Um dia escaldante e radioso se iniciou. E a seu tempo, a noite novamente se anunciou. Era a véspera do sacrifício. Sob a orientação dos sacerdotes, Zé Gatão trocou seus trajes locais por uma veste cerimonial. Foi alimentado com os mais puros e delicados manjares jamais antes provados. Néctares de frutas e flores exóticas a adoçar-lhe a língua e atiçar sentidos e percepções desconhecidas! Um leve torpor a tomar-lhe corpo! A esta sonolência foi lentamente se entregando, mergulhando em uma escuridão mais densa do que a da própria noite que descia sobre a selva imutável! Sentiu que se achava na Casa Escura, onde Ela habita, nas dependências do Grande e sacro Templo! A grande deusa, Serpente Emplumada das antigas lendas do povo Jaguar.
Ouviu-lhe a voz a entoar um cântico aproximando-se, acompanhada por uma luminosidade suave, semelhante aquela que há no quarto de crianças pequenas para que não fiquem nas trevas! O tom de voz da deusa serpente era adocicado, ainda assim, sentiu o felino acinzentado um arrepio! Um frio n’alma! Uma sensação de perigo que não conseguia definir! Lá estava a fantástica criatura! Como a flutuar sob a luz de tom azulado ali reinante!
– Ó felino de fora! É chegada a hora do ritual derradeiro! A definitiva purgação de teu espírito para diante de mim apresentar-te na pedra do sacrifício amanhã à noite, estando a Lua alta no céu! Ouça tu! Vais agora enfrentar-me! Vais lutar num nível além do físico e do mero espiritual! Se perderes, só teu corpo carnal sobreviverá! Mas não serás mais do que uma casca vazia! Tudo o que és e poderias ter sido perecerá!
Zé Gatão concentrou-se profundamente, em silêncio! Nunca em sua existência fugira de um combate se não houvesse outra maneira! Se tinha que cair, cairia dando socos e pontapés como sempre tinha sido desde que aprendera a se defender e sobreviver às adversidades deste mundo!
A enorme serpente, em um movimento coleante, avançou! Fauces escancaradas! Zé Gatão saltou, evitando o violento ataque! Não houve esforço! Não sentiu dor! Era como se o felino fosse um dínamo de energia! Movia-se de maneira rápida, precisa, sem as limitações do corpo físico e assim, igualmente o era para sua adversária! Combatiam em um plano existencial muito além da compreensão, mas mesmo ali espreitava a própria Morte! Presente! Palpável! Soberana!
Como num torvelinho monstruoso, a cobra circulou em torno do grande gato! A cada momento mais próxima, num enleio fatal! Logo o felino gris se viu envolto pelos poderosos anéis do ofídio e com a velocidade do pensamento, o bote, o qual só não o colheu pela cabeça porquê suas mãos com a força de um torno agarraram o réptil, num aperto selvagem que fez os olhos arregalados de espanto, da fera quase saírem das órbitas! A língua bifurcada retorcia-se, projetando-se da goela escancarada num protesto mudo! A cabeçorra a sacudir brutalmente na tentativa de libertar-se. À medida que Zé Gatão aumentava a força do estrangulamento, a cobra também exponencialmente exercia pressão sobre o corpo musculoso do felídeo! Como não estavam no mundo carnal, o sofrimento físico inexistia! Era um verdadeiro embate de titãs! Dando um forte repelão, a serpente adiantou-se, a letal peçonha rebrilhando nas pontas de suas presas ameaçadoras! Lentamente, achegando-se aqueles espantosos dentes, cada vez mais próximos do pescoço tensionado do Gatão! Quando tudo parecia perdido para o felino cinzento, este deu um tranco para frente, soltando repentinamente a serpente! Demonstrando uma coordenação de movimentos impressionante, ao mesmo tempo que a libertava, seu punho direito encaixou um soco poderoso e tão potente que arrancou os enormes dentes venenosos da serpente pela raiz! A cabeça imensa foi jogada para trás! Mas numa rápida oscilação voltou-se para o gato, sorrindo! A dentição horrorosa crescendo como que por encanto na dantesca bocarra! O gato retesou os músculos hercúleos e em uma expansão explosiva expulsou de si o disforme corpanzil da serpente aterradora! Esta investiu de frente, tentando morder! Recebeu uma rápida sequência de murros pesados no crânio, atirando-a para trás! Zé Gatão como uma máquina trituradora, batia sem pausas, de baixo pra cima, lateralmente como se esmurrasse um saco de areia próprio para o treinamento de boxe!
Dando um giro impossível pelas leis da física, a cobra gigante contornou pelo lado esquerdo do felino tentando atacar por trás! Em um galeio inesperado, o felino taciturno saltou, erguendo-se no ar em um movimento giratório sobre si mesmo, indo parar bem no lombo de sua atacante! Escalou-a rapidamente e desceu cascudos violentíssimos sobre aquele horripilante vértex! Como um edifício colossal, desabou o ser viperino! Mas a vitória ainda não estava consolidada! Enquanto caía, a criatura reptiliana deu um corcoveio forte, desalojando o Gatão e antes que ambos tocassem um solo de aparência diáfana a cobra surgiu por cima do gato, sendo o felino, brutalmente picado pela besta pecilotérmica! Um urro pungente estrugiu da goela do grande gato, enquanto violentas contorções o acometiam! Logo entrou em agonia quase de ordem física! Sua vista ficou turva! E quando voltou a enxergar estava em seus aposentos, na cama! Uma repousante luz violeta o cobria e uma sensação de languidez, o tornara indefeso como um filhote recém-nascido! Estava nu! Então, a voz da deusa serpente encheu-lhe os ouvidos, o coração e a mente!
– Estás purificado em sua totalidade, ó felino de outras plagas! Demonstraste força, coragem e sobretudo não te deixaste dominar pela raiva! Foste um combatente sagaz e pragmático! Não te esqueças, porém! Estavas lutando contra forças além de tua imaginação! Só não enlouqueceste por causa de minha divina benevolência para contigo! Agora descansa! Tu és privilegiado! És o primeiro e único a ter para ti mais de uma vez, a atenção de uma deusa.
O Gatão suspirou esgotado. Não tinha como afirmar se o que passara tinha sido real ou ilusório. Sabia que grandes e velhas serpentes possuíam poderes místicos! Muitas eram pitonisas, tendo o dom da adivinhação e da clarividência. Esta era muito mais! Mas uma deusa? Aí já era forçar a barra! Contudo, para os jaguares ela o era! E isto era suficiente para o desejarem o imolar num rito de sangue! Adormeceu quase que imediatamente! Sono sem sonhos! Uma quase morte! Mas ao despertar no alvorecer de um novo dia, percebeu que o encontro com a Megera da foice tinha apenas sido adiado.
O dia chegou com fortes chuvaradas, acompanhadas do onipresente calor abrasador que assolava as regiões de selva. O grande gato se sentia descansado, bem-disposto e faminto naquela manhã. Logo, diligentes serviçais felinas daquela curiosa raça rajada vieram trazendo o desjejum. Um canecão de chocolate sagrado, acompanhado de fruta-pão cozida, ovos mexidos de harpia e para finalizar um tipo de camarão lacustre enorme, assado na brasa. Segundo lhe disseram, um ser descerebrado. Comeu até se fartar.
Uma hora depois, o jovem sacerdote Quéktolpec apareceu e convidou o felino gris para um passeio nas dependências do Templo, ao qual chegaram por meio de uma passagem secreta. A mesma, os conduziu para a praça central da ciclópica edificação. Área bem arborizada, mas protegida das intemperes por um teto translúcido. Nos dias de sol, permitia a passagem da luminosidade, mas devido ao mau tempo, tochas acesas nas paredes davam ao ambiente um ar penumbroso e um pouco assustador.
– O dia é chegado, ó felino de fora…! Como te sentes?
– Não posso dizer que estou pulando de felicidade, Quéktolpec.
– És corajoso! Acompanhei espiritualmente com meus irmãos de culto, o teu embate com a própria deusa! De fato, és o Enviado, pois até então o “Combate Purificador” lícito o é, somente para os Escolhidos dos deuses e tu o és!
– Se você diz…!
– Não acreditas?
– E isto realmente importa?
– Não! Que dúvida não haja! Foste escolhido pela própria deusa! Nem aos sacerdotes ela dedica tanta atenção quanto a ti o fez! Teu Destino estava escrito nas estrelas! Não foi o acaso que aqui te trouxe! Leste os sacros códices! As palavras ali registradas a fogo vêm do Mundo Espiritual ao carnal como linhas norteadoras de Tudo o que Existe!
O felino meneou a cabeça, numa concordância muda! Não adiantava discutir diferentes visões de mundo com aquele jovem! Aliás, com nenhum habitante daquela fantástica urbe! Tinham suas próprias crenças! Profundamente enraizadas ao longo de séculos! Talvez milênios! O Gatão pensou: como seria o dia do inevitável confronto entre aquela Sociedade antiga e o chamado mundo civilizado? A seu ver, nada de bom resultaria! Fatalmente, aquele modo de vida seria destruído em nome da ganância pelas fabulosas riquezas encontradas, da pseudociência que a estudaria e sobretudo, das “Luzes Civilizatórias”, apresentadas como redentoras para um “povo selvagem e ignaro!” Mais uma das tantas e lamentáveis ironias, a permear o tragicômico Teatro da Vida!
Karoll despertou assustada! Afinal tinha chegado o fatídico dia! Naquela noite, seu amigo seria sacrificado! Se ela pudesse, trocaria de lugar com ele! Por mais que fosse medrosa e amasse a própria vida, não hesitaria! Não pode deixar de pensar que o Gatão se irritaria bastante, caso ouvisse tal disparate! Era corajoso, galante e apesar de casmurro, a ave encarnada sabia que ele gostava dela e nunca permitiria que tomasse o seu lugar! Mesmo sabendo que após a morte dele, sua existência seria segura e feliz no Reino Jaguar, não conseguia conformar-se. Grossas lágrimas escorriam por suas faces, o bico, normalmente sorridente, distorcido pelos soluços silenciosos! Ouviu as vozes do casal de filhotes reais a chamá-la! Recompôs-se a custo! Enxugou os olhos e tentou sorrir! Não queria toldar com sua tristeza a felicidade pueril das crianças felinas
A cidade santuário estava agitada! Não se falava em outra coisa, a não ser no grande sacrifício ritual há muito esperado! Quando o coração ainda quente e pulsante do Enviado fosse arrancado de seu peito, o Reino Jaguar entraria numa nova era de prosperidade eterna! A terrível desgraça profetizada por antigos Adivinhos, não se abateria sobre o Império! Não haveria mais dor, sofrimento e os deuses caminhariam benevolentes entre os mortais, como tinha sido na aurora dos tempos! Não haveria mais a presença da Morte e não mais rituais de sangue! Este precioso líquido vital seria derramado pela vez derradeira! Ao amanhecer, a própria Benapatóchi se sentaria no alto do templo sob o esplendor do sol nascente, para guiar os povos felinos de toda a selva! Daí em diante, o Império Jaguar cresceria além das matas, absorvendo todos as nações! Inclusive as das terras do Enviado cinzento, cujo hausto final esta noite seria o início de uma vida de hedonismo perene, como doce néctar caído dos céus!
Zé Gatão se achava recolhido em um imenso aposento do Templo Sagrado, onde estava ocupado em fazer exercícios e movimentos das lutas marciais que conhecia e treinara por toda a sua vida. Em sequências pré-determinadas movia-se, realizando posições variadas de ataque e defesa. Espírito concentrado! Mente limpa de sentimentos conflituosos. Era espantoso como seu corpo grande, maciço tinha tanta leveza, graça e suavidade! Ao mesmo tempo, demonstrava uma enorme força, capaz de quebrar ossos e romper músculos, caso algum daqueles golpes atingisse algum oponente. Os olhos do felídeo estavam fechados, mas ele sentia o ambiente em todas as suas nuances! Ouvia os menores sons e detectava os mais tênues odores. Estava de costas para a entrada. De repente virou-se como um relâmpago e seu punho direito arremeteu à frente, parando a poucos centímetros do rosto de Quéktolpec! O Gatão abriu os olhos encarou o rosto impassível do sacerdote.
– Quase que te arrebento a cara, sacerdote!
– Muito duvido eu que o farias, ó Enviado! Tu dominas completamente teu corpo e tua mente!
– Para sua sorte, amigo!
– Falta pouco para o anoitecer, ó Consagrado! Dois guardas ficarão postados na entrada deste aposento e quando a Lua estiver alta no céu te conduzirão ao altar!
– Não para me casar! - O sacerdote não entendeu o gracejo e o Gatão se arrependeu de tê-lo feito! No fundo de sua alma, apesar de todo o preparo, estava tenso! Seria medo da morte? E se fosse? Não tinha porquê envergonhar-se! Como qualquer um queria viver! Poderia dominar Quéktolpec e talvez os dois guardas! Mas não uma cidade toda! Era preciso calma! Talvez fosse melhor aceitar! Afinal, ninguém vive para sempre!
Os últimos lampejos do sol poente, tingiram de tons avermelhados a cidade santuário. Uma linda noite estrelada brindou a selva com a magnitude de sua beleza! Logo uma Lua cheia monumental ergueu-se lentamente no firmamento, inundando as cercanias com sua luz fantasmagórica.
O felino cinza estava sentado na cama em posição de Lótus. Horas antes, Quéktolpec mandou que colocassem um braseiro ali, cuja fumaça perfumosa inundou o local de maneira relaxante e agradável. Neste ínterim, uma linda fêmea de jaguar envergando trajes diáfanos entrou pela porta! Parou diante do cinzento e disse num tom de voz mavioso: - Cá vim para servir-te, ó Consagrado! Dar-te-ei teu postimeiro prazer carnal como o ordenaram os deuses! Vem! Hoje serei tua e tu serás meu!
Sem saber nem o porquê, Zé Gatão entregou-se! O que sentiram ambos e como foram os momentos seguintes e suas peculiaridades, fica até difícil de descrever! Ao fim daquele idílio erótico, a fêmea o deixou e o Gatão meio extenuado, largado no leito, não pode deixar de compará-lo à última refeição de um condenado à morte!
Bem alto no céu, nosso satélite refulgia como prata polida! As preliminares do ritual se dirigiam para o seu clímax! A população fechada em suas residências, orava diante de seus altares, onde pequenos braseiros fumegavam essências inebriantes. No Grande Templo, só a Casa Real tinha permissão de participar pessoalmente dos ritos principais comandados pela casta sacerdotal.
Uma nova dupla de guardas juntou-se aquela que estava postada diante da entrada do recinto, no qual o felino gris, até então habitara. O grande gato se viu cercado por uma pequena escolta de ar compenetrado. Saíram para a área externa do templo e pararam diante de um altar cerimonial. Estes mesmos guardas, manietaram o felino cinzento à pedra, de costas, braços e pernas bem abertos.
Enquanto observava os preparativos para o macabro ritual que poria fim à sua existência, o Gatão ficou a pensar: Por que razão não reagira e se deixara levar até ali? Começou então a refletir sobre as beberagens que tomara e aos odores que aspirara! Tudo foi para torná-lo dócil, o suficiente para que não resistisse e se conformasse com sua “sina!” Mas ainda havia nele uma centelha vital que protestava e se recusava a aceitar simplesmente morrer! Que o fazia disposto a lutar! Mas era tão fraca, tão tênue…! Se sentia frágil, desamparado, sem energia! Vontade de dormir e nunca mais acordar! Libertar-se finalmente das agruras do viver e talvez, se houvesse outra Vida, reencontrar os entes amados que já se foram…! Sua mãe querida! Sua adorada Tigresa…! Lá no tão propalado Paraíso! Prometido por diversas Religiões…! Viveriam em Felicidade Eterna! Não! Não podia acabar assim! Por mais dura que fosse, a Vida lhe era muito cara! As cordas! Se conseguisse rompê-las! Mas estão tão apertadas! O Gatão voltou a cabeça e viu sobre si o Naskaar! O sacerdote sacrificial, de punhal em riste! Olhos faiscantes! Quase em transe! Pela primeira vez, Zé Gatão teve medo! O medo do desconhecido! Fruto da incerteza que permeia todo ser vivo quando se vê diante do inexorável! A lâmina do punhal ergueu-se ameaçadoramente! Porém, com um gemido surdo, o Naskaar desabou em cima de Zé Gatão e a arma mortal escapou-lhe entre os dedos crispados, indo cair barulhenta e inofensivamente no chão de pedra! Ao mesmo tempo, uma tropa de guerreiros assomou, irrompendo como um furacão tropical!
De zarabatana na mão, ergueu-se Izayana, do ponto em que se ocultara para usar a arma de sopro! Habilmente, cortou as cordas que cingiam o Gatão e de um pequeno frasco, deu-lhe uma poção estimulante de efeito imediato, bem como uma espada afiada! Munido de intensa carga de energia explosiva, o felino acinzentado ergueu-se! Com seus salvadores abriu caminho entre os atônitos sacerdotes e os guardas do Templo que não tiveram como reagir ao avanço feroz! Tomando um rumo preestabelecido que dava diretamente na selva, desapareceram nas trevas reinantes!
Só quando o sol se ergueu no horizonte é que uma expedição punitiva foi enviada atrás dos fugitivos! Chefiava-a, o Capitão-mor, reconduzido às suas funções! O indivíduo tinha ganas de alcançar Izayana e os outros! Para matá-los! Especialmente, a guerreira! Seu ódio por ela não tinha limites e teria mais prazer ainda em estripar aquele estrangeiro! Causa principal de sua ruína! O Capitão era um excelente rastreador! Contudo, não conseguia encontrar pistas de suas presas! Era como se alguma força estranha o cegasse, fazendo-o andar em círculos!
Enquanto seus perseguidores se afastavam, tomando caminhos errôneos, o Gatão, Izayana e a pequena tropa que os acompanhavam pararam à beira de um afluente do grande rio. Ali estavam mais alguns guerreiros e quem diria! Karoll que ao ver o felino tristonho, caiu em seus braços, chorando de pura alegria!
– Você está vivo! Quando Izayana mandou me tirar do palácio real, ontem à noite…! Eu não soube o que pensar! Eu…!
Zé Gatão deu um dos seus raros sorrisos e aninhou a gentil ave em seus enormes braços, beijando-a na testa. Dois guerreiros, trouxeram uma piroga escondida na folhagem. Colocaram-na na água. Todos embarcaram e se afastaram velozmente, rio abaixo! Ainda ouviram urros enfurecidos e alucinados na margem! Era o Capitão-mor que chegara atrasado, vendo impotente, sua caça escapar-lhe entre os dedos das mãos em garra, tal era a fúria virulenta que o animava!
Por quase três horas, a piroga seguiu pelo afluente, até chegar numa passagem para o enorme rio principal. Durante o trajeto, Izayana pôs o Gatão a par de certas situações. Suas palavras foram as seguintes:
– Agindo estamos nós sob as ordens da deusa serpente. Na noite anterior ao teu sacrifício, teve Ela visões proféticas! E em sonhos a mim revelou!
“ Uma grande catástrofe se abaterá sobre o Império Jaguar em um futuro ainda distante! Povos do teu mundo civilizado se abaterão sobre o Reino e o destruirão! Tua imolação não adiaria ou impediria este porvir! Além disto, Ela viu teu futuro, o qual nada tem a ver com os desígnios dos deuses desta selva! A deusa nos encarregou então, de salvar-te e buscar um novo santuário em um determinado vale, escondido entre as montanhas. Ali uma nova geração florescerá! Nova vida! Novos costumes! Sem mortes inúteis, desigualdades sociais ou sacrifícios de sangue! Benapatóchi será nossa única protetora abençoada! Benevolente e não mais oculta em Templos Sagrados, sob a tutela de uma casta sacerdotal! Viverá entre nós, pois ela abrirá mão de sua potestade para se tornar um ser carnal! Ela ainda será poderosa! Mas seremos nós como iguais!”
O felino gris, deu mais um de seus poucos sorrisos! A velha cobra era mesmo sábia! De maneira inteligente desconstruiria o mito criado em torno de si e poderia viver em paz entre aquele povo felino, tendo pago com juros a proteção que lhe ofereceram ao longo dos séculos! A Antiga Ordem cairia, como tinha que ser! A vasta e maravilhosa Cultura dos jaguares não se perderia e seu legado permaneceria! Livre por enquanto, da sanha dos rapaces deste mundo! Izayana perguntou se o Gatão gostaria de se juntar a ela e viver para sempre no vale escondido. O felino agradeceu, mas respondeu que ele não pertencia à selva! Queria ser livre para ir e vir como sempre fizera! Karoll seguiria com os jaguares! Era bem-vinda! Não seria mais só e não teria mais medo! E o melhor! Ainda permaneceria nas matas que tanto amava! Zé Gatão abraçou a todos e partiu na piroga! Rumo à Civilização! Cheia de contrastes! Mas era seu mundo e não poderia continuar fugindo dele! Com pesar, se separou dos seres mais amigos e fiéis que jamais encontrara! Vislumbrou uma lágrima nos olhos de Izayana e de Karoll! Por um momento, quis reconsiderar! Mas não podia! Era como um navio perdido no Oceano! Uma criatura sem Pátria, a vagar pela Terra! Separam-se, portanto, para encontrar seus próprios Destinos.
A cidade santuário estava em polvorosa! A dita expedição punitiva voltou de mãos vazias! O Capitão-mor foi responsabilizado! Apesar de ter lutado como fera acuada, amarraram-no ao altar do sacrifício, visando aplacar a ira dos deuses, que fatalmente se abateria sobre o Império! O Capitão acabou imolado! Seu coração palpitante, arrancado do peito aberto à faca! Não houve choro nem vela que demovesse a Casa Real de assim o proceder!
Desde então, a grande deusa serpente silenciou, não atendendo mais aos apelos e às preces dos sacerdotes! A gigantesca cobra recolheu-se aos subterrâneos do Templo! Em lugar inacessível e desconhecido! Lá, mergulhou em um longo sono, do qual apenas despertaria quando da aproximação da Grande Catástrofe! Impiedosa devastadora no denominado Fim dos Tempos!
Apesar de tudo, a vida não se alterou grandemente no Reino! Se uma divindade se calava, havia tantas outras a venerar! O profético dia da Derrocada Final ainda estava distante no tempo e as gerações atuais não o veriam! Nem disso saberiam, pois os sacerdotes preferiram jamais revelar suas terríveis visões do futuro!
Lentamente, Izayna, os seus e Karoll seguiram pelos caminhos da jângal até um ponto, onde canoas costumeiramente ali deixadas, os esperavam. Tomaram-nas e sumiram nos meandros de um pequeno rio. Se eventuais perseguidores viessem, perderiam logo sua pista!
Longe, no meio do enorme rio de águas barrentas, o Gatão manejava com habilidade sua piroga! Sempre temera e detestara cobras! De repente, sentiu um toque sutil em sua mente! É como se alguém sorrisse para ele em seu íntimo! Uma onda de paz o tomou. De alguma maneira, ele soube que seu agradecimento chegara até a grande serpente! E ele aprendeu que qualquer ser pode mudar! O carinho e a veneração do povo jaguar, mataram o rancor e a desconfiança que a cobra tinha dos mamíferos e os cuidados da assim chamada deusa Benapatóchi para com o felino gris, inclusive salvando-lhe a vida, o fizeram mudar! Pelo menos, em relação aquela serpente de aparência tão monstruosa, mas de coração bondoso! O felino se descontraiu e remou com mais tranquilidade! Breve o sol ia se deitar ele precisava encontrar um bom lugar para passar a noite, antes da longa jornada de volta à Civilização.
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