img { max-width: 100%; height: auto; width: auto\9; /* ie8 */ }

segunda-feira, 8 de março de 2021

AMIGOS, AMIGOS, PORRADAS À PARTE (Um conto escrito por Luca Fiuza com um desenho de Eduardo Schloesser).

Zé Gatão – Revisitando o Passado:


Parte 1 – AMIGOS, amigos. Porradas à parte.

31/03/20.

– Esta aventura se passa pouco tempo depois de Pão e Circo.


    Era um fim de tarde, quando cheguei à cidadezinha onde havia morado por um tempo com 
minha saudosa mãe. Nunca pensei que um dia fosse voltar a pisar naquelas ruas familiares
 de minha juventude. Antes de procurar um local para me instalar, fui até o Correio mais próximo 
passar um telegrama para Cora. Era o mínimo que poderia fazer depois de ter partido e jogado
 água fria nos planos daquela gata impetuosa! Fiquei imaginando a reação dela quando recebesse meu
 telegrama! A princípio ela o amassaria e jogaria no chão em um acesso de raiva! 
Depois o pegaria com vagar, o desamassaria e leria minhas curtas palavras. No texto não haveria pedido
 de desculpas ou explicações! Só revelaria que eu estava vivo e bem. Ela então
soltaria uma risada argentina e pensaria em mim com o carinho em que estou pensando nela agora.
 A gente brigava, mas se entendia. Feito isto, saí à rua. Ainda carregava boa parte do dinheiro
 que ganhara lutando na arena de Scrofa! Portanto, resolvi me hospedar em um hotel melhorzinho
 no centro da cidade e comer bem, também! Ora, e por que não? Normalmente, eu estou sempre duro! 
Pernoitando sempre em pocilgas e comendo uma comida merda! Afinal ralei muito pela grana que 
ganhei! Mereço dar uma de “bacana meia boca”, pra variar! 
Assim pensando, pedi informação a uma gorda leitoa que passou por mim acompanhada de cinco 
untuosos bacorinhos com jeito de idiotas! Informação recebida e não demorei a achar o tal hotel! 
Gostei da aparência tanto externa quanto interna. O recepcionista era um gavião com ares de malandro. 
Uma guimba de cigarro acesa, pendendo do bico. Me tratou como se eu fosse da família dele. Fui lacônico.
 Assinei minha entrada no local e o sem noção ainda quis puxar papo. 
Tratei de escapulir para o elevador que me conduziria ao 4o andar. Atrás de mim, um jovem macaco prego
 feio pra caramba que fez questão de me carregar a mochila. Dei uma gorjeta razoável ao símio, após este
 depositar a mochila aos pés da grande cama de casal. O molecote saiu todo satisfeito da vida, assoviando. 
Naquela noite ia por certo sair com a namorada para tomar sorvete na praça!

  Tranquei bem a porta, soltei os cabelos, entrei no banheiro, deleitando-me com um bom e relaxante 
banho quente. Depois, me deitei satisfeito entre lençóis limpos. Colchão bem macio. Dormi o pesado sono dos justos!

    O amanhecer trouxe um quente e ensolarado dia. Fui um dos primeiros hóspedes a sair do elevador
 e a passar pela recepção, em direção ao salão, onde um lauto e variado bufê me esperava. 
O gavião recepcionista saudou-me acaloradamente. Retribuí com um breve aceno de cabeça e até o 
achei no fundo, mais simpático do que antes. Devia ser meu bom humor matutino, quem sabe? 
Comi fartamente. Terminado o desjejum, subi ao quarto para a higiene pessoal. Momentos mais tarde, 
ao deixar a chave do mesmo na recepção, o gavião a recebeu e sorridente deu-me um prospecto, o qual 
anunciava um evento de proporções épicas, segundo aquele avejão que mais parecia um papagaio do 
que um rapinante. Agradeci laconicamente, mas um puco mais paciente em relação a ontem. 
Enfiei o papel no bolso sem ler e ganhei a rua, aspirando com prazer o ar fresco da manhã!

   A cidade pouco havia mudado. Aquela área estava um pouco mais moderna. O meu hotel mesmo 
havia passado por uma boa reforma e provavelmente havia mudado de dono. No meu tempo de rapaz
 não passava de um pardieiro! Andei ao léu por um bom tempo, admirando o ambiente à minha volta, 
recordando com uma vaga nostalgia. Encalorado, parei em um bar para tomar uma gelada. Ainda bem
 que estava com o cabelo preso no comezinho rabo de cavalo, reduzindo desta forma, a sensação de calor. 
Bebi com lento prazer a álgida cerveja! Neste ínterim, aproveitei para dar uma vista d’olhos no tal prospecto.
 Este propagandeava uma luta que ia acontecer dali a uma hora próxima ao coreto da praça. 
O campeão dos campeões de luta de rua ia escolher um adversário aleatório na multidão! Quem o 
derrotasse ganharia uma recompensa nada desprezível em dinheiro. Fiquei curioso. 
O tal campeão era um galo carijó. Então me lembrei do meu amigo dos tempos de rapazote, um galinho 
carijó enfezado e criador de caso. Trabalhamos juntos na loja de fotografias do galo velho, pai dele. O campeão poderia ser ele!

Parte 2 – AMIGOS, amigos. Porradas à parte.

Ainda era cedo. Paguei a bebida e saí em direção ao pequeno templo evangélico, onde eu ia com mamãe 
ao culto, todos os domingos. Entrei compungido e silenciosamente no santuário que tantas boas lembranças
 me traziam. Imaginei ver o pastor Flávio com seu sorriso benevolente. Era um pastor bovino grande e 
bonachão. Pensei: Sempre pronto a ouvir as mazelas do jovem Zé Gatão e o aconselhar. Já devia estar morto, pois era idoso naquele tempo. Deixei o templo sentindo uma indefinível tristeza! Bem, se aproximava a hora da tal performance! Era melhor ir indo!

   A praça estava apinhada. Resolvi me empoleirar em uma árvore, na qual já se achavam alguns felinos e 
umas aves. Alguns daqueles palermas reclamaram, mas não fiz caso deles. Agilmente, escalei os galhos. 
Pisei na mão de um gatarrão gorducho que não quis me dar passagem! O pulha protestou grosseiramente e 
tive vontade de jogá-lo lá embaixo! Mas resolvi não perder tempo com aquela espécie de ignaro! De meu lugar
 privilegiado podia ver bem o ringue. A turba abaixo ululava! O alarido aumentou quando o galo carijó subiu ao
 tablado! Musculoso, espadaúdo, ainda que atarracado! Era ele mesmo! A mesma expressão de insolência! 
Piorada, até! Em uma voz roufenha de galináceo, se auto promoveu e clamou por um desafiante. Um 
quadrático canino assomou! Um massa bruta! Cachorro de rua, coberto por andrajos! Fedorento! Cuspiu 
displicentemente o toco de charuto vagabundo que pitava na beiçola caída! E mal educadamente foi afastando
 o povaréu de seu caminho! Subiu ao ringue! Era um verdadeiro gigante! O carijó o olhou com desdém! Cada
 um ficou num canto do ringue! Uma galinha barriguda tocou o gongo e os contendores rodaram pelo 
acanhado espaço, se estudando atentamente! Os olhos dos lutadores dardejavam, acompanhando os 
movimentos um do outro! De repente, o gigante canino mandou um murro poderoso contra a cabeça de 
seu adversário, atingindo o vazio! Ato contínuo, o carijó depositou um soco pesado no baixo-ventre do cão
 fazendo este se curvar de dor, acusando o impacto brutal! O grunhido sufocado foi interrompido por um
 uppercut seco que arrancou aquela criatura do chão, lançando-a para trás! O galo acompanhou o movimento
 e massageou a cara do brutamonte com uma sequência de socos certeiros que transformou aquela cara 
numa empada de carne amassada e sanguinolenta. O grandalhão desabou! O carijó poderia ter finalizado 
ali! Mas pelo visto, queria castigar mais seu desafiante, pois recuou um passo atrás e deixou o cachorro 
recuperar-se. Este balançou a cabeçorra, tentando clarear as ideias! Ergueu-se com dificuldade. Foi então 
que o galo saltou e passou o esporão na face daquele desgraçado, rasgando profundamente a carne até 
atingir o olho esquerdo! O uivo que escapou da goela do gigante andrajoso foi de cortar o coração! A 
sangueira espirrou profusa e sem dó, “o galinho” desabou sobre sua vítima descendo a porrada! Forte! 
Violento e sem piedade! Só parou de malhar aquele trapo que tinha debaixo de si, após vários toques 
plangentes do gongo salvador! Uma ambulância foi chamada para retirar a carcaça inerme do canzarrão! 
A audiência bramia de êxtase!
   Neste instante, o vitorioso me viu no alto da árvore e seu grito rouco, típico dos galiformes se fez ouvir: 
- Você aí, na árvore! É! Você mesmo, cinzento! Eu te desafio! Desça para apanhar!



Parte 3 – AMIGOS, amigos. Porradas à parte.


    Lancei-me do galho onde estava em um salto acrobático, girando o corpo em espiral com as pernas 
encolhidas, passei por cima da multidão extasiada e aterrizei elegantemente no meio do ringue. O galo 
avançou em minha direção com os punhos cerrados em posição de ataque. Então como que por encanto, 
sua expressão facial endurecida mudou e um olhar de reconhecimento, seguido de um sorriso amplo, 
o fez estender os braços, dizendo: - Zé Gatão! Diacho! É você mesmo? Rapaz! Não tinha te reconhecido! 
Cê tá grande pra caramba, amigo velho! - O galo carijó estreitou-me num forte abraço. Sorri pra ele e 
encarei o rosto de um velho e querido amigo! O populacho começou a nos vaiar, mas nem os ouvíamos. 
Lembrei-me do nome do amigo. Renato, o galinho carijó! Era agora um adulto fortalecido por anos de luta! 
Ignorando a balbúrdia em volta de nós, Renato disse que ele ainda precisava rachar umas cacholas por 
mais algum tempo. Combinamos de sair para jantar em um bom restaurante naquela noite. Nos despedimos 
e ele voltou a chamar adversários com seu ar insolente. Saí do ringue debaixo de olhares espantados e 
resolvi almoçar um sanduba em uma barraquinha perto do coreto da praça. Comi sem pressa e depois 
fui passear nos arredores. Do meio pro fim da tarde retornei ao meu hotel para banhar-me e descansar 
um pouco.

    Por volta de sete horas da noite, Renato veio encontrar-me no saguão do hotel. Sendo a cidade pequena 
e tudo perto, fomos a pé mesmo até o melhor restaurante do lugar. Pedimos uma boa refeição. Para beber, 
um canecão de cerveja para mim e para o carijó um copázio de suco de laranja fresca. A comida sintética 
estava saborosa. Mas só era assim em bons restaurantes. Enquanto comíamos, relembrávamos o passado. 
Naturalmente, o galinho era bem mais falante e dado a gargalhadas do que eu, de temperamento mais 
circunspecto. No entanto, estava feliz com aquele reencontro.

   Durante a sobremesa, um alentado manjar branco com ameixas-pretas em volta, o semblante e a voz de 
Renato ficaram mais sérios. Me disse que havia acompanhado por suas fontes na área de Esportes, notícias 
de minhas lutas nas grandes arenas de Scrofa, o megaempresário suídeo do ramo de lutas. Contou-me que 
ele, Renato, era um medíocre lutador de rua. Ganhava a vida desafiando contendores pelas cidadezinhas do 
interior. Aí, pensou: Se enfrentasse um lutador famoso, tendo a luta filmada, seus ganhos e importância 
aumentariam exponencialmente, podendo levá-lo a um dia lutar nas grandes arenas do norte! Ficaria rico! 
E dividiria tudo com o amigão felino se este topasse encará-lo no ringue amanhã! Um vale tudo na grossa! 
Sem encenações!


    Olhei detidamente para o meu velho chapa e disse não! Na arena de Scrofa, eu lutara contra total 
desconhecidos. Não passara de negócios. Ao final, eu largara de mão por não concordar com aquela 
sistemática perversa! Asseverei que não gostava e não queria ser nunca mais um lutador profissional! 
Além disso, não tinha sentido um combate nos moldes que Renato queria! Não entre amigos!

   O galinho fechou a cara e objetou, dizendo que seria pela amizade! Eu era famoso e endinheirado! Agora 
era a vez dele! Não era hora de sacanear um velho amigo por conta de estúpidos princípios! Disse ainda que 
eu era cheio de pruridos! Sempre fora! Vi que era inútil tentar convencê-lo! Ainda assim, fui firme em minha 
decisão! Afirmei de quebra que amanhã cedo estava deixando a cidade! Renato suplicou para que eu não o 
fizesse! Pediu ao menos que eu fosse assistir sua última luta amanhã. Não tocaria mais naquele assunto se 
isso me desagradava! Não queria perder uma grande amizade por tão pouco!

   Ao fim do jantar, nos despedimos. Senti que ficou um ranço, apesar da cordialidade na voz do velho 
companheiro de juventude. Não sou tolo! Alguma coisa tinha quebrado ali! Poderia ter partido sem avisar, 
bem cedo. Porém, não era do meu feitio! Estaria na praça amanhã na hora marcada. Algo me dizia que eu me arrependeria!

    A praça estava lotada. Desta vez, não quis subir em árvore alguma! Estava me sentindo desconfortável, 
em meio aquela súcia sedenta de sangue! Renato subiu ao ringue. Ia enfrentar um outro galo bem parrudo 
com cara de maus bofes. O combate foi rápido! Embora de maior porte, o adversário de Renato não era 
páreo para ele! Meia dúzia de socos rápidos, deixaram o desafortunado semiconsciente no chão do ringue! 
Foi então que se deu o inesperado! Renato gritou que se eu não o enfrentasse agora, ele ia cortar o pescoço 
do galináceo caído a golpes de esporão! Surpresa e ira me tomaram! Ainda assim, me aproximei das cordas 
a custo para tentar sem sucesso, demovê-lo daquela loucura! Subi ao ringue e apelei para nossa antiga 
amizade. Renato retrucou que não era mais meu amigo! Um verdadeiro amigo não negaria ajuda! Para 
ele eu não passava de um egoísta, covarde! Droga! Eu poderia ter descido do ringue e partido! Mas comecei 
a achar que o galinho merecia uma lição de humildade! De mais a mais, com este tipo de postura ele não 
duraria um segundo contra lutadores profissionais das grandes arenas! Seria morto! Precisava acordar o 
ex-amigo daquela ilusão e nada melhor que uns bons sopapos para curar uma cabeça dura! A determinação 
do meu olhar o alegrou! Nos medimos por alguns segundos e ele partiu pra cima de mim!

Parte 4 – AMIGOS, amigos. Porradas à parte.


   Por sorte, o galo grande abatido por Renato foi tirado do quadrilátero, caso contrário o galo Renato teria 
pisado na cabeça dele, tamanha sua fúria e desejo de bater-se contra aquele que uma vez chamara de 
amigo. Enquanto avançava, Renato lançou uma série de socos, visando atingir repetidamente meu plexo 
solar, o que se daria se eu não tivesse me desviado para o lado. Ato contínuo, dei um tapinha na parte detrás 
do pescoço do galinho, tirando-lhe o equilíbrio! Mas ele era safo! Caiu, rolando para o canto do ringue, para 
logo se levantar espumando com sangue nos olhos, cacarejando alto: - Cê tá debochando de mim?! 
Vou te matar, desgraçado! Vou te picar em pedaços!

   Naquele momento tive a certeza de que meu antigo amigo de alegrias e folguedos não existia mais! 
Pois bem, não ia mais tratar este cretino com brandura! Vou mostrar a ele como se luta profissionalmente!

  Assim, eu ataquei com um chute poderoso bem no meio do peito de Renato! A pancada o atirou nas cordas 
e ele só não caiu fora do ringue devido às mesmas! Fiquei no centro do tablado e o chamei fazendo cara de 
deboche! O carijó arfante pela porrada no peitoral deu um grito inarticulado e se atirou sobre mim, chutando e 
socando forte, visando meu ventre ou meu saco! Tolo! Evitei-o facilmente e apliquei vários jabs curtos em seu 
bico, procurando desnortear, magoar aquela sensível área de sua anatomia! O sangue brotava das fossas 
nasais e da boca! Sem dar tempo para que meu adversário se aprumasse dei um murro fortíssimo em sua 

face direita, jogando-o violentamente no chão! Estonteado, Renato não conseguiu evitar que eu o agarrasse 
brutalmente! Ergui-o acima de minha cabeça e o atirei como a um saco de batatas na assistência uivante!

   Furiosamente, o carijó se desvencilhou do delirante povaréu que ovacionava o melhor combate por ele já 
visto! Renato subiu de volta ao ringue, trêmulo! Face distorcida de uma palidez mortal! Ergueu o peito, 
parecendo medir a distância que nos separava! Repentinamente saltou! O esporão à vista! Ah, não! Comigo 
não, violão! Me abaixei e num rápido movimento colhi-o pela área ventral, entre a cloaca e a bunda, apertando
 com toda a força de meus dedos, enquanto enterrava minhas garras naquela carne macia, através de seu 
calção de boxe! O bramido que escapou de sua garganta foi pungente, dorido, inominável! Completando o 
movimento, joguei-o de cara na lona! Virei-o pra mim e o castiguei, dando em seu rosto pesados e repetidos 
tapas, como se quisesse virá-lo pelo avesso! Quando ergui a mão para vibrar mais um tapa ele me virou seu 
rosto arrebentado e num cicio, pediu: Chega, por favor! Não me bata mais…!

   No fim da tarde, abandonei a cidade para sempre. No peito uma opressão profunda! Na boca, o gosto acre 
do fel da tristeza e da decepção! Quisera não ter voltado para aquele lugar! Melhor seria nunca ter encontrado 
de novo o galinho carijó! Antes ter guardado na memória o que havia sido e não o que era agora! Caminhei 
pisando forte, tentando tirar de minhas botas a poeira daquela pequena urbe que de feliz recordação, se 
tornou mais um espinho dos tantos que eu tinha a aguilhoar o coração!


Nenhum comentário:

Postar um comentário

ZÉ GATÃO POR THONY SILAS.

 Desenhando todos os dias, mas como um louco, como fiz no passado, não mais. Não que não queira, é que não consigo; hoje, mais que nunca eu ...