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quarta-feira, 15 de abril de 2020

A FÚRIA - Um conto escrito por Luca Fiuza e ilustrado por Eduardo Schloesser.



Zé Gatão – MICROCONTOS:
Esta aventura se passa logo depois de Karenina.

A FÚRIA.

31/10/19 a 01/11/19.

A tarde de verão estava avançada. Em poucas horas cairia a noite. Zé Gatão havia caminhado o dia inteiro pelo tranquilo bosque. Mochila às costas, sem parar para descansar ou comer algo. Ainda assim não estava cansado. Enlevado pela beleza e quietude daquelas paragens agrestes, renovado pela pureza do ar, distante das opressivas megalópoles, estava considerando não voltar tão cedo aquelas monstruosas, poluídas e apinhadas urbes que por sinal, detestava! Gostava da vida livre, solitária! Se não visse mais um ser dito civilizado se daria por satisfeito.

Ainda sob as fracas luzes do poente, encontrou uma elevação em uma pequena clareira, onde resolveu deter-se e levantar acampamento. Dali só se moveria às primeiras luzes do alvorecer. Em um regato próximo de águas cristalinas encheu seu grande cantil até a boca. Ao brilhar as primeiras estrelas da noite, se achava sentado ao pé de uma fogueira. Esquentou em uma pequena panela de ferro o resto da sopa que havia trazido da casa de Bento, o simpático gato pescador que o acolhera semanas atrás e tomou da frugal refeição na panela mesmo, saboreando seu saboroso conteúdo com vagar. Saciada a fome, arrancou um talo de capim e pôs-se distraidamente a mascá-lo, sem pensar em nada em particular, apenas sentindo o prazer de estar vivoapesar de um que de melancolia se imiscuir em seu espírito naquela tão calmosa hora, como aliás era mais afeito à sua natureza.

Ficou a cismar. O sono não vinha, mas o felino cinzento não se importava. Em sua mente desfilavam as imagens das diversas fêmeas que passaram por sua vida. Tinha tido muitas, mas estava sempre só! Há anos perseguia a quimera de ter alguém, de formar uma família! Ele? Um sujeito sem eira nem beira? Pouco ou nenhum dinheiro no bolso! Apenas um nômade, um andarilho! Tal qual um marujo navegando em mar revolto, parando de porto em porto! Aqui, acolá! Sem nunca se fixar em lugar algum! Riria se tivesse humor para tanto!

Uma leve brisa noturna agitava seus cabelos acinzentados, presos no notório rabo de cavalo. A aragem também trouxe às suas narinas sensíveis, um odor adocicado! Um tipo de almíscar que colocou-o em alerta! Sua apurada audição aguçou-se, mas nada ouviu além dos ruídos da noite, tão comuns nas matas. Apesar de tudo parecer inalterado, sentiu que havia uma presença! Alguém da sua espécie! Muito provavelmente uma fêmea! Uma fêmea selvagem e poderosa! Sua acurada visão tentou devassar as trevas circundantes! Nada viu! No entanto, sabia que estava lá! Por que não se mostrava? O que pretendia? O felino taciturno continuou sentado na posição em que estava, mascando lentamente seu talo de capim, à espera! Um movimento atraiu sua atenção e o grande gato viu uma impressionante figura sair das sombras a caminhar altivamente em direção a ele. Era uma leoa! Uma leoa branca!

Zé Gatão a olhou atentamente, enquanto ela se aproximava em um andar macio e gracioso. Era alta! Corpo maciço! Olhar sensual! A basta cabeleira branca, movendo-se ao sabor da brisa daquela noite fria! O cheiro de almíscar! Intenso e enlouquecedor, fazendo o felino cinza fremir em seu íntimo! Então ela falou em uma voz rouca, sedutora:

– Posso aquecer-me junto à sua fogueira? A caminhada foi longa. - A leoa de pele alva trazia uma estranha mochila preta às costas, bojuda na parte de cima e bastante alongada na parte de baixo. Envergava um casaco esverdeado sobre uma camiseta cinza claro, calças de brim azuis e botas próprias para longas caminhadas. Seu falar tinha um leve sotaque que soou meio oriental aos ouvidos de Zé Gatão. Este respondeu simplesmente:

– Ponha-se à vontade. A noite esta fria. - A enorme felina agradeceu e sentou ao lado do grande gato, apreciando o calor das chamas.
O felino cinzento procurou avivar mais o fogo jogando mais gravetos nas chamas. Macho e fêmea olharam-se de soslaio sem conseguir esconder a curiosidade, reforçada por uma forte atração que começava a surgir entre aquele inusitado casal de felinos. Ela sorriu sedutoramente e se apresentou, dizendo:
– Me chamo Shintong. E você? - O felino respondeu: - Zé Gatão. - A leoa pareceu espantar-se: - Que raio de nome é este? - O felino não se abalou e redarguiu com toda calma: - Um nome como qualquer outro. - Ela riu: - Gostei de você, grandalhão! Calado, circunspecto e acolhedor, não é qualquer um que recebe uma estranha sem ressalvas num local ermo.
O gato sorriu, balançou os ombros fingindo ingenuidade:
- Uma fêmea tão bonita não poderia me fazer mal.
- Será mesmo? riu ela com malícia.
A presença de uma fêmea tão sensual ao seu lado elevava a libido do felino cinzento, no entanto, algo em seu íntimo, aquele sexto sentido que sempre o alertou, dizia para ficar alerta.
A leoa, com uma expressão insondável, piscou um olho, deitou a cabeça em sua mochila e virou-se de costas para ele. Minutos  depois, ressonava.
Ele também se esticou e fitou o céu infinito. Adormeceu depois de longo tempo.   
Ao amanhecer despertaram e Shintong se prontificou a preparar o desjejum. A leoa branca recolheu frutos e raízes que foram por ambos consumidos com apetite. Sem firulas ou não me toques. Após a última caneca de água fresca do regato, a felina, bem diferente de quando chegou, lacônica, seu olhar estranho e meio distante, sem nada mais dizer, retirou de sua mochila algo que parecia um cartaz. Deu-o a Zé Gatão que ao desenrolá-lo se surpreendeu com seu conteúdo:

PROCURADO VIVO OU MORTO.
ZÉ GATÃO.
RECOMPENSA: $$$$$$$$.

O felino cinza olhou calmamente para Shintong e perguntou: - O que significa isto? - Ela retrucou suavemente: - Você está sendo procurado pelo assassinato dos irmãos Saulo e Soraia há alguns anos e…! - Zé Gatão interrompeu-a:

– Não fui eu. Foi um tubarão que o fez. Deixei o filho da puta insepulto para que o encontrassem. Qualquer perito da polícia descobriria que…!
– Não me venha com essa! Se não era culpado por que não esperou a polícia? Por que não voltou e avisou aos pais dos dois?
– Aquela maldita praia era longe de tudo e eu nem sabia quando e se a polícia apareceria ali. Eu era jovem e meio imaturo. Portanto…!
– Ora, não me faça rir com essa conversa, gato! Agora vou te levar preso! Por bem ou por mal! Os pais da moleca e do moleque me contrataram! Nunca engoliram esta história da polícia sobre o tal tubarão! Deixaram os dois sair com o namorado da pirralha e nem eles nem você voltaram! Os dois morreram e você se empirulitou! Loogoo…!
– Não vou mofar na cadeia por um crime que não cometi! - A conversa acabou naquele instante! A felina branca e o felino cinza se engalfinharam em um combate ferocíssimo!

A caçadora de recompensas era versada no combate corpo a corpo e tinha força e agilidade titânicas! Zé Gatão lutava aplicando golpes de uma antiga luta oriental que aprendera na adolescência! Não queria esmurrar ou chutar sua oponente e ela bastante surpresa notou este fato! A leoa dominava também esta técnica e procurou derrubar o felino acinzentado para derrubá-lo no chão. Mas a gata branca não estava lidando com um amador e quando se deu conta era ela que havia sido jogada ao solo com Zé Gatão por cima! A felina mexeu-se, tentando inverter as posições sem sucesso! Em meio aos movimentos de defesa e ataque, Zé Gatão conseguiu cingir a leoa em um aperto no pescoço que a sufocou violentamente, fazendo pensar que sua traqueia iria se romper tal qual um graveto! A fera branca se debateu furiosamente, mas não conseguiu livrar-se! No último instante, Zé Gatão a soltou. 


A leoa caiu de lado arfando ruidosa e penosamente. Em silêncio, o felino gris pegou sua mochila e se dispunha a partir, quando um urro enfurecido o deteve:

– Felino! Ainda não acabou! Vou te levar morto! - A leoa ainda estonteada, levantou do chão e correu até sua estranha mochila! De lá sacou duas espadas de dois gumes. Lâminas feitas de aço temperado, muito usadas por algumas castas de guerreiros orientais. 
 - Pegue uma das espadas e defenda-se! Vou te matar aqui e agora! - Sem nada dizer, o felino acinzentado pegou a bainha onde se achava alojada a arma letal! Antes tirou a camisa para facilitar os movimentos! A felina também se livrou de sua camisa, revelando o top branco que cobria seus voluptuosos seios.

A gata braba possuía musculatura potente e bem dimensionada, pulsando como uma usina elétrica, pronta para liberar todo o poder de sua energia. Os corpos de ambos estavam banhados de suor. Com um grito dantesco, Shintong atacou em um golpe devastador que somente a força e agilidade de Zé Gatão puderam aparar. As frias lâminas refulgiam ao sol! Golpes sobre golpes se sucediam! O clangor das afiadas lâminas se chocando, as respirações sibilantes eram o clímax da bruteza e violência animal em dissonância com o plácido ambiente do bosque em torno. Então, em um movimento inesperado e especial que aprendera com Ching, Zé Gatão em um único golpe arranca a espada das mãos de Shintong!

Ato contínuo, um potente chute no rosto derruba a leoa branca, deixando-a à mercê de seu oponente! Zé Gatão ergue a espada acima da cabeça, segurando o cabo da arma com as duas mãos, pronto para desferir o golpe fatal no pescoço descoberto de Shintong! Ele não gosta e nunca gostou de matar! Mas se deixar a leoa viva, ela nunca o deixará em paz! Assim são os orientais! Determinados! Ciosos de suas responsabilidades! A lâmina desce, mas por milímetros desvia-se de seu alvo, atingindo o vazio! Zé Gatão joga a espada para longe de si e a passos largos se afasta. Pega sua mochila e caminha resoluto para internar-se no bosque e desaparecer. No entanto, um grito agudo chamando seu nome o faz se voltar bruscamente: 
- Zé Gatão! Não vá! Eu estava errada! Se você fosse um assassino eu não estaria viva! 
Mesmo desconfiado o felino caminha até a leoa combalida e gentilmente a ajuda a levantar-se. Os dois se abraçam e ela chora. Um alívio enorme domina Zé Gatão. 
No fim da tarde a felina arruma suas coisas.

 - Tenho outros “serviços” para cuidar, meu querido! Preciso partir.
-"Meu querido?", Zé Gatão, sorri.
Sim, nunca encontrei ninguém como você. 
Ato contínuo, Shintong o beija ternamente. 
-Em outras circunstâncias, poderíamos, quem sabe, nos conhecer melhor.
-Sim, talvez.
– E quanto aos pais de Soraia? - Quis saber o gato. Shintong respondeu: - Já me pagaram antecipado! “Como não te encontrei”, vou devolver metade do dinheiro pelo Correio, explicando que não consegui te localizar nesse mundão enorme!
– Isso é justo?
– Não, mas pouco me importa! Vivo há muito tempo no seu Ocidente para ligar para estas pataquadas de justiça e honra que dizem ser predicados dos povos do meu Oriente.
– Maldito Ocidente! Vá em paz! 

Era virou-se e seguiu em frente, deixando à sua retaguarda, o gato se sentindo mais só do que nunca.                                                                                                         






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