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domingo, 22 de agosto de 2021

UM PASSO PRA FRENTE E DOIS PARA TRÁS.

 

O calor dá sinais de retorno após um breve tempo de frio, algo bem incomum nesta região do país. Eu aproveitei cada segundo, dormi até com algumas cobertas, vejam só!  Mas a quentura sempre incômoda já acena no horizonte, nada há que possa impedir aqueles momentos de enfado, suor abundante e noites mal dormidas. Mas como nos recomenda o livro sagrado, por tudo temos de dar graças. 

Antes eu tinha sonhos de sair daqui, ir para outro lugar, um lugar que fosse bem tranquilo e mais frio (notem bem, falo de frio suportável, ok?), meu objetivo sempre foi voltar para Brasília, mas hoje não mais, eu e a cidade dos meus encantos nos divorciamos de vez, tudo, claro, porque mamãe e Gil não mais estão entre nós, eles sempre fizeram parte daquele lugar. A perda me afetou de tal forma que não tenho mais como recuperar o antigo eu, o Eduardo Schloesser que existia até o início de fevereiro deste ano se foi para sempre, o de hoje vive e respira mas não passa de uma cópia mal feita do outro. Estou tentando me recompor, me reconstruir para continuar a passar pela vida, trabalhando (e trabalhando duro, como podem ver pelas artes neste post) afim de obter o teto e comida na mesa, mas sem sonhos. Não haverão mais aventuras do Zé Gatão. Tenho material suficiente do felino para mais uns três álbuns (se conseguir publicá-los), mas é tudo coisa antiga, inédita, mas antiga. Parecia até que eu antevia que SIROCO seria mesmo a última saga e foi concluída em fins de 2020. 

Não quer dizer que não vá mais criar quadrinhos autorais, tenho roteiros prontos há muito tempo e a ideia era corporificá-los aos poucos como sempre fiz, mas agora é uma incógnita, no presente instante não há a menor vontade para isto. Histórias eu tenho para contar, mas não sei se vale a pena, é tudo muito difícil de realizar, antes eu me dava por satisfeito só em ver o projeto pronto, finalizado, eu dividia este prazer com mamãe e Gil, agora é como se eu tivesse apenas o vento ao meu redor. Claro, tenho ainda o André e o Rodrigo, mas este meu mundo não é o deles - não os critico de forma alguma, eles tem suas dores e lutas para enfrentar - simplesmente minha arte era algo entre nós três, principalmente o Gil, com quem eu confabulava sobre minhas criações e ambições. Nesse ponto fiquei definitivamente só e devo arcar com o peso. 

Hoje me torturei revendo as últimas mensagens escritas por ele enquanto esteve internado no Hospital de Base de Brasília, antes de ser entubado. Me lembrei do choro inconsolável do André ao telefone na fatídica noite do dia 20 de Abril, da minha caminhada pelas ruas escuras do meu bairro tentando sorver oxigênio e sentindo o vazio que teimava me abarcar por todos os lados. Recordei as palavras do Rodrigo dias depois: "Estou muito triste, vou chutar a bola pra frente e correr atrás dela com lágrimas nos olhos".  Isso tudo ainda sob os efeitos da despedida da nossa genitora. 

Phobos e Deimos veio a público depois de ficar engavetado por 15 anos, veio no momento certo e é incrível como as histórias retratam tudo o que sinto hoje. 

Sigo em frente, com a ajuda de Deus, até o dia do reencontro.

Minha saúde anda ok. Sinto uma dor de cabeça constante ultimamente, não forte, mas onipresente. Há um dente precisando de extração e eu ainda não cuidei disso. Não posso ficar à base de analgésicos. Vou tentar providenciar a tortura esta semana.

Fiz exames e segundo meu irmão médico minhas taxas estão muito boas, nada de colesterol alto ou diabetes mas me sinto ofegante quando subo escadas muito rápido, não faço exercícios desde o início deste maldito ano, tenho que recomeçar.

