia quem tinha sido. Só se limitou a escutar, esperar pelo fim da maldita reunião e ir embora.
- Tem algo a dizer, Ed? Indagou o gordo.
- Como?
- Tem algo a falar a respeito disso?
- Tá achando que fui eu????
- Não to achando nada, mas tu é o único que não segue muito as regras; quando vai ao banheiro demora muito por lá, mais que o necessário....entra sem dar um bom dia a todos, na hora do lanche fica calado num canto. Tu não curte muito se misturar, não é? Acha que é melhor que todos aqui?
- De maneira nenhuma.
Todos o olhavam.
- Bem - suspirou o patrãozinho - a Lídia agora vai ficar de olho, toda vez que alguém for ao banheiro ela vai olhar se está tudo certo.
- Eeeeu?!?
- Sim a senhora mesmo!
Ed gostou. Do jeito que aquela mulher se comportava e lambia o cu dos chefes, nada mais apropriado do que ela sentir cheiro de merda!

Finda a reunião o desenhista precisava urinar urgentemente, mas como até suas idas ao banheiro eram monitoradas, decidiu ir num bar que ficava próximo da empresa.
No mictório ele colocou o pau pra fora e ficou esperando a urina sair. Sempre demorava, mas desta vez ele não conseguia. Se concentrou, se esforçou e nada. "Vamos, vamos, por favor!!!!"
Uma agonia começou a crescer. Inútil. Precisava ir a um pronto socorro.
Havia uma UPA a alguns quarteirões dali. O vento batia lúgubre e as nuvens carregadas prometiam uma bela tempestade.
Neste momento ele viu um cara arrogante que sempre estava lá, no escritório do Adalberto, conversando com ele; segundo o Eliaquim, o sujeito era um fodão da Rede Globo, roteirista assistente, de novelas, um tipo que ganhava muito dinheiro e torrava tudo com putas, whisky e cocaína. Estava abraçado a duas mulheres de parar o trânsito, uma loura e outra morena. Entraram num táxi. Existem pessoas que - não duvidando da competência - se dão muito bem na vida e desperdiçam tudo com futilidades.
A bexiga doía e parecia que ia se romper, ele acelerou o passo mas viu um bar e resolveu fazer uma última tentativa de mijar, se demorasse muito na emergência não chegaria a tempo de encontrar a farmácia do Milton aberta.
No reservado fedorento a urina parecia bloqueada....ele suava frio, a aflição tomava conta dele. Infrutífero, estava escrito que ele teria mesmo que encarar o hospital.
Depois de algumas informações e travessas de rua ele chegou ao destino. Deu sua identidade ao guarda, colocou uma pulseira de papel e se dirigiu a um guichê que tinha uma fila de umas dez pessoas. Olhou ao redor e o local estava cheio. Um mundo doente. Ele tentava não se dobrar ante o sofrimento. Uma moça baixinha, de uniforme verde claro, muito bonita, de aspecto indígena, notando que ele realmente não estava bem, perguntou:
- Senhor, qual o seu caso?
Palumbo resumiu e ela o pegou pelo braço e o levou a uma outra sala.
- Vou trazer o médico até aqui, enquanto isso me dê sua identidade para eu tomar os procedimentos de atendimento, escreva aqui por favor seu endereço e telefone.
- Obrigado por abreviar, minha filha!
Enquanto aguardava, o ilustrador não pode deixar de pensar em como a sorte nunca o favorecia. Tudo parecia correr bem e então, uma doença e um tiranete o tirava do rumo. Sempre a mesma história. Uma espécie de revolta crescia dentro dele.
Uma médica negra entrou com ar de enfado. Perguntou seu nome, idade, o que fazia e se tinha problemas de próstata. Ele não soube dizer. Se ele fizera exames nos últimos cinco anos. Ele fizera dois e nunca tinham detectado nada. Ok, ela pediu a indiazinha que o levasse até tal sala o fizesse o procedimento de emergência. Foram. Ele se deitou em uma maca. Nisto chegou uma outra auxiliar gorda. Sonda? Isto mesmo. A indiazinha solicitou que ele abaixasse as calças até as canelas. Apareceu outra auxiliar negra. Parecia que todas as auxiliares de enfermagem daquela UPA queria ver seu pau que neste momento devia medir menos de um centímetro. As mulheres fofocavam sobre os mais diversos assuntos entre si como se estivessem num salão de beleza.
- O senhor fique calmo, senhor Palumbo, vai ficar bem em alguns momentos.
E foi exatamente a pequena e bonitinha índia com suas mãos de fadinha que passou xilocaína em uma comprida sonda, pegou seu pênis e introduziu a borracha em sua uretra. Uma sensação de suplício tomou conta de Ed ao sentir sua entranha sendo invadida, ele trincou os dentes e sem perceber apertou a mão da negra, que retribuiu com carinho e um sorriso maternal. Ao lado da maca uma espécie de penico futurista recebia a urina represada. A fadinha indígena apertava suavemente seu baixo ventre. O alívio foi imediato.
Depois do que pareceu ser uns longos minutos ele soltou a mão da negra, que gentilmente limpou o suor de sua testa com uma gaze. "Obrigado, meu bem!", a mulher sorriu mostrando dentes branquíssimos, "De nada, senhor, o pai do meu marido teve esse problema." As mulheres se dispersaram.
A índia retirou a sonda com cuidado, exibiu para ele o penico cheio de mijo com um sorriso travesso.
- Tinha muita coisa aí, hein!
- Nem me fale. Espero que essa experiência não se repita.
- Sei não - disse a índia - talvez o senhor deva ficar com uma sonda aí até que o seu problema tenha sido devidamente resolvido.
- Será???
Ela deu de ombros. Ele levantou as calças e se sentou.
Sozinho na sala por uns momentos, o desenhista pensou em como seria bom estar em um lugar seu, um lugar seguro, não precisava ser grande, bastava ter as coisas básicas como fogão, geladeira, uma cama confortável, podia ser um sofá, um pequeno armário para suas poucas roupas (ele não tinha vida social e nem pretendia), e duas coisas indispensáveis: uma boa prancheta de desenho e uma estante para seus livros e álbuns de quadrinhos, podia ter um cavalete também - óleos e acrílicas eram uma grande paixão e nos últimos anos ele não conseguia tempo para pintar -; o local não poderia ser úmido ou muito quente, e longe de vizinhos barulhentos e bisbilhoteiros. Ah, não podia faltar um bom aparelho de som, para vinil e CD; música sempre!
Talvez fosse pedir muito para um cara como ele. Não ansiava por companhia, nada de mulher ou filhos, ele havia fracassado em ambos, como companheiro e pai. Tudo o que queria era um canto em paz, fazer seu trabalho sem tiranetes pressionando. Um dia, quando muito velho, talvez fosse morrer num asilo, mas....
Seus devaneios foram interrompidos pela entrada da médica apática na sala.
- Seu Ed Palumbo, solicitei um ultrassom do seu abdome para ver como andam as coisas aí dentro do senhor, mas já adianto que seria bom procurar um urologista urgente. Conversei com uma amiga minha que atende na clinica de Botafogo, eles tem aparelhos para fazer seu exame lá. Se não tiver planos, pode ir hoje, o senhor terá prioridade, mesmo assim pode ser que demore um pouco.
- Poxa, agradeço muito! Pode ter certeza que a esta hora não tenho mesmo para onde ir.
A mulher folheava uma pasta com alguns papeis e nem fez caso do seu comentário. Entregou-lhe um papel com um nome e endereço.
- Bem, procure pela doutora Sandra, ela está de plantão na emergência e vai acelerar as coisas para o senhor. Boa sorte!
- Obrigado!

