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domingo, 17 de maio de 2020

INFERNO VERDE CAPÍTULO 2 - ESCRITO POR LUCA FIUZA E ILUSTRADO POR EDUARDO SCHLOESSER.


INFERNO VERDE.
17/11/19.
Parte 2:


    O resto da noite foi tranquila e nada incomodou o sono levíssimo do grande gato. Karoll dormiu a sono solto e só acordou ao chamado insistente de Zé Gatão que já tinha aprontado o desjejum há poucos instantes. Foi uma refeição leve que consistia de frutas carnudas e suculentas de sabor levemente adocicado, muito nutritivas. De certas ervas que recolheu nas proximidades do acampamento, graças as suas leituras, o felino preparou um chá estimulante para ajudar a resistir melhor ao penoso deslocamento em meio à selva, cujo o calor escaldante se fazia sentir, fazendo o corpo suar profusamente mesmo quando em estado de repouso. Enquanto terminavam a rápida refeição, felino e ave conversavam ao pé do fogo, onde Zé Gatão preparara o chá. O gato tomou mais um gole da beberragem e indagou:
– Quantos dias levaremos para sair da selva, Karoll?
– Seguindo em direção ao sul, chegaremos ao grande rio e seguindo por ele, sairemos da selva rumo ao seu mundo civilizado…! - O felino cinzento sentiu apreensão na vozinha de taquara rachada da mimosa ave e quis saber a razão. Esta disse: - É que vamos passar pelas terras dos Jaguares…! - O felino quis saber quem eram e Karoll não se fez de rogada, dizendo: - São uma raça de poderosos felinos pintados que fundaram um imenso reino nestas terras. E não teremos meios de evitar que nos descubram!
    Balançando pendularmente a cabeça acarminada, a arara de repente se imobilizou. Olhou fundo nos olhos penetrantes de Zé Gatão e prosseguiu: - Prestam homenagens e sacrifícios a deuses terríveis e sanguinários! Se cairmos nas garras deles, morreremos no Templo Sagrado! Nossos corações serão arrancados ainda pulsando e em seguida oferecidos às suas monstruosas divindades, bem como nossos corpos! - Karoll tremia intensamente! O felino gris escutou em silêncio. A chance de ser encontrados e aprisionados era tão certa como o nascer do sol a cada dia! Bem, se tivesse que morrer, venderia caro a sua vida! Muitos daqueles felinos pintalgados não veriam o macabro sacrifício! Que viessem! Zé Gatão os receberia com todas as honras! O acampamento começou a ser desfeito. A fogueira foi apagada. Sem olhar para trás felino e ave prosseguiram sua extenuante jornada. A arara era a guia!
    No meio da tarde, resolveram parar junto a um afluente do grande rio que estaria a uns cinco dias de distância. Embora o trajeto até ali tenha sido tranquilo, acompanhado pelos costumeiros sons da jângal, os sentidos do Gatão estavam excitados em seu nível máximo e uma apreensão, uma sensação de perigo iminente o envolvia como um pestilento miasma de dor e morte! Deixando o acampamento pronto, dirigiu-se com Karoll ao lado à beira do rio para renovar o estoque de água do cantil. Aproximou-se lentamente da margem. Um cheiro estranho e forte excitou seus órgãos olfativos! Repentinamente, das águas serenas ergueu-se um imenso réptil! Um jacaré esverdeado de fauces abertas, investindo sobre presas que julgava fáceis e incautas! Tolo réptil! Zé Gatão desviou-se facilmente do ataque! A besta-fera atingiu o vazio, tombando de maneira ruidosa e desajeitada ao solo! Karoll voou assustada para uma árvore próxima, gritando e lamentando, em altos brados! Furioso, o jacaré ergueu-se! Usava um saio curto e um cinto feito com o couro provavelmente de alguma de suas vítimas! Um sorriso mau brincava em sua face grotesca! Os olhinhos perversos e famintos cintilavam no lusco fusco da mata! Enquanto o reptiliano ainda se aprumava para reiniciar o ataque, levou uma voadora que o derrubou que nem bosta no solo pastoso da margem do rio. Sem dar tempo para nenhuma reação, o felino taciturno deu uma potente cutilada na garganta exposta do pecilotermo, fazendo-o engasgar-se e ficar sem conseguir puxar ar para os pulmões agora em brasa! O réptil estrebuchou no chão! Olhos arregalados, bocarra aberta, língua preta projetada para fora! Espumosa baba escorrendo pelas comissuras labiais profusa e nojentamente! Um chiado horrível saindo da garganta!

    Zé Gatão apanhou seu inseparável cajado e o vibrou com força no meio da testa do oponente, arrebentando-a como se fosse frágil porcelana! O jacaré estremeceu! Suas mãos abriram e fecharam convulsamente! Suas musculosas pernas e cauda realizaram um movimento inarticulado e breve! Seu tórax expandiu-se buscando ar inutilmente! Os olhos se reviraram nas órbitas e sua morte se deu após um ronco alto e profundo saído de uma traqueia destroçada e não mais funcional. Zé Gatão acompanhou o estertorar final do jacaré insensivelmente! E não pode deixar de pensar que se fosse um filme de cinema, a luta entre ele e seu quase algoz seria longa e cheia de coreografias bonitas! Quão distante da realidade era uma luta pela vida! Quem não tivesse mais força, habilidade e rapidez estaria morto! Chamou Karoll que pousou junto dele meio desajeitadamente, ainda bastante assustada, mas logo se acalmou. Naquela noite, Zé Gatão comeu lombo assado de jacaré, o que não foi nada mal! Karoll, sendo frugívora, contentou-se com frutas e sementes coletadas nas imediações. Zé Gatão em suas andanças nunca comera a carne de outro animal! Bem, para tudo tinha uma primeira vez! Nunca antes enfrentara um ambiente como aquele e precisava estar forte para sobreviver! Sempre foi um sobrevivente e mesmo tendo vários motivos para não gostar de sua vida a defenderia com unhas e dentes de quem dele tentasse tomá-la!

    No meio da escaldante e úmida madrugada, um leve ruído o despertou. Porém, antes que pudesse se levantar estava cercado por um grande bando de felinos de pele negra como a própria noite! Envergavam armaduras leves, cabeças cobertas por capacetes. Portavam lanças e pesados tacapes. Zé Gatão achou melhor render-se sem luta. Estava deitado e seria facilmente transpassado pelas lanças dos intrusos! Incrivelmente, karoll desceu de seu poleiro improvisado em silêncio e sem escândalo indo pousar com um adejar de asas junto ao amigo, o felino sorumbático. Devagar, sem movimentos bruscos, felídeo e psitaciforme se sujeitaram a seus captores. Brutalmente manietados, por cordas feitas de rijos cipós foram conduzidos através da noite que findava para uma cidadela erigida em uma grande clareira, a qual chegaram após uma hora de caminhada ininterrupta. Foram deixados em um dos compartimentos de um enorme templo cerimonial. Comidas suculentas e bebidas refrescantes lhes foram ofertadas. Comeram unicamente para restaurar as forças. As horas se passaram lentas. Os prisioneiros cochilaram um pouco. Despertaram ao som mecânico da abertura do monumental portal

de pedra que selava o cômodo onde os haviam colocado. Um pequeno destacamento adentrou. Suas vestes e armas eram cerimoniais. Em seguida, adiantou-se um sacerdote ricamente paramentado. A seu lado, um felino altivo, bastante musculoso que parecia ser um nobre, um líder de seu povo. Em tom autoritário, o líder dirigiu-se a Zé Gatão fazendo indagações em uma língua estranha que tinha um sabor antigo, mas de alguma forma, relacionada com sílabas e fonemas das línguas do mundo civilizado. O felino olhou para Karoll a seu lado. Esta, em voz contida, disse:

– Ele quer saber quem somos e porquê você se atreveu a entrar na selva!
– Diga a ele que estou de passagem, indo para o sul. Em busca do caminho de volta para a Civilização. Pergunte a ele se pode ajudar. - A bela ave traduziu. O líder explodiu em uma gargalhada! Tremendo de medo, Karoll explicou que de acordo com o líder, o gato cinza era um infiel! Invasor que seria entregue dali a dois dias a seus senhores, os Jaguares que o sacrificariam em holocausto à Grande Serpente Emplumada, criadora do Universo e da Vida. Sem esperar resposta, o líder e seu séquito se retiraram. O enorme portal foi novamente lacrado e sob a luz fugidia das tochas acondicionadas nas sólidas e rústicas paredes da insólita cela, ficaram Zé Gatão e Karoll entregues a seus pensamentos. O felino quebrou o pesado silêncio:
– Que negócio é esse, Karoll?
– Como já disse, estas terras fazem parte do Grande Reino dos Jaguares. As Panteras Negras são vassalas do povo Jaguar. Após uma longa guerra entre estas duas espécies de felinos, a dos Jaguares venceu. As Panteras passaram a ser tributárias dos Jaguares, entregando impreterivelmente fêmeas jovens e filhotes para os rituais de sacrifício aos deuses sanguinários, nos quais estas duas raças felídeas acreditam! A deusa principal é Bepnapatóchi, a Serpente Emplumada! Um dia, o povo Pantera entrou em acordo com seus dominadores. Caso capturassem um animal de fora, seus entes queridos seriam poupados naquele ano!
– Pelo visto pouparão você, pois é daqui!
– Nem pensar, Gatão! Aonde você for eu vou! - Um fugaz sorriso brincou no rosto duro de Zé Gatão – Está disposta a morrer comigo?
– Posso ser covarde e escandalosa, mas não abandono os amigos!
– Ainda estamos vivos, garota! E enquanto há vida, há reação! Estes e os outros babacas que nos aguardem!
– É isso aí! - Gritou a Karoll, não tão convicta como queria parecer.
– Vamos descansar mais um pouco, então! Antes de morrermos talvez eu tenha uma satisfação.
– E qual é?
– Dar umas porradas no focinho de algum sacerdote antes que ele arranque nossos corações!
– Você sabe mesmo animar a gente, Gatão! - O grande gato deitou-se no chão, bem ao fundo da cela com as costas contra a fria parede de pedra, virado para o portal granítico. Karoll esticou-se a seu lado e tentou dormir. Logo ela estava ressonando de leve. O felino permaneceu desperto. Os sentidos sempre alertas! Prontos para mantê-lo vivo, não importando a que preço!

2 comentários:

  1. Era realmente inevitável. Entretanto a vantagem é que o Gato não foi exatamente pego de surpresa.

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    1. As vezes me pergunto porque Zé Gatão se embrenhou nesta mata, e porque se deixou ser levado pelas panteras negras sem uma boa briga, embora o escritor tenha deixado esta última questão bastante claro, mas no meu entender, é como aquela situação onde você vai sendo levado, meio que sem querer, olhando o fundo do abismo, se perguntando o que aconteceria se caísse nele.

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