Minhas reservas de grana estão no fim, porém ainda sigo trabalhando, o pagamento por uma das duas HQs que realizo atualmente foi realizado pelo roteirista antecipadamente.

Para fugir um pouco da realidade tenho visto uns filmes e séries, além de ler, claro. Mas isto é matéria para a próxima postagem.

Até lá, se Deus quiser.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

UMA HISTÓRIA REAL OCORRIDA NA PRIMEIRA METADE DOS ANOS 90.

 Zac torceu o nariz ao som da campainha. Não havia ninguém em casa e ele pensou que poderia dormir tranquilamente. Devia ser quase duas da tarde e um bom cochilo depois do almoço era tudo o que ele achava merecer depois de passar a madrugada trabalhando. Bom, pensando direito, merecia porra nenhuma, afinal, ser sustentado por pai e mãe com mais de 30 anos chegava a ser infame. Ao ser cobrado por não ser independente, ele respondia que não fora ele que escolheu a profissão e sim que fora escolhido por ela. E a profissão que o escolhera não lhe oferecia meios de ganhar dinheiro e ter sua própria vida.

Falávamos da campainha. Ela insistia. "Merda, quem será?" Fazia frio, aquele frio que só era possível numa cidade como São Paulo, aquele clima que deixa a cama gelada como se jogassem um balde d´água em cima, mesmo assim ele estava nu sob as cobertas grossas. Mas voltemos à campainha, ele levantou-se, colocou a cueca, uma bermuda e foi atender. Era o Fat. Só podia ser, quem poderia ser mais inconveniente? Quem falava tão alto não importando onde estivesse? Quem poderia encher mais o saco senão o Fat, com aquele topete à la Elvis e cara de menino chorão? 

Fat era desenhista. Zac também era. Só que o Fat ganhava uma grana ilustrando algumas revistas da Editora Abril. Zac não ganhava quase nada com desenho.

- Fala, meu, cuméquitá? indagou o visitante com sua voz que parecia de um desenho animado. 

- Tô indo.

Zac não convidou o Fat para entrar mas ele entrou assim mesmo. Sentou se no sofá  e se espalhou.

- E aí, tá pronto?

- Pronto pra quê?

- Ué, pra ir no HQ Mix.

- Ah, eu não vou pro HQ Mix.

- Não acredito!

- Olha, Fat, não tenho mais saco pra esse tipo de coisa.

- Que foi Zac, tá com dor de cotovelo porque o seu livro não faturou nenhum prêmio? 

- Não é nada disso.

- Fala a verdade.

- Tá legal, eu fiquei puto no começo, afinal, se eu tivesse perdido para um cara bom, mas aquela bosta que escolheram? Mas na boa, não é por isso não, tenho consciência que meus quadrinhos são melhores que os daqueles caras. Não fui escolhido em nenhuma categoria, fazer o quê?

- Bem, então vamos lá, temos que prestigiar.

- Não suporto mais isso, sabe, ir em lançamento de gibi de tal autor, entrega de prêmios....me sinto como peixe fora d´água, totalmente deslocado.

- Eu não dou a mínima, sabe, eu...

- Aqueles caras, meu, vão lá receber o seus prêmios, se sentem como se estivessem na festa do Oscar, se achando os tais, depois formam suas panelinhas e ficam conversando merda sobre quem é mais legal, o Aquaman ou o Namor, ou os cartunistas dos jornais discutindo política como  se fizessem qualquer diferença. Francamente cansei de tentar me enturmar com esses nerds com suas namoradinhas, se exibindo como babuínos, disputando quem tem o cu mais vermelho. Cansei, cara, cansei mesmo!

- Rapaz, como cê tá azedo!

- Bem, eu não poderia ir mesmo que eu tivesse afim, tenho que resolver um negócio para o meu pai, logo mais a noite, um negócio chato pacas!