De novo na rua, uma terrível sensação de desamparo pesou nos ombros do artista, ele se encolheu com o vento frio e à chuva fina que caía. Sabia onde era o hospital e caminhou para lá sem pressa. O conceito de ter um canto seu agora parecia não lhe trazer alento, mas ele não podia desistir, tinha o emprego, se empenhava em trabalhar direito, bastava não se curvar às provocações dos sociopatas, logo teria seu salário e poderia alugar um apartamento. Tudo iria entrar nos eixos de novo, era só uma fase ruim que precede a uma boa, a vida era cíclica.

Chegou no Hospital, adentrou à emergência, o local estava em polvorosa, era gente para todo lado, macas com doentes, velhos e mães com crianças de colo em sua maioria, todos fodidos como ele; não, como ele não, boa parte ali estava muito pior. Eram baleados e esfaqueados dando entrada a todo instante. Ele procurou pela doutora Sandra. Uma atendente mulata e gorda disse que tinham duas doutoras Sandra na emergência naquele dia. Qual delas? Palumbo não sabia.
- Bem, onde encontro as duas? Explicando o meu caso, uma delas saberá quem me enviou. A mulata olhou-o sem vê-lo e apontou em uma direção e falou em salas 10 e 14. Ele foi para lá. Uma médica rechonchuda de óculos de grau com um avental sujo de sangue com uma plaquinha escrito Sandra Martinelli falava asperamente com um auxiliar. Quando ela se dirigiu rapidamente para uma determinada direção ele a acompanhou e relatou o seu caso.
- Como se chama a médica da UPA que indicou o senhor a mim?
- Eu...poxa...desculpe, nem me lembrei de perguntar! Ed se sentiu um idiota.
- Como era ela?
- Negra, de um metro e setenta mais ou menos.
- Ah, lembrei, a Nelza, ela me ligou. Desculpe, havia esquecido. Arrume um lugar para se sentar por aí. Eu procuro o senhor quando puder tratar do seu caso.
- Ok, obrigado!

Durante as duas horas em que esperou no meio daquela agitação, Ed lembrou de tudo o que lhe aconteceu nos últimos dias. Por algum motivo fixou seu pensamento em um escritor fracassado que vivia lá, na Trix, gravitando em volta do Adalberto. Devia ter uns 70 anos. Tinha escrito livros de bolso durante os anos 70 para sobreviver. Havia roteirizado vários episódios da série televisiva O Vigilante Rodoviário nos anos 60. Mas ele dizia que roteiristas naquela época ganhavam pouca grana, muitos nem recebiam os créditos por seus textos. Era um senhor muito educado e culto, com muita história para contar dos artistas de televisão que cheiravam pó e consumiam álcool como loucos. Putaria que rolava solta nos bastidores entre atores, atrizes e produtores. Como queria manter sua integridade nunca participou do circo e foi colocado para escanteio, para morrer à míngua. Palumbo não se sentia diferente dele.

A gordinha de óculos veio a ele, sempre apressada.
- Venha comigo!
Ela deixou-o nas mãos de uma auxiliar de rosto muito bonito chamada Magda.
- Me chamem quando ele estiver pronto para o exame!
Juntou-se a Magda uma ruiva estonteante chamada Rosa, pele alva, sardas no rosto, cabelos vermelhos e um corpo escultural, pequenos seios, cintura fina e uma bunda colossal, como se houvessem duas melancias por baixo da calça verde clara, tudo isto era sustentado por pernas longas e bem torneadas. Tinha um sorriso encantador e uma voz argentina que trazia paz ao conturbado desenhista. Devia ter no máximo 25 anos. Ed não pode deixar de pensar que se tivesse metade da idade tentaria cortejá-la e sabia que foi isso que quebrou com ele em seus relacionamentos, envolver-se demais por achar que o interior de suas mulheres era tão bonito como o exterior.
Com sua voz mágica a ruiva falou:
- Quero que o senhor beba pelo menos uns cinco copos de água bem abundantes, mesmo que não tenha vontade, só poderemos proceder com o exame se sua bexiga estiver bem cheia. Nos avise quando sentir forte vontade de urinar.
- Ok!
Ela se afastou com suas duas montanhas de bunda atraindo os olhares dos marmanjos estropiados do lugar. Com certeza ela deixava a bunduda do Milton no chinelo. Uma entre mil.

Foi ao bebedouro, encheu seu copo plástico com água e bebeu. No terceiro copo observou um cara alto, de boné, camisa de time sem mangas, moreno, aspecto capadócio, com tatuagens de bandido, se aproximar da ruiva e falar em tom baixo, ácido, entre os dentes. Devia ser o marido, o namorado, sei lá.
- Não me sacaneia, porra, faça o que te mando! Conversamos em casa quando tu chegá, mas vê lá, hein!
Definitivamente algumas garotas tinham péssimo gosto para homens!

Depois do sexto copo de água, achou que bastava, foi se sentar num banco que vagou por ali e fechou os olhos tentando ignorar o cheiro de éter e o barulho de corre corre do lugar. Sentiu um enorme cansaço o envolver. Um sono o abraçava quando foi desperto por um incômodo na bexiga. Estava cheia. Era o momento.
Levantou-se e procurou a ruiva. Não a viu. Magda saía de uma sala apressada.
- Ah, olhe, acho que a bexiga já está cheia!
- Um momento senhor, tenho que fazer um curativo urgente, já venho vê-lo!
Os momentos seguintes foram de novo aquela agonia. Mijar sem poder, desta vez por outro motivo.
A Rosa ruiva surgiu.
- O senhor está bem? Parece pálido!
- A bexiga já está cheia, foi instantâneo!
Ela o pegou com sua mão pequena, branca e fria como um cadáver e o levou a uma sala com uns aparelhos.
-Deite-se naquela maca. Isso deveria ser feito num laboratório, mas como o seu caso é uma emergência, vamos proceder aqui mesmo. Vou chamar a doutora Sandra, abra sua camisa e abaixe sua calça até um pouco na linha dos quadris.
Os minutos pareceram eternos até que a gordinha de óculos entrou arquejante.
- Que noite, meu Deus! Que noite! Ainda nem pude lanchar!
Rosa passou um gel no abdome definido do desenhista até quase o seu púbis. Era gelado.
Então a doutora com um transdutor começou a mapear sua barriga. Ela via tudo em um monitor que ficava fora do alcance de Ed. A ruiva digitava o que a médica ia dizendo. Em cada lugar que ela apertava , Palumbo sentia a bexiga doer.
- Calma, é desconfortável mas necessário, aguente! O senhor tem um pouco de gordura no fígado, pouca, mas tem. Pequenas pedras nos rins, mas não precisa se preocupar, é normal na sua idade. Agora, o que é preocupante é sua próstata, ela está bem inchada, isto se chama Hiperplasia Benigna da Próstata. É comum em homens acima dos 40, 50 anos, mas deve ser acompanhado a cada seis meses pelo menos. Isto foi o que causou a sua obstrução da via urinária hoje. De resto, tudo ok. Tome, pode limpar o gel, há um banheiro ali, pode urinar agora
Ed limpou-se com o papel que a médica lhe deu e se encaminhou para o reservado enquanto ela dava instruções à ruiva.
Palumbo mais uma vez não conseguia ejetar a urina, parecia trancada dentro dele.
- Doutora, não...n-não consigo....
- Oh, céus, é hoje...! Rosa, pegue uma sonda, xilocaína e a cuba, rápido! Cuide disso, eu volto aqui com um remédio para este coitado!
Deite-se de novo, senhor, e abaixe as calças, por favor.
O homem se sentia ultrajado, um inútil!
O contato da mão fria da auxiliar de enfermagem com seu pênis fez com que se ensaiasse uma ereção. Ele não queria aquilo, mas não pode evitar mesmo com todo aquele incômodo.
Pacientemente, com todo carinho e cuidado a moça de cabelos de fogo introduziu a sonda em sua uretra. A bexiga parecia ter uma fogueira em seu interior, a fina borracha adentrando seu ventre o fez gemer e trincar os dentes.
- Calma, calma - dizia o anjo.
Em poucos momentos ele ouviu o som de um jato sendo expelido para o interior do penico de design futurista e o lenitivo pouco a pouco se fez presente.
- Oh, Senhor....obrigado! E obrigado a você, meu anjo!
- De nada, senhor, só fiz meu trabalho. Pronto! Pode subir as calças. 
Enquanto afivelava o cinto, Ed falou:
- Escute, Rosa, não é? Esta é a segunda vez que isto acontece esta noite, será assim agora? Deverei me preocupar?
- A médica deve lhe dar uma medicação para ajudar, mas é importante que o senhor procure um urologista e seja acompanhado.
Logo a Sandra entrou com a amostra grátis de um remédio. Rasurou algo em um receituário e entregou-lhe,  recomendando tomar um comprimido antes de dormir, poderia tomar um agora. Novamente aconselhou a procurar um especialista e pediu que esperasse o resultado do exame impresso e que estava dispensado.
Ele ficou no corredor agitado, aguardando. Olhou no relógio, era 2:30 da madrugada. Ele nem viu o tempo passar, tudo parecia tão rápido! Ficou pensando, e se ele não procurasse ajuda? Sua bexiga estouraria e ele teria teria um infecção abdominal? Isso o mataria? Certamente não de forma instantânea e ele não queria sofrer. Tudo o que desejava era dormir e não mais acordar.
Tempo depois a Magda entregou-lhe um envelope com o resultado do ultrassom, desejou boa sorte e foi cuidar dos inúmeros sofredores.
Ed não quis sair, ir para a rua seria perigoso. Ainda tinha tinha sua pulseira de papel verde no pulso. Achou uma cadeira vazia e se deixou ficar lá, havia um televisor na parede, mas não passava programação, apenas propaganda do governo federal sobre saúde; baixou a cabeça, subtraindo dela tanto quanto possível os sons e odores externos; depois de um tempo que não seria possível determinar, adormeceu.

Quando abriu os olhos já eram quase 6 da manhã. A bexiga, dolorida, pedia pra ser esvaziada. O desenhista atemorizou-se, mas estava num hospital, se tivesse problema, teria que enfrentar de novo o constrangimento e a maldita sonda. Mas desta vez a urina saiu, o remédio já fizera seu efeito. O líquido jorrou lento e doloroso, sua uretra devia estar ofendida pela passagem da sonda.

Saiu do local para um dia frio, garoento, teve fome. Caminhou até um supermercado que ficava aberto 24 horas. Num caixa eletrônico, consultou seu saldo. Não tinha muito, pelos seus cálculos dava para as passagens de ônibus e um lanche magro, ocasionalmente. O mês pelo quartinho no Milton felizmente já estava pago, mas ele não poderia ficar lá muito tempo, na verdade, se pudesse ele não voltaria nunca mais. E o que ele tinha feito? Nada!! Tudo intriga daquele maldito anão filho da puta! A humanidade na sua maioria era composta de gente má e mentirosa, invejosos e perversos. Para cada Madre Teresa havia uns vinte Maos, uns trinta Stalins. Essa era a dura realidade. Mesmo os maiores gênios eram pessoas execráveis, canalhas e fingidos!
Comeu um misto quente com um suco de laranja numa padaria, a maioria das pessoas numa hora dessas tomava café com leite e um pãozinho, as vezes com um ovo dentro. Ele não era como elas, ele não pertencia a este mundo, ele não suportava o Carnaval e nem tinha time de futebol para o qual torcer. Ele admirava os artistas que o influenciaram mas sabia que boa parte deles não eram boas pessoas. Conhecera muitos talentos, 90% deles eram pulhas arrogantes. A falsidade envolvia o meio, para fazer parte das panelas era necessário ser dissimulado, como na política, e ele sempre foi autêntico.
Ainda faltavam uns 15 dias para receber seu pagamento, sabia que os quartos de pensões, nos arredores, cobravam aluguel adiantado, teria que enfrentar a cara feia do Milton e da Edilsa por mais duas semanas.

Sete horas da manhã e ele já estava na portaria da Trix Comunicações. Suas roupas estavam úmidas por causa do mal tempo. Sabia que Helena - chamavam de Leninha -, a garota da limpeza chegava bem cedo, era ela quem fazia o café para os que chegavam ao expediente às 9 horas. Não demorou muito e lá descia ela do ônibus com um guarda chuva. Era uma simpática mocinha rechonchuda de cabelos sempre presos em coque. Não devia contar com mais de vinte anos e já tinha dois filhos. Que merda as pessoas fazem de suas vidas!
- Seu Ed, bom dia! Madrugou, hoje? Disse ela sorrindo com dentes cariados.
- Pois é, bom dia!
Ela abriu a porta e acendeu as luzes. Palumbo seguiu para sua sala e deu início aos seus trabalhos. Sabia que a melhor forma  de espantar a depressão era dar vida no branco do papel.
- Quer um café, seu Ed? Acabo de fazer.
- Não, obrigado, Leninha!
Ele foi ao banheiro, urinou de forma um tanto sofrida, bochechou a boca já que não estava munido de sua escova de dentes, lavou o rosto, arrumou seus longos cabelos grisalhos em rabo de cavalo e retornou à sua prancheta. Mergulhou no trabalho lutando por fazer bonito num roteiro insosso quando ouviu a voz peculiar do gordinho tirano. Levantou-se, foi até a sala dele e o cumprimentou com um sorriso fingido.
- Bom dia, Betinho!
- Opa, bom dia, Ed! Assim que eu gosto!
- Legal, deixa eu voltar para o trabalho.
- Vai lá!

Pouco a pouco os outros funcionários foram chegando. Tudo o que Ed desejava era ficar só, em silêncio, realizando sua atividade, não queria falar nada com ninguém mas era obrigado a sorrir, apertar mãos, ouvir anedotas e fofocas.

Perto da hora do almoço Adalberto chegava convocando todos para uma reunião.
- Pessoas, começou ele com seu sotaque de paulistano da gema, acabo de voltar de Brasília e fechamos um belo contrato com o governo federal para criar quadrinhos instrucionais sobre as rodovias do norte do país. Tudo graças a este material aqui que levei para eles!!!!
- Yupiiii!!!
- Urrraaa!!!!
Todos aplaudiram e começaram a se abraçar.
O material citado foi exatamente a edição desenhada por Ed Palumbo, que teve que fazer mágica para suplantar a mediocridade da edição original.
- Foi um belo trabalho de equipe! Estamos de parabéns!!!!
- Vivaaaa!
Trabalho de equipe? Ed roteirizou a história - já que o Eliaquim estava criando outro projeto - desenhou e arte finalizou e coloriu tudo.
- Com este contrato nossa empresa vai para a estratosferaaaa!!!!
- Urrraaaa!!!
 O negão gerente de produção era o que mais vibrava. Dizia que era faixa preta de karatê e fazia movimentos de dar socos no ar. Patético!
Todos sabiam que o responsável pela revista que abriu esta porta era da autoria de Palumbo e ao invés de o felicitarem, olhavam-o com desdém. Era sempre assim. Ele não ligou, pessoas melhores que ele passaram por isto. No livro de memórias do Willian Shatner sobre a série Star Trek ele relata que quando o Sr. Spock se tornou uma mania nacional, os produtores falavam nos bastidores: "querem apostar como esse filho da puta do Nimoy vai pedir aumento e se achar melhor que os outros?" Algo que nunca aconteceu. Como recebia muitas cartas dos fãs, ele contratou com dinheiro do próprio bolso uma secretária para responde-las.
A única pessoa que veio até ele e o cumprimentou foi o Eliaquim.
- Parabéns, camarada, foi seu talento que começou a transformar esta porra numa empresa de verdade!
- Obrigado, amigo!

Toda aquela vibração daria, um pouco depois, uma reviravolta. Meia hora antes do intervalo para o almoço Wesley entrou na sala bradando:

- PORRA, TÃO QUERENDO ME ENRABAR, MAS EU NÃO VOU ME FODER SOZINHO, VOCÊS, FILHOS DA PUTA, VÃO TOMAR NO CU COMIGO!!!!!!
- Que aconteceu cara?!?
- Não interessa, todos aqui vão varar a noite no trampo comigo!!!!!
- Desculpa aí, mas eu não posso, não!
- Nem eu!
- Querem continuar a trabalhar aqui, seus merdas??? Então tem que dar o sangue! Este contrato novo exige uma revista pronta, editada, entrando na gráfica até o fim desta semana!!!!
- O quê?!?
Iniciou então uma discussão entre o Pablo e o negro almofadinha que quase chegou às vias de fato.
Alheio àquilo tudo, Palumbo continuou seu trabalho. Mas é claro que a sensação de mal estar, de algo como o fim do mundo próximo era patente na sua alma.
Este contrato realmente significava um bom dinheiro para a empresa mas ele sabia que boa parte da pressão recairia sobre suas costas e nem por isto o pagariam mais.

Todos saíram para o almoço mas ele não tinha fome. Sozinho na sala, uma sensação terrível de cansaço nos membros o afligia. A cabeça doía e as pálpebras pesavam. Ele se inclinou sobre a prancheta, colocou a cabeça sobre os braços, dobrados, numa incômoda posição e pegou no sono.

Uma forte cutucada em suas costas o despertou. Virou-se sonolento, com dores nas articulações dos ombros e divisou o desagradável rosto redondo de Betinho.
- Não te pago para dormir, cara!
- Mas é intervalo!
- Mesmo assim, aqui não é hotel, se quer dormir vá para outro lugar.
- Escuta, rapaz, na boa, você tem algo contra mim? Fiz ou disse alguma coisa que provocasse a sua antipatia?
- Como assim?
- Você vive me espezinhando, como se esperasse alguma reação negativa da minha parte.
- De forma alguma, só penso na empresa e nos funcionários, você como o mais velho dentre nós - deve ser mais velho até que meu pai - deveria dar exemplo. Se permito que cochilem aqui daqui a pouco vão estar andando de cuecas....
- Há uma grande diferença entre uma coisa e outra.
- Será? De qualquer forma nem sei porque estamos discutindo isso, aqui não é lugar para dormir e ponto final! Saca só, cara, eu tenho aqui um monte de desenhistas de talento, caras que em um ano ou dois vão estar arrebentando, todos eles totalmente íntimos das novas tecnologias, você é o único que ainda desenha a mão e não sabe trabalhar com photoshop. Se liga e fica esperto, emprego tá difícil e tu facilita demais, deu muita sorte que meu velho foi com a tua cara.
- Ao contrário de você, parece.
O gordinho o fitou com um misto de desprezo e ira.
- O que é aquilo ali, encostado na sua prancheta?
- Minha pasta de desenhos particulares.
- Posso ver?
- Não há nada ali que possa te interessar. Mas ok, vá em frente, pode olhar.
O tiranete abriu a pasta e despejou todas as folhas em cima da mesa, olhou aleatoriamente as dezenas de esboços e páginas finalizadas de um história de detetive na São Paulo dos anos getulistas que envolvia a caça a um vampiro e um lobisomem, numa arte que evocava o melhor período de Alex Raymond.
Tentando disfarçar seu embasbacamento, solicitou um café à Leninha que passava por ali.
- Espero que você não use material da empresa para fazer isto.
- Que material? Trabalho com o que comprei do meu bolso, e não uso as horas vagas para meus projetos pessoais, se é isso que está sugerindo também.
A empregada chegou com a bandeja de café e num ato desastrado o gordo esbarrou no bule que virou, entornando café nas belas páginas em cima da mesa. Num ato reflexo, Ed tentou evitar e queimou as mãos, a moça deu um grito e o cevado mal pode conter um riso de perplexidade.
- Caralho! Foi mal aí, Ed! Leninha, você é muito atrapalhada!
A mocinha, com um pano, tentava enxugar o líquido escuro que imediatamente amarelou e estragou irremediavelmente a maioria das folhas.
- Notei que é um quadrinho de época, pelas roupas, pode ser que este tom de café, no papel, possa dar um efeito legal...acho.
Ed cerrou os punhos e fechou os olhos, se contendo para não esmurrar o desgraçado.
Nisto o telefone tocou na recepção e providencialmente o moço atoicinhado foi atender.
- Seu Ed, me desculpe, por favor, ter estragado seus desenhos! Implorava a pobre moça.
- Tudo bem, não foi culpa sua. Eu é que tenho uma espécie de azar que me acompanha! Replicou o desenhista recolhendo tudo e colocando sem cuidado de volta na pasta. Mais um projeto abortado, como muitos outros; ele sabia, não teria condições psicológicas de refazer tudo aquilo.
Precisava sair dali, respirar ar fresco, evadir-se daquele ambiente. Jogou tudo num canto, pasta, carteira de documentos e caminhou em direção à saída.

