Como um alimento de tempero estranho, difícil de descrever, algo entre o ácido e o amargo, foram aqueles primeiros anos da década de 90 em São Paulo. Minha cidade natal sempre teve esse efeito sobre mim, um passeio de algumas semanas ela me parece aprazível, mas se vou residir, meu espírito começa se debater dentro de mim como se esmurrasse as paredes de uma cela para lunáticos. Não havia emprego ou amigos frequentes, minha arte não estava perfeitamente calibrada, eu ainda me descobria, além do mais fervilhavam as paixões em meu interior, uma esperança absurda de encontrar a felicidade quimérica nos braços de uma mulher idealizada. Acima de tudo uma grande saudade dos horizontes de Brasília.
Meus cabelos longos chegavam pelo meio das minhas costas.
Uma pessoa que muito se integrou à minha família foi o Alvarado, sempre eu ia a casa dele e ele na nossa. Minha mãe preparava os alimentos que ele podia comer pois era diabético. Ele tinha certa cultura, mas os casos que ele contava soavam bastante fantásticos para serem verdadeiros, eu sempre fui um crédulo total, se alguém me aparecesse dizendo que tinha visto uma vaca voando sobre os céus da cidade eu acreditava, afinal, que motivos alguém teria para mentir? No entanto era do meu conhecimento que a pessoas mentem por dois motivos (no meu entender, é claro):
1 - para prejudicar outrem.
2 - para se defender.
No segundo caso, conheci uma infinidade de pessoas que diziam grandes absurdos para se sentirem admirados, integrados, com informações que só eles possuíam, como um cara que dizia que o pai dele tinha assistido a um show dos Beatles no Maracanã na década de 70, ou aquele que afirmava que o Arnold Schwarzenegger além de campeão Mister Olympia foi também ídolo do volei pela liga americana.
Minha filha tinha uma amiga de 15 anos que narrava absurdos na primeira pessoa, como da vez que saltou de paraquedas e pousou dentro de um caminhão do exército. Essas bobeiras nos fazem rir e são inofensivas, elas querem se sentir admiradas. Meu pai tinha um primo que se dizia empresário de grandes estrelas da música nordestina, como Luiz Gonzaga e contava muitos causos. No que diz respeito ao Alvarado eu estava inclinado a dar crédito embora muita coisa me soasse impossível.
Certa noite ele recebeu em casa vários conhecidos e preparou um lanche para exibir uma cópia de sua animação sobre lendas amazônicas num velho projetor que a todo instante mastigava o celuloide. O desenho todo em preto e branco era bom e ele se gabava de ser o primeiro artista a realizar sozinho a empreitada. Mais de cinco anos na animação. Como disse na parte 1 desta postagem, não há referencia sobre isto na web. O que consta é a Sinfonia Amazônica da autoria do Anélio Latini Filho. O que temos aqui? Uma grande injustiça? Ou um desvario de Alvarado?
Minha avó contava que um grande sucesso sertanejo na voz de uma dupla famosa foi roubado de um conhecido dela. Não dei crédito até saber que muitos sucessos mundo afora foram comprados de autores desconhecidos, isso quando o plágio não era na cara dura, como fez o Led Zeppelin roubando bluesman obscuro de décadas passadas.
Certa vez, Alvarado inventou de fazer uma viagem ao Rio de Janeiro com seus dois filhos adolescentes e me me convenceu a ir junto. Eu topei pois queria ver minha filha. Aqueles eram os anos MTV e as rádios tocavam a exaustão Guns n Roses, Red Hot Chilly Peppers e For Non Blonds. Cito isso pelo que era ouvido no carro. O percurso de Sampa à Cidade Maravilhosa foi agradável. O filho mais velho de Alvarado se chamava Paulo e era bastante vivaz e simpático. Não sei se ele queria fazer média comigo mas ele dizia que as mulheres me observavam de forma discreta. Nunca notei isso e duvidava lá no meu íntimo. Eu? Chamando a atenção de alguém? Nah! Mas talvez fosse verdade pois passei a prestar um pouco atenção e via meninas olhando para ele de esguelha. Talvez ocorresse o mesmo comigo.
O motivo da tal viagem era um almoço que ocorreria no Clube Militar para angariar fundos para alguma coisa a ver com a preservação da floresta amazônica. O almoço foi legal. Eu fui anunciado no evento como sendo um artista importante. Fui até aplaudido. Era pra rir. Quando me apresentaram aos convivas disseram que eu era "decorador", hahahahahhahahah! Uma coisa que não dá pra esquecer era uma bela mulher que estava lá, saia colada num senhor corpo de curvas perigosas e imensa bunda, chamou a minha atenção não só pelo físico mas por seus hábitos pouco educados como passar a língua pelas gengivas depois da refeição e puxar a calcinha do traseiro como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Estava um clima bom no Rio, nada daquele calor típico. Na mesma tarde fomos visitar uma prima do Alvarado que fora casada com um grande pintor amazonense. Eu julguei que fosse ver paisagens típicas exibidas em feiras de artesanato, mas me deparei com verdadeiras maravilhas dos melhores museus. O falecido artista era um mestre das tintas. A casa era inteiramente adornada de quadros de todas as dimensões. Boa parte dos motivos eram naturezas mortas e paisagens do norte do país.
Fomos ainda a uma reunião com militares e outros artistas. Não sei o que foi tratado, ou não lembro mais, mas me recordo de um casal idoso que foi com a minha cara e me convidou à casa deles, ali eu me despedia do Alvarado e seus filhos, naquele fim de tarde eu iria ver a Samanta.
Assim que Alvarado voltou para São Paulo o tal casal me perguntou: Afinal o que um jovem como você faz ao lado de um canalha como o Alvarado? Não soube o que responder. Lembre-se, dizia o velho, se você fica muito tempo perto da bosta vai ficar cheirando a merda. Eu falei que não tinha nada contra o cara e que ele sempre foi um bom amigo. Amigo? Riram eles, o tempo vai te dizer o tipo de amigo que ele é. Ele te disse que é verbete de enciclopédia? Meu pai também é. E me mostraram um volume da Barsa onde havia um nome escrito e as obras de pintura primitiva que alguém tinha feito. Isto é o meu pai, um grande pintor, não uma farsa como esse Alvarado. O velho era amargo como a bile de um peixe, falava mal de tudo e todos. Se dizia quiroprático treinado pelos lamas do Tibete e premiado em Milão. Me constrangeu a deitar numa maca e apertou minhas costas fazendo estalar minhas vértebras. Ô sensação boa! Me despedi deles e me direcionei ao subúrbio da cidade.
Tempos depois estava eu de volta a São Paulo.
Não lembro bem como se deu, mas o Osmário voltou de sua jornada pelo Rio Amazonas em uma caravela. Nessa época eu trabalhava com meus irmãos em uma banca de jornal na Avenida São João. A filha bonita dele sempre a tiracolo. A primeira coisa que ele perguntou foi sobre o manuscrito que ele havia deixado comigo (ver a primeira parte desta postagem) para eu ilustrar. Morto de vergonha eu disse que não havia feito nada. Aleguei falta de tempo, bloqueio criativo mas o cara não era estúpido, ficou claro meu desinteresse e ele não me polpou. Uma pena, disse o homem, você tem talento e cultura de sobra pra terminar seus dias numa banquinha de revistas. Onde está meu material? Procurei e devolvi a ele muito sem graça. Ele sempre vinha em casa, a antipatia que meu pai nutria por ele era indisfarçável. Ele dizia para nós: pra mim, essa tal de Taty não é filha dele porra nenhuma, é amante dele, isso sim! Fazia muito sentido. Alvarado veio com a conversa que Osmário queria casá-lo com Taty, mas duvidamos que fosse verdade.
Uma nova viagem surgiu, desta vez para Brasília. Alvarado estava decidido a fundar um museu da amazônia no Planalto Central com o apoio do deputado e da Taty. Tinham até o terreno para isto. Fui convidado para mais esta jornada de carro e como eu sonhava em rever Brasília e meu irmão Gil que lá ficara, não pensei duas vezes. Esta seria mais longa e por companhia teríamos a filha mais nova dele. Saímos cedo de casa, eu ia na frente com o Alvarado e a menina deitada no banco de trás ouvindo música. Cansados, quase na divisa de Minas Gerais, comemos alguma coisa num posto de gasolina e então o amazonense falou que ia entrar em estado alfa. Que porra é essa? perguntei eu. Vou dormir por 10 minutos como se repousasse por oito horas. Serio? Sim, afirmou.
Ele se fechou no carro com a menina e roncou. Eu tinha nas mãos o livro O Nome Da Rosa e fiquei lendo. Os 10 minutos do cara duraram toda a noite. Por essas e outras era difícil acreditar nele. Não tive coragem de bater no vidro do carro para acordá-los. Fiquei numa mesa em frente a um boteco do posto lendo à luz de um poste. Imensos besouros negros, pesadões, voavam por cima da minha cabeça.
Notei um carro que já manobrava ali perto e buzinava, mas não atinei que queriam falar comigo. Quando notei, achei que queriam alguma informação. Me aproximei e estava cheio de umas garotas risonhas. Uma delas, uma gordinha no volante foi direto ao ponto: Moramos em Avaré, perto daqui, não quer dormir juntinho comigo? Agradeci ao convite mas declinei. Insistiram: Ah, vai, só umas horinhas, prometo que te trago antes do seu amigo acordar. Sorri e virei as costas com os sons de beijinhos atrás de mim.
Continuei minha leitura, sempre me desviando dos besouros que davam rasantes na minha cabeça e com minha atenção quebrada pelos caminhões que hora a hora paravam por ali.
Quando deu seis horas da manhã, Alvarado acordou se espreguiçando, levantando as calças que quase caíam e caminhando meio de viés até a lanchonete. Comemos e seguimos viagem. Chegando em Brasília me livrei dele assim que pude. Tive motivos para isso. Foi uma viagem pouco agradável, o cara dizia uma coisa e fazia outra. Minha mãe sempre dizia que para conhecermos bem uma pessoa temos que comer um quilo de sal com ela. Ali, bastou um percurso de São Paulo até o Planalto Central. Liguei para um amigo quando paramos para abastecer na Asa Sul para ele vir me pegar. Marquei de encontrar Alvarado dali a dois dias para voltar a Sampa.
Naquela época eu possuía apenas umas páginas prontas de alguns quadrinhos. Zé Gatão nascia e eu só tinha duas histórias curtas que hoje não existem mais, muito mal desenhadas, por sinal, e eu as trazia num grande envelope para mostrar aos conhecidos.
Vou pular a parte alegre de reencontrar meu irmão e alguns amigos, meu texto hoje não é sobre isso.
A convite do Gil, fiquei mais tempo do que era planejado em Brasília, liguei ao Alvarado e o desincumbi da missão de me levar de volta. Sequer vi o tal terreno do museu.
Voltei à Cidade da Garoa depois das festas de fim de ano. Já não lembro mais como o Osmário sumiu de nossas vidas. Pesquisando na net, sei que ele já é falecido e recebeu honrarias na Câmara dos Deputados.
Vi pouco o Alvarado após esses eventos. Num almoço onde ele reuniu uns irmãos dele vindo de Manaus ele nos contou como foi sua experiência de quase morte que lhe custou um dedo de uma das mãos. Diabetes altíssimo, trombose, coma. E um ET veio até ele e disse para não se preocupar, que ele viveria até bem depois de 2000 e alguma coisa, acho que 2011 - não estou certo.
Nesse meio tempo conheci a Verônica, perdemos um grande amigo e artista de quadrinhos chamado João Pacheco.
Soube de uma tragédia envolvendo Alvarado. Um amigo de seu filho, brincando de roleta russa estourou os miolos no telhado da residencia dele.
Não muito depois ele veio em casa, com ar cansado, conversamos, rimos, meu pai sempre muito direto com ele: qual a mentira dessa vez, Alvarado? Ficou combinado dele vir almoçar um vatapá com a gente na segunda feira próxima. No horário marcado uma batida na porta. Ele chegou, disse minha mãe. Fui atender. Era o Paulo, seu filho, informando que o Alvarado havia morrido. Ataque cardíaco fulminante. Perplexos, perguntamos quando seria o enterro; havia sido no domingo, dia anterior. Ele se desculpava por não nos procurar antes. Eu falei que não sabia o que dizer, o rapaz, tampouco.
É isto.
Eu encerro este texto concluindo que aquele ET era um grande mentiroso.
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Que odisseia, hein?!
ResponderExcluirPor falar em mentiras... lembro que lá por 1994, o irmão de um colega de classe (que também era vizinho) me contou um sobre um tio dele que bateu até matar uma criatura que só urrava e que tinha o rosto desfigurado, acho que perto de um cemitério.
Um parente meu contava tantas mentiras que, num certo dia, ao falar que viu um gibi dos X-Men com os Novos Titãs achei que não fosse verdade... e era, porque vi numa banca. Há anos, tenho um exemplar da republicação que saiu em Grandes Encontros Marvel & DC. Antes disso, eu não sabia o que era crossover. Hehe!!
Pois é, caro Anderson, a gente ouve tanta coisa incrível que não sabe no que acreditar. Umas são até verdade. Por exemplo, vai saber se o cara que bateu na criatura no cemitério não era real? Sobre Marvel x DC já tinha muita coisa antes disso, Superman e Spiderman, Hulk e Batman...e por aí vai.
ExcluirQue aventura,esse Alvarado é um puta "personagem".
ResponderExcluirNão é? Se fosse inventado diriam que é exagero meu. E eu nem pude dar detalhes de certas situações constrangedoras, como, por exemplo, a agressividade dele em cima de um irmão que ele tinha, com problemas de bócio.
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