- Bem, é uma pena, vai tá lá aquele italiano que desenha o Ken Parker.

Zac já conhecia o italiano, na verdade tinha até um álbum autografado, o artista, inclusive, escreveu seu nome errado na dedicatória, então, para que ir lá ver o cara em mais um momento de glória? Ele já devia estar com o saco dolorido de tanto ser puxado. 

- Então, tem feito coisa nova?

O Fat era assim, só trabalhava se lhe encomendassem as artes, Zac não, ele desenhava porque precisava, para extravasar sua frustração frente à vida. E o Fat sempre queria ver as novidades.

- Bem, tenho algumas pinturas a óleo e algumas páginas de uma HQ que estava lutando para sair da minha cabeça.

E Zac mostrou suas artes novas com dissimulada indiferença.

- Puta merda! Esse tá do caralho! Era assim que o Fat se expressava.

- Tão bom quanto o Bóris!

Era nesses momentos que o trabalho de Zac valia a pena, quando caras como o Fat reconheciam seu talento, não que isso fizesse diferença, ele continuaria a ser um zé ninguém neste disputado nicho, mas o Fat era um cara com discernimento, sabia ver algo de valor.

- Tá melhor que o Frazetta!!!

Claro que não chegava a tanto, mas só ali seu talento era reconhecido. Todo artista gosta de ter o ego massageado e Zac não era imune a isso. Era a razão pela qual ele aturava o Fat e alguns outros pernósticos iguais a ele, que não economizavam elogios.

Depois de muita conversa mole sobre editores picaretas e a luta que era receber uma grana por um trabalho entregue no prazo o Fat foi embora deixando no ar um clima de depressão.

O ar estava gelado e Zac queria fechar os olhos, dormir e se apartar da vida. Tirou a roupa e se enfiou debaixo das cobertas que estavam geladas como uma mortalha. Leva tempo até o calor do corpo irradiar pelos tecidos. Enquanto isso acontecia o sono do esquecimento avizinhava-se timidamente. Foi aí que o telefone tocou. Pôs a cueca, a bermuda e foi atender.

- Alô?

- É com você mesmo que eu queria falar.

- Quem é?

- Aaaah, como é gostoso! Era uma voz feminina, rouca e sensual, ofegante.

- Quem está falando?

- Sua voz é bonita, é grave, máscula. Aposto que você sabe chupar uma buceta como ninguém.

- Faço o que posso.

- Você gosta? 

- Do quê?

- Chupar buceta.

- Se estiver bem lavada...

 - A minha tá toda molhada

- Escuta, isso é alguma brincadeira?

- Não, escolhi este número ao acaso na lista telefônica. Disquei o número e fechei a lista, quando eu desligar não saberei qual é, faço isso sempre.

- Porque você não me dá seu número?

- Não, assim não tem graça. Vai, fala.

- Falar o quê?

- Que gosta da minha bunda, que ela é grande...

- Tua bunda é enorme, suculenta!

- Aaah, que gostoso! Tá de pau duro?

- Pode apostar a vida do teu cachorro.

- Como sabe que eu tenho cachorro?

- Intuição. Não vai me dizer seu nome?

- Não, nada de nomes, sua voz me dá tesão. Tô me masturbando, você está? 

- Não.

- Aposto que teu pau é grande e que gostaria de arregaçar a minha bunda e meter no meu cu. 

- Nem me fale, escute, porque você....

- Fala, fala mais que eu tô quase gozando...

- Você é uma cadela gostosa, uma puta safada....

- Aaaaahhhh...

- Tô te lambendo todinha...

- Aaaahhhh....

Em seguida ela desligou o telefone.  Zac lamentou não ter bina. Número escolhido ao acaso, só com ele mesmo, acertar a mega sena que seria bom de verdade, nada! 