O céu estava baixo, ameaçava tempestade.
Caminhava como que em transe, como um autômato. Maldizia-se por ser tão susceptível, por se importar tanto com os merdas que teimam em se sentir superiores aos outros, mas era sua natureza, sua situação de vida já tão frágil devido aos azares por que passava, o tornava presa fácil de ocorrências como a do Betinho, o arruinamento de suas páginas, somando-se a isso a injustiça causada pelo Milton, concluindo com sua saúde debilitada. Tudo nessa vida passava, dizia sua avó, o tempo bom, o tempo ruim. Mas este tempo ruim não estava passando, tudo parecia piorar e o abismo se agigantava a sua frente. Saiu de uma situação instável numa cidade cinza para uma outra quente e fedida. Quando pensou que teria um recomeço num ambiente que em tese tudo tinha a ver com ele, ou seja, artes, desenhos, criação, veio a certeza inexorável de que o mundo é composto de gente ruim e covarde e que ele não tinha lugar neste enxame.
As pessoas passavam por ele indiferentes, cada qual vivendo seu inferno - ou céu - vai saber.
Sem se dar conta, chegou até a praia, estava deserta, moribundamente deserta. Ele procurou refúgio em alguma lembrança boa, não conseguiu, sua infância tinha sido um horror, os relacionamentos com as mulheres eram como frutos que se mostram doces à primeira mordida e depois deixavam na boca um gosto azedo, travoso e por fim amargo.
Uns cães vadios passavam por ali, latiam em volta dele, exalando ódio, ódio aos humanos, à alegria, ao sono, à vida. Ele não fez caso e avançou pela areia molhada e gelada. Pequenas gotas de chuva caíam, infames. Os cachorros ficaram para trás.
Um grupo de meninos rotos e feios, na faixa dos seus 13, 14 anos corriam por ali, pulando por cima das ondas que quebravam naquela areia gélida. Vieram em sua direção.
- Ei, o que esse velho tá fazendo aqui, vestido como se tivesse num shopping?
- Sei lá, vai ver é maluco!
- Ou é viado, minha mãe falou que a praia quando tem pouca gente, fica cheia de viado.
- Éééééé! Deve ser uma bichona querendo chupar pica!
Deus, pensou Ed, o que aconteceu com as crianças do seu tempo? Como se transformaram nestes monstros?
- Sai fora daqui sua bichona! Ou vamos arrebentar com o seu rabo!
Ignorando os insultos ele seguiu em frente esperando que eles, assim como os cães, o deixassem em paz com sua comiseração.
Sentiu um impacto nas costas. Um deles tinha acertado um chute voador no seu dorso, ele cambaleou para frente tentando recuperar o equilíbrio, mas caiu de quatro ao solo. No exato momento em que se virou para ver quem tinha sido o autor da afronta, uma pedra o atingiu em cheio na boca.
- Cê tá fudido bichona! Vamo acabá contigo!!!!
- Vamo acabá com ele!!!
Palumbo cuspiu um sangue viscoso e vermelhão, o corte no lábio tinha sido feio. Ainda zonzo com a pancada, viu surgir entre as pernas magras com bermudas surradas que o chutavam, um fedelho de uns 10 anos, magérrimo, preto como carvão, olhos amarelos, brandindo uma espécie de cano com uns parafusos meio soltos na ponta.
- Eu acabo com ele! Eu acabo com ele!!!! gania o moleque golpeando-o com o cilindro pesado.
Ed tentava se proteger com o braço, mas a arma acabava resvalando em sua testa, orelha, costelas.
- Eu acabo com esse fia da puta!!!
- Ei, depois deixa eu bater também?
Os outros pequenos demônios tentavam chutá-lo no chão. Os cães atraídos pela cena patética vieram com tudo, ladrando em volta.
Aqueles braços magros não tinham vigor para golpes mais violentos mas abriram cortes por onde pegavam, por causa dos parafusos.
Uma sirene de polícia, vinda de algum lugar, acabou com o "linchamento".
- Eita, fudeu! Os homi!!!
- Bora cascar fora!!!!
E saíram correndo dali, rindo como loucos, acompanhados dos odiosos cães.
A sirene foi sumindo num horizonte que Ed não via.
Ficou ali caído, mais ferido em sua auto estima do que no corpo. O lábio cortado e inchado latejava mas ele não se importou, se levantou sofregamente e continuou sua caminhada rumo a lugar nenhum, decidido a parar somente quando não lhe restasse mais força nos membros. Caía uma chuva fina naquela tarde mórbida, as nuvens como se fossem algodões feitos de chumbo.
Uns pássaros negros, vindo sabe-se lá de onde davam rasantes em sua cabeça. Gaivotas? Quero Queros? Pela sua lembrança essas aves não eram negras. Olhou para as ondas cada vez mais mais petulantes e raivosas e se deu conta de que elas não poderiam lhe fazer mais mal do que o Betinho e os centenas antes dele. Os pássaros, cães ou moleques vadios não fizeram nada que já não tivessem feito muito pior nos anos predecessores.
Um vento diabólicamente frio bateu em seu rosto, trazendo à sua memória as sensações das contas atrasadas, dos aluguéis vencidos, das demissões, das perdas, grandes ou pequenas.
Por fim, cansado, uma prostração anormal o fez cair de joelhos. Engatinhou até uma duna e se encostou ali, sentindo a chuva fina lavar sua fronte e lamber o sangue das feridas..
A ventaneira glacial e zombeteira lembrando-o dos sonhos nunca realizados. Com uma boa renda, ter filhos e netos numa velhice calma onde terminaria seus dias pintando a óleo e fazendo suas esculturas em argila. Quimeras, fábulas.
Fechou os olhos, ouvindo o clamor das ondas rebentando na areia, sentindo a borrasca frígida, e vivenciou um certo consolo.
Deu um profundo suspiro. E morreu.

4 comentários:

  1. Texto incrível. Apesar de eu não curtir temas deprês, esse não me deixou parar de ler até fim. Parabéns!

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    1. Obrigado pelo seu comentário. O único até o momento, o que deve provar que não foi bem recebido por quem leu. Sou suspeito para falar, mas apesar do clima dark, eu gosto desse conto, acho bem humano.
      Grande abraço!

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  2. Meu amigo, eu tinha lidro (e até publicado no meu site) a parte um, e lembro que fiquei procurando a parte doisde dois e não achai, agora me aparece. E, meu rapaz, que conto!!!! Quanto ao conto (se é que é um, não real, embora todo artista saiba que toda ficção é autobiografica num ponto ou em outro, mais ou menos) ser "dark" e no seu comentário você afirmar que não foi "bem recebido por quem leu", penso que não foi bem recebido justamente por quem não leu, entendeu? rs.... É um texto denso, pesado, e de fato infelizmente hoje a maioria tem preguiça de ler. 2 comentários em 4 anos me dão essa certeza!

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    1. Obrigado por suas palavras, meu amigo! É sempre bom receber elogios de quem leu a vida inteira e tem discernimento para julgar. Também gosto desse conto (partes 1 e 2) e posso te garantir, é autobiográfico, sim, excetuando a parte final, é claro, todo o resto eu vivenciei em Brasília no ano de 1998.

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ZÉ GATÃO POR THONY SILAS.

 Desenhando todos os dias, mas como um louco, como fiz no passado, não mais. Não que não queira, é que não consigo; hoje, mais que nunca eu ...