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domingo, 12 de junho de 2022

RÉQUIEM PARA UM SONHADOR (Um conto criado por Eduardo Schloesser num dia qualquer de 2007).

 Quantos anos faz que isto aconteceu mesmo?

Muitos anos, o suficiente para não saber a data com exatidão, mas foi na época daquela novela em que o ator principal morreu bem na metade da trama. Sua passagem causou comoção nacional e também um grave problema para os produtores do folhetim, afinal, como prosseguir com o enredo sem o protagonista? Substituíram-no por um outro interprete que em nada lembrava o original.

Meses depois surgiria o boato de que aquele artista, um dos maiores que este país já teve, não havia de fato morrido, mas fora enterrado vivo. Sofria, disseram, de catalepsia e o único a sabe-lo seria seu médico que na ocasião estava viajando para o exterior. Ao retornar o doutor mandara exumar o corpo e constatou-se que a tampa do caixão apresentava arranhaduras pela parte de dentro e o cadáver encontrava-se de bruços, morto finalmente, claro, por asfixia. 

Verdade? Lenda urbana? Pouco importava para o menino que estava apoiado no baixo muro caiado observando o movimento da rua, totalmente absorto em seu mundinho de fantasias.

Os olhos do infante como que hipnotizados, nem piscavam contemplando a cena que se desenrolava diante dele, na via, o movimento das bicicletas, muitas bicicletas, pedaladas por meninos mais abastados que ele, indo e vindo, de lá pra cá, daqui pra lá, num contínuo vai e vem, quase como um bailado bem ensaiado. Quantas haviam? Dez? Vinte? Trinta? Mais? Elas pareciam se multiplicar numa escala geométrica. Os guris felizardos, que tinham o privilégio de possuí-las pouco se importavam com aquele momento mágico. Conduziam o veículo de duas rodas velozmente num perímetro curto, faziam a curva e passavam uns pelos outros como se fossem etéreos, surreais.

A bicicleta, o símbolo de uma felicidade quimérica. A bicicleta do primeiro amor, como chamavam. A bicicleta da novela. Aquela novela onde o ator fora sepultado achando que estava morto. A bicicleta que o menino nunca ia poder ter. Nem a bicicleta, nem o primeiro amor.

O coitado não entendia se não ia ter o tão almejado objeto de desejo porque era pobre ou porque não se importavam com seus sonhos, pra ele dava no mesmo. Que idade tinha aquela criança? Pouca para saber como um filho era gerado e o bastante para se dar conta que era infeliz.

Vivia com seus pais, com a avó - mãe de sua mãe - e dois irmãozinhos menores no térreo de um sobradinho.

O petiz tinha seus idílios, crescer, estudar, casar (podia ser com a filha do senhorio, ela era bem bonita) e ter filhos. Mas ele não queria ser como seu pai. Ele não queria ser como nenhum pai, pois todos, a seus olhos, eram coléricos e brutais. Ele seria o tipo de pai que chega em casa e trás doces e figurinhas, compra revistas do Fantasma e do Recruta Zero para seus filhos. O pai que brinca com seus rebentos e na data do aniversário dá uma bicicleta de presente. A bicicleta da novela. A bicicleta do primeiro amor.  

Ali, apoiado no muro branco, o menino divagava fitando o trafegar onírico daqueles veículos na tarde que morria e esqueceu-se da hora. Uma a uma as bicicletas iam sumindo. Quantas agora? Quinze? Oito? Cinco? Nenhuma mais. O garoto passara a tarde na casa de sua tia, que era bem próxima da sua. Era bom? Ele não discernia. Gostava de brincar, um momento de não se sentir tão sozinho, mas os primos as vezes o hostilizavam, principalmente o mais velho; dizia que ele era feio, que era burro, que era baixinho. As primas também, poucos meses mais velhas que ele, o induziam a fazer coisas proibidas, queriam beijar na boca e levantavam as saias e pediam para ele colocar a mão por dentro das calcinhas. Era uma sensação muito boa, ele não entendia porque mas gostava de estar com elas no escuro, atrás das portas. Entretanto sabia por intuição que aquilo era condenável e seria severamente punido caso fosse descoberto pelos adultos. 

Foi tirado de seus devaneios pela voz da avó, a mãe  do seu pai, alertando-o que era tarde e que ele deveria ir para casa. Antes porém, pediu-lhe que fosse pegar uma toalha no banheiro pra sei lá o quê. Distraidamente se encaminhou ainda sob os eflúvios das bicicletas e primas sacanas. Abriu a porta e, surpresa, flagrou a tia tomando banho. Foi um lapso de segundo que pareceu durar uma eternidade. Envergonhado, tão rápido como foi o ato de abrir, ele fechou a porta com um pedido de desculpas.