O cansaço e o sono eram maiores que a excitação. Estava quase adormecendo quando ouviu o tilintar das chaves na porta da sala, em seguida o som de sua mãe entrando com as compras. Desistiu de dormir. Levantou, ajudou sua genitora com as sacolas. Ia tomar um banho para sair quando ouviu o telefone tocar, apressou-se em atender achando que poderia ser a mulher da voz rouca de novo. Não era, e sim a fala de seu pai lembrando-lhe da tarefa que tinha para executar.

O banho foi demorado. Ducha quente no clima frio era assim, como bálsamo, você abraça o próprio corpo e fica debaixo do chuveiro como que lavando da alma tudo que julga impuro. Quisera fosse assim tão fácil.

Zac cultivava um cabelo longo que lhe chegava pelo meio das costas. Aparou o cavanhaque, vestiu a camisa, seu jeans surrado e um casaco de lã verde escuro, tênis. Se perfumou e foi até o armário do pai, de lá tirou uma grossa e pesada corrente de ouro, cafona toda a vida, digna de um bicheiro  Colocou no bolso interno da blusa. Beijou a mãe e saiu.

O corredor estava escuro, ao dobrar a direita em direção às escadas as luzes se acenderam automaticamente. O elevador chegou, dentro estava uma uma gorda baixinha, muito bonita de rosto que morava no quinto andar. Tinha uns quadris e bunda paquidérmicos, totalmente desproporcionais ao seu tamanho.

- Uau! Como vai o meu fortão?

- Tô bem, e você?

- Endividada, tem dinheiro pra me dar?

- Quisera eu, também estou precisando.

- E outra coisa, você tem para me dar? Ela se aproximou de forma sedutora, o perfume era gostoso, os olhos muito bonitos.

- Eu teria, se você não fosse casada.

- É isso que gosto em você, um cavalheiro, respeitador. Não se encontra mais. Me diga que me quer eu eu peço o divórcio na hora.

Zac riu. Sabia que aquela mulher tinha um gênio de cão, o marido tinha medo dela. Ele jamais cairia nessa armadilha. 

- Um outro dia terminamos essa conversa, disse ela, saindo na frente dele, rebolando o colossal traseiro.

Um vento gélido, cadavérico, soprava naquela tarde. Morava no centro velho de São Paulo, no lugar que chamavam de cracolândia. Seu irmão que residia em Brasília dizia que o resto da família morava no dente cariado da boca do lixo, e era verdade. Ali se via de tudo: putas, drogados, travestis, traficantes, enfim, toda a escória possível de uma sociedade falida e degradada. Algum boêmio poderia encontrar ali, de forma romântica, matéria prima para alguma canção ou livro. Zac não via dessa forma; este foi o local que seu pai escolheu para residir depois de morar mais de 15 anos em uma bela super quadra no Planalto Central. Zac tinha três irmãos, um continuava na Capital Federal, lutando pela sobrevivência e era mais corajoso que ele, outro fritava os miolos na faculdade de medicina e era muito mais esforçado e o caçula, que devia estar com alguma garota naquele instante, era muito mais autêntico.

Zac era um fracassado, tinha mais de 30 anos e alimentava a ideia de fazer quadrinhos, pintar calendários como Norman Rockwell e ganhar dinheiro, muito dinheiro, para sair daquela vidinha ordinária, dar um bom apartamento para seus pais, produzir um disco com a voz de sua mãe - o grande sonho dela - ajudar os irmãos. Ele queria casar, ter filhos, viver longe da situação vexatória de ser pau mandado do pai. Mas só o que ele fazia era sonhar, por mais que tentasse melhorar suas técnicas artísticas e adentrar no metiê dos que conquistaram algum sucesso, para ele era como enxugar gelo, parecia sempre leva-lo a lugar algum.   

Quando criou um personagem e depois de sete anos conseguiu publicar seu primeiro álbum de quadrinhos, um jornalista da Folha de São Paulo entrou em contato querendo fazer uma matