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segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

O FIM DA ESTRADA DA CURA.

 

Detalhe de uma página de RASTREADORES DE ALGURES, novo projeto com roteiro de Elton Borges Mesquita.

 Houve uma época em que eu conseguia ler um livro por semana. Devo lembrar que nestes períodos eu saía mais de casa, então ler no metrô ou em consultórios médicos aguardando consulta facilitavam bastante. Um exemplo de um que li em diversas viagens de metrô em São Paulo? On The Road e acho que algum do Umberto Eco.

 Mas em casa eu sempre separava um tempo para ler um capítulo diariamente. Lógico, tem gente que lê muito mais que um a cada sete dias, o saudoso professor Pierluigi Piazzi me falou que lia uns cinco semanalmente (as vezes até mais), mas ele era editor, entre outras coisas, e ele precisava revisar textos, eu só leio pelo prazer mesmo. Os livros sempre foram um grande consolo nos momentos de tribulação, por exemplo, quando amarguei alguns anos no Rio de janeiro eu devorava livros, foi nesse período, quando eu contava com meus vinte e poucos anos, que li A Divina Comédia, Edgar Allan Poe, obras de Shakespeare, os contos do Voltaire, os poemas de Camões, clássicos da literatura brasileira, um pouco depois eu me interessei por Kafka, Tchekov e Dostoievski, além de obras contemporâneas. Li Agatha Christie, Conan Doyle (não só o Sherlock completo), Bukowski e Fante. Nem todos foram um prazer, Dante, Victor Hugo e Homero não eram palatáveis, desceram pelo esôfago da minha mente muito secos e talvez eu devesse reler para ver se, na época, eu era muito verde para absorver o que eles tinham a transmitir. Teve alguns que eu comecei e abandonei logo no segundo capítulo, como o Germinal do Zola ou As Ilusões Perdidas do Balzac. Ah, um que enrolei muito e desisti foi O Bosque Das Ilusões Perdidas, não é que fosse hermético, é que achei chato mesmo. Em compensação eu li numa tarde As Ligações Perigosas num clube em Brasília enquanto minha mãe participava de um concurso gastronômico onde ela  saiu vencedora. Enfim, nunca deixei de ler, mas o problema é que hoje ao invés de um por semana eu creio que leio um ou dois por ano. Não consigo mais tempo para esse prazer por mais que insista. Se os tomos são um bálsamo para as minhas dores então estou em maus lençóis pois as circunstâncias da vida tem batido muito forte e eu não consigo mais o escape da leitura. Todo o meu tempo é gasto na prancheta tentando ganhar a vida ou na rua resolvendo problemas ou fazendo compras com a esposa. No fim da noite as vezes eu me forço a ler um pouco, as vezes consigo, foi assim que finalmente conclui A Estrada da Cura do finado Neil Peart, o lendário baterista do Rush. Quem me acompanha a mais tempo aqui sabe do que falo. Eu comecei a ler este livro primeiro porque sou fã da banda e em especial do Neil, que acho o maior baterista de todos os tempos (quase empatando com Buddy Rich). Depois a motivação aumentou quando me vi na mesma situação do músico: o luto. 

É um bom livro? Com certeza. Bem escrito, mostra que o Neil não era fera só nas baquetas, mas também com as palavras, erudito, discorre sobre muitas coisas. A Estrada é quase um diário de viagem, narra os lugares e situações por que passa com tanta clareza que é como se estivéssemos com ele em cima da moto atravessando todo o Canadá, EUA, parte do Alasca e México. Fala de sua dor por perder filha e esposa no espaço de um ano e sua tentativa de entender - e mesmo superar - a situação. Eu, que compartilho da mesma dor, me envolvi na leitura no afã de colocar um lenitivo sobre minha ferida. Não consegui. Existem abismos homéricos de diferenças entre eu e o baterista. Em primeiro lugar eu sou um cristão, um crente, embora eu não entenda os desígnios de Deus, permaneço crente, ele não era. Ele pôde se dar ao luxo de subir numa moto e percorrer todos aqueles quilômetros se hospedando em hotéis, bebendo bons vinhos e saboreando boas comidas (o livro tem momentos que parece um tour gastronômico), eu não tenho onde cair morto e conhecer outras plagas para fugir da dor não é um luxo ao qual eu possa me dar (deixando claro que não julgo o Neil Peart, se ele conseguiu sair pelo mundo, fez muito bem). 

Claro que fala sobre o luto e suas diversas etapas (ele pesquisou sobre) mas não consegui identificação. É como se eu estivesse escutando uma conversa onde um cara fala sobre sua desdita e embora algo similar tivesse acontecido comigo, as diferenças de pensamentos sobre a questão são tão diversas que é como se ele estivesse falando um outro idioma. 

Chego à conclusão de que cada dor é uma dor, sua experiência pode ter sido exatamente igual à minha mas a maneira como você recebe, suporta ou não, essa dor, pode ser outra diversa. Mas é um bom livro, sim, gostei. O bom é que eu pensei que fosse terminar de forma melancólica, tipo, a estrada não me trouxe respostas porque não existem respostas e só o futuro dirá e tal. Mas não, ele não demorou a encontrar outra pessoa, se casou de novo e constituiu nova família e parecia feliz. O último capítulo me pareceu apressado, tipo, tudo acabou bem, ninguém vai substituir a esposa e filha perdidas mas a vida tem que seguir e tchau.