Falou para a senhora que solicitara a toalha que a tia ocupava o banheiro e encaminhou-se à saída, não sem antes ouvir as imprecações da tia chamando-o de sem vergonha, confirmando o que no íntimo ele já suspeitava:  ela dava a sentença condenatória: "vou falar para o seu pai!!!"

Qual fora seu crime? Abrir por acidente a porta de um banheiro e divisar por um rápido instante um corpo miúdo que, salvo por um tufo triangular de pelos no meio das pernas em nada diferia do de suas primas. Não fora de propósito, claro, mas para o pai severo e carrasco era motivo mais que suficiente para impingir-lhe um castigo muito superior à sua idade e peso.

O corpo do menino chegou em casa, sua alma porém debatia-se no desespero, antevendo o inferno onde estava para ser mergulhada. 

Não teve coragem para narrar o ocorrido à mãe ou à avó, seria inútil; como das outras vezes, ninguém poderia interceder por ele. Novamente seu genitor viria para cima dele como aquele rolo compressor que esmagara um gato na rua que estava sendo asfaltada perto da igreja.

O infante não nutria simpatia pelo pai. Temia-o na mesma proporção que o desprezava. Aquele homem era incapaz de um gesto de amor ou gentileza, vivia mau humorado, falando alto, sempre discutindo com as pessoas, fosse numa padaria, supermercado,  estacionamento, ele sempre caçava motivo para brigar com alguém. Era valente, isso não se podia negar, mas a criança não via isso como qualidade.

Certa vez, toda a família fora assistir ao Holiday On Ice - algo raro - e ao término do espetáculo o pai pegou o primeiro táxi que viu parado. O motorista foi logo avisando que aquela hora ele só fazia lotação, ou seja, cobraria um valor alto por cada passageiro, incluindo crianças. Não fazendo caso, o pai deu o endereço e pediu que dirigisse. Com o veículo em movimento o taxista reiterou que cobraria o valor de lotação. Teve início uma discussão que atingiu um absurdo numero de decibéis. No banco de trás, o menino, seu irmãozinho menor, sua mãe (que pedia ao marido para parar o carro e pegarem outro), a avó com o bebê de colo e o primo calhorda. Imprecações, ameaças. O carro em velocidade e o motorista gritando e olhando para os ocupantes no banco traseiro, parecendo querer matar a todos. Em resumo, a polícia teve que intervir e no fim todos voltaram para casa de ônibus. Casos semelhantes eram comuns na vida daquela pobre família.

O menino não quis jantar, seria como a refeição de um condenado. Entretanto aquilo podia dar em nada. Era como roleta russa com bala de festim. Certa vez ele saiu para comprar açúcar e perdeu o dinheiro no caminho, ficou o dia inteiro esperando levar uma surra e o pai, ao chegar, nem fez caso. Outras vezes, por algo de menor importância fora espancado como o pior dos criminosos. Não tinha como antecipar o que ia acontecer e como sempre a expectativa era pior do que o castigo propriamente dito.

A mãe e a avó nada podiam fazer por ele, morriam de medo do chefe da casa.  Elas estavam vendo novela na tv, a novela da bicicleta e do ator que fora enterrado vivo. O irmãozinho brincava no chão, o bebê dormia. Ele sofrendo de expectação dentro do quarto, no escuro, sozinho como sempre fora.

Ele sabia que o progenitor sempre passava na residência do irmão antes de vir para casa pra jogar uma conversa fora, ele clamava aos céus para que não fosse assim dessa vez, ou que lá, eles esquecessem o fato, ou ainda, que seu pai intuísse que ele jamais invadiria o banheiro com alguém dentro por pura malícia.

Esperança vã. Ouviu a porta da sala se abrir e a voz do carrasco a indagar por ele, aquela voz que parecia brotar das trevas admoestando que ninguém interferisse, que o menino precisava ser corrigido.

A porta se abriu. A luza acendeu. Todos os temores do petiz se confirmaram. O pórtico atrás do homem se fechou encerrando lá fora todas as esperanças.

O pai era um indivíduo de baixa estatura mas de compleição taurina, com cabelos escuros penteados cuidadosamente com brilhantina. Tinha olhos verdes magnéticos que a tudo e a todos fuzilavam. 

O menino só viu o pai, tudo o mais pareceu deixar de existir, as paredes, o teto, a porta, os móveis, tudo sumiu, restando apenas ele e aquele sujeito imenso que se agigantava diante dele a medida que sorvia o ar de forma ruidosa e exalava ódio, fúria. "O que você fez hoje na casa da sua tia, moleque?" Não teve tempo de responder, uma bofetada estourou em algum ponto de sua cabeça. Ele não saberia dizer se caiu pois com incrível rapidez, mãos rudes o  agarraram pelo pescoço como se fossem tornos e o sacudiram com violência. "Você gosta de espiar os outros tomando banho? GOSTA? Responde moleque!!!" 

O braço cabeludo desceu raivoso. Ele não discernia dor, só o pânico que o mantinha travado, incapaz de falar, mover e até chorar. "RESPONDA MOLEQUE!!!!" A carantonha do verdugo com os olhos verdes faiscantes, os dentes mordendo a língua dobrada, ocupavam todo o seu campo de visão, preenchiam todo aquele aposento que parecia não existir. Quis responder mas a voz não saía, tinha sido manietada dentro dele. Um potente tapa no rosto o fez sentir dor, mas não a dor física como uma martelada no dedo ou topada numa pedra, não, havia nela o ingrediente da humilhação, algo venenoso que paralisava a vontade de viver. 

Neste momento alguém batia na porta. A voz da mãe anunciando que havia uma pessoa no portão querendo falar.

"Não acabamos ainda, Eu vou te ensinar a ter respeito com as pessoas da minha família. Não saia daqui!"

O tirano saiu advertindo à esposa e à sogra que ninguém deveria falar com o menino e quando ele ditava, ele era obedecido. Todos o temiam com tremor sobrenatural.

O infante ficou lá, sentindo tudo e sentindo nada, As dores, frutos da brutalidade, afligia sua carne tenra, mas as emoções que envolviam sua alma o tornavam alheio ao ambiente, que agora assumia de novo a aparência de um quarto. A humilhação sofrida suplantava a pungência, tornava-o menor que o mais repelente inseto.

Então, uma estranha sensação, uma espécie de vazio, não só a essência desguarnecida, mas algo concreto, físico, como se não houvesse ar suficiente no aposento, um formigamento na planta dos pés, um frio nauseante a abraçar-lhe o corpo.

O menino  inseto envolveu-se num pesado cobertor. Ia passar. Tudo na vida passava, dizia a mãe de sua mãe. Logo o pai voltaria para castiga-lo de novo, mas agora não havia medo. Ia passar rápido. Até que por algum outro motivo tudo recomeçasse, mas também passaria e assim eram os ciclos da vida. Este pensamento o confortou. Ficou ali no escuro, suando frio, caindo num buraco espiralado, sem fundo. Pensou então na bicicleta que jamais teria, nela, ele pedalava velozmente contra o vento, rumo à liberdade.

Lá fora o pai conseguia se livrar do chato que viera aborrece-lo com conversa fiada. Porra, fora mais um dia de merda na repartição. Todos aqueles papeis, os rostos vazios das pessoas, os sorrisos falsos, o som insuportável, perpétuo e onipresente das teclas das máquinas de datilografar. Em casa, toda a mediocridade de sua vida a cuspir-lhe no rosto e ainda por cima a idiota da sua cunhada vinha lhe encher o saco queixando-se do seu filho. Ah era demais! Aquele fedelho ia pagar caro, ah, se ia!  

Passou pela sala, as fisionomias reprovadoras da esposa e sogra mais o choro do bebê aumentaram sua cólera.

Abriu a porta, ligou a luz, viu o menino enrolado nas cobertas. "Levanta, seu cão! Vou te ensinar a se comportar nas casas dos outros!" Dizendo isso, o bruto desceu a manzorra nas costas do garoto. Não sentindo reação, bateu novamente redobrando a força. Furibundo com a passividade, puxou o cobertor. O guri encontrava-se em posição fetal, abraçado às pernas. Estava gelado. O homem sacudiu o corpo. NADA! Tomou--lhe o pulso: estava morto.


 







4 comentários:

  1. Caramba!!! Que conto! Viajei, lembrei um pouco minha infância! Só que meu pai não era tão bruto assim!!! Afff

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    1. Obrigado por seu comentário, Josean.
      Tava numa baita depressão certo dia (pra variar), lembrando de alguns acontecimentos ocorridos comigo nos idos de 72, 73 - por aí - e me veio a ideia para o conto. O papo sobre o ator da novela realmente rolou na época. Sinistro!
      Grande abraço!

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  2. Respostas
    1. Se você se chocou então atingi meu objetivo no alvo, Anderson.
      Ao pensar sobre esse conto me lembrei do infeliz do Graciliano Ramos que também morria de medo do pai.
      Obrigado pela visita!

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