A PONTE TRÁGICA
Em um vilarejo interiorano sem luz e sem os confortos da vida moderna residia uma comunidade canina simples e ordeira que vivia dos produtos da terra. A única sombra de progresso que havia surgido há alguns anos era a linha férrea que trazia uma fumarenta e ruidosa locomotiva atrelada a velhos vagões de carga. Todo fim de mês a mesma parava na pequenina, mas bem construída estação para recolher os frutos do suor daqueles animais. Estes produtos livres de agrotóxicos iam abastecer as cidades da região. O lucro deste comércio não era muito. Contudo, era suficiente para aquelas criaturas simplórias terem uma vida decente dentro dos padrões a que se achavam acostumados.
Tempos depois surgiu nas cercanias um gigantesco Dogue Tedesco de índole má. Corpo musculoso de cor branca com manchas pretas. Voz trovejante e baba farta escorrendo pelas comissuras dos lábios frouxos, olhinhos brilhantes e cruéis. O indivíduo cismou em se postar o dia inteiro no meio da pequena ponte de pedra sobre o rio. Esta ponte separava o vilarejo da estação de trem. O brutal canídeo vociferou estático em sua posição que só passaria quem conseguisse vencê-lo em um duelo. O gigantesco canino portava um estadulho, pedaço de pau nodoso com o qual moía os ossos dos tolos que tentaram desafiá-lo. E houve muitos. Facilmente o monstruoso Dogue atirava seus oponentes com ossos quebrados nas águas geladas do rio abaixo da ponte. Em um destes embates um cachorrão forçudo que era o ferreiro do vilarejo aceitou o desafio. Este deu um pouco mais de trabalho ao Dogue, mas um certeiro golpe no meio do crânio atirou-o às águas, onde desapareceu para nunca mais ser encontrado.
Então, proibidos de atravessar a ponte, os pobres habitantes do vilarejo viram seu meio de sustento cortado, uma vez que não podiam mais levar seus produtos para o trem que parava mensal e religiosamente na pequena estação. Nem os protesto do maquinista, um porco grande, rosado e balofo, valeram de alguma coisa, Foi expulso a pauladas pelo grande Dogue que gargalhou até quase rebentar. Nem à noite era possível atravessar a ponte. O enorme cão aparecia não se sabe de onde e punha para correr o atrevido. Tentaram atacá-lo em grupo, mas seu nodoso estadulho girando em suas mãos como uma hélice espancou duramente os infelizes que acharam que podiam dominá-lo. A sombra da penúria pairava sobre o vilarejo e o pior de tudo é que os habitantes da malfadada vila eram forçados a pagar tributos em gêneros e toda a semana mandar uma cadelinha nova para saciar o inesgotável apetite sexual daquele que os tiranizava.
Certa manhã, um estranho apareceu na vila vindo do norte. Era um enorme gato extremamente musculoso, cinza, as suíças e os pelos nas pontas das orelhas denotavam que era um mestiço de gato e lince. Tinha um ar grave e era de poucas palavras. Mesmo assim, procuraram tratá-lo bem, desculpando-se pela frugalidade da refeição que foi oferecida na casa da esposa do ferreiro morto. Cochichando, contaram ao felino seus dissabores. Em princípio, o gato pensou que não era assunto seu, mas quando viu algumas mães tristemente escolhendo suas jovens filhas para serem entregas em holocausto aquela fera, o sangue lhe subiu a cabeça.
Em passos decididos, o felino cinzento foi até a ponte e caminhou por ela parando no meio bem de frente para o Dogue colossal que o encarava de cenho fechado. O tom de voz do Dogue parecia um ronco e tinha um forte sotaque quando indagou rispidamente:
- Que querr aqui, gato?! Veio desafiarr a mim?
- Vim arrebentar tuas fuças e te deixar mais feio do que já é! – O canídeo riu estrondosamente.
- Onde estarr sua estadulho? Pensarr poderr vencerr a mim com seus mauns nuas? Tomarr este faca e corrtar uma estadulho parra focê! – Desdenhosamente, o enorme cão atirou um facão que trazia à cinta aos pés do felino taciturno. Sem nada dizer, tomou-o e habilmente cortou um galho de uma árvore próxima desbastando-o até confeccionar um estadulho rijo semelhante ao do oponente.
Os adversários não trocaram mais nenhuma palavra. Partiram para o embate duro, encarniçado, brutal! Os habitantes da vila foram chegando aos poucos enquanto o combate recrudescia. O som dos estadulhos se chocando era alto e assustador. De repente, o Dogue deu um golpe inesperado e animalesco, só não atingiu o felino devido a sua presteza em bloquear o formidável ataque. Golpes em cima de golpes eram aplicados, mas os dois combatentes mostravam que não eram principiantes e não se deixavam atingir, bloqueando, embaixo, em cima, saindo de uma investida lateral, o suor porejando em bicas, os rostos convulsionados, respirações sibilantes.
Inesperadamente, uma forte paulada atingiu de raspão as costelas do grande gato fazendo-o grunhir de dor.Tomado de dor e fúria mas decidido a não se dobrar, o felino avançou desferindo uma sequencia de golpes que atingiram a lateral do tronco do oponente, seguida por uma pancada na cabeça que fez o gigante curvar-se já vendo estrelas. Sem piedade, o mestiço invocado malhou o lombo do infeliz cachorro até que ele caísse vencido, ganindo penosamente - um ganido grosso e desesperado. Uma baba grosa lhe caía pelos lábios frouxos molhando-lhe o peito. O gato se quisesse poderia dar o golpe final naquela fronte derreada, mas conteve-se. Os dois ficaram se encarando longamente. Num átimo, o canzarrão mexeu-se ofegante de dor e se atirou nas águas do rio. Ali sumiu para nunca mais ser visto outra vez.
O felino sorumbático partiu sem esperar agradecimentos daqueles animais simples e bondosos. Passou como uma sombra naquela comunidade, mas ficou para sempre lembrado como aquele que viera na hora mais sombria para libertar do calvário aquela vila esquecida.
Luca Fiuza em 30/07/14.
Luca Fiuza em 30/07/14.
Gostei do conto, Luca. O Zé Gatão, como sempre, foi ético. Um personagem menos nobre atacaria com a faca que o vilão forneceu. Confesso que precisei procurar "estadulho" no dicionário. Lendo e aprendendo. Que venham mais contos! Parabéns!
ResponderExcluirZé Gatão?!? Aquele que lutou com o Dogue Tedesco era o Zé Gatão? Caramba, Carla, eu nem tinha percebido! Bem, brincadeiras a parte, fico feliz que tenha gostado, existem mais alguns contos programados mas tudo no seu devido tempo. Assim que o Luca der a resposta dele eu posto aqui para você.
ExcluirUm grande abraço e muito obrigado.
Eu também imaginei um personagem pelo menos muito parecido com o Zé gatão. HEUHUEHUE Gostei da descrição geral que ele faz, ao invés de escreveu um diálogo ou uma passagem, ele encurta para pequenas linhas sem perder o conteúdo. Muito bom :D
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, Matheus. Sim, não há firulas nesta narrativa, o escritor vai direto ao ponto. Gosto de ressaltar que a mim ela evoca as antigas fábulas, tipo, era uma vez e tals. Realmente muito bom. E, claro, o felino sem nome é o nosso bom e velho Zé Gatão, um justiceiro involuntário. Yeah!
ExcluirMuito bacana! Esse conto foi bem mais curto do que os outros, mas tão empolgante quanto!
ResponderExcluirMuito obrigado, Fabio!
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