Passei tanto tempo com A Estrada da Cura, lendo à conta gotas, que vejo que nesse ritmo nunca conseguirei ler os diversos tomos que estão na fila. Qual será o próximo? Não sei. Tenho várias opções, mas tenho medo de começar outro e não conseguir terminar. Mas vou fazer um esforço. Acho que agora vou de novo me imiscuir no mundo de Robert E. Howard através de Solomon Kane ou talvez eu releia uma seleção de contos de horror selecionados pelo Ítalo Calvino. Vamos ver. 

O que sei com certeza é que uma nova folha em branco me espera na prancheta com a esperança de virar uma página de HQ. A roda da vida não para, se eu cochilar ela me atropela impiedosamente.   

10 comentários:

  1. É muito difícil achar alguém que realmente divida conosco um sentimento tão profundo como esse. Talvez,no caso do livro, chegou uma hora onde o luto lhe impediu de aproveitar seu dom, e acho que pessoas que tem uma conexão muito forte com seus dons, muitas vezes vivem mais por eles do que por qualquer outra coisa.
    Quanto aos livros, talvez a melhor opção para a próxima leitura seja o que estiver mais perto das mãos.

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    1. Belo comentário, meu caro!

      No livro, o Neil relata que não conseguiu mais tocar bateria. Ele declarou-se aposentado da banda e saiu pelo mundo. Mais uma diferença entre nós, a arte (no caso o dom que você citou) de alguma forma me ajuda a suportar essas angústias.

      Sobre qual livro ler, bem, todos estão ao alcance das mãos, acho que vou pegar algo mais leve, pensei bem e tenho algo aqui relacionado com o mundo dos quadrinhos, acho que será esse.

      Grande abraço!

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  2. Quanto mais leio seus posts mais me espanto com nossos gostos similares, o professor Pierluigi foi para mim um norte, um exemplo a ser seguido, o conheci ainda muito jovem em aulas de programação BASIC para TK90X, lá pro fim dos anos 80, e o reencontrei algumas vezes muito mais tarde no espaço da Aleph na Bienal, assim como o filósofo recém-falecido, o professor deixou uma lacuna impreenchível, não consigo ver figuras desse calibre nas gerações atuais, espero estar equivocado. Outra similaridade é com relação a falta de tempo, em termos quantitativos acredito que eu não faça metade do que fazia a pelo menos 10 anos, no entanto parece faltar tempo para tudo, tento culpar algum agente externo para esse fenômeno mas a verdade é que estou realmente mais lerdo a cada dia. Também busco refúgio e conforto nas leituras, porém há quase um ano só sinto ânimo para frivolidades, no momento folheio "Humor Paulistano" do falecido Toninho Mendes, só leio coisas não relacionadas a trabalho enquanto reino, por sorte meu intestino funciona bem.

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    1. Tive contato muito próximo com o Pier (como o chamávamos, eu e meu irmão, que foi aluno dele). Ele me encomendou uma pintura para uma capa de uma biografia do Phillip K. Dick. Nunca foi publicada, infelizmente, ele gostava da minha arte mas penso que outros da Aleph não curtiam (teve um cara lá que me boicotou e esse mesmo cara foi trabalhar na Devir e tentou me barrar por lá também. Essas coisas acontecem).
      Concordo com você Olavão e Pierluigi são homens extremamente raros, que nascem a cada cem anos, talvez. Mas ainda bem que deixaram discípulos competentes, embora bem menos carismáticos.

      Sobre a falta de tempo, sei lá, os ponteiros no relógio são os mesmos mas parece que ele encolheu e não percebemos.

      Como disse no post, creio que não vou conseguir ler (nem reler) o que tenho à minha disposição, estou até me conformando com isso. Até tento ler uns gibis, mas mesmo esses fica difícil no panorama atual.
      Mas vamos vivendo como é possível.

      Obrigado por seu comentário.

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    2. Eduardo, olha aí as coincidências batendo a porta novamente, a última vez que vi o Pierluigi foi no estande da Aleph da Bienal e o último livro que comprei da Aleph naquele exato dia foi "Eu Estou Vivo e Vocês estão Mortos", que sensacional seria uma obra sua na capa!

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    3. Minhas artes evoluíram (ainda bem) dos anos 90 para cá, mas pelas minhas lembranças aquela pintura para este livro ficou bacana, sim. E, veja, nunca recebi por ela e nunca me foi devolvida.
      Sabe, se eu fosse uma pessoa importante e fosse escrever um livro de memórias sobre os bastidores envolvendo o mercado editorial daquela época, haveria muita história interessante (triste, até, mas interessante). Muita coisa até já postei aqui no blog mas evito mencionar nomes e outras prefiro até esquecer.

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  3. Eu também fazia o mesmo...hoje os livros só se acumulam no meu criado mudo.

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    1. Acho que precisamos administrar melhor o nosso tempo, ser mais disciplinados (eu pelo menos preciso), mas é muito difícil, com tantas obrigações.

      Eu tento nem esquentar mais a cabeça.

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  4. Meu tempo recorde de um livro foi a versão lusitana do primeiro O Senhor dos Anéis, que li em um mês (!).

    Mas foi em 2018 que em matéria de quantidade, consegui ler 12 livros em sequência, sendo boa parte de ficção científica. Nunca mais quebrei esse recorde...
    Dos que li, alguns ficaram na prateleira e outros que me defiz foram vendidos ou trocados em sebos de Alvorada e Porto Alegre

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    1. Doze livros em sequência?!? Uau! Queria eu poder voltar a esses tempos de boas leituras. Hoje só sinto a chuva de pedras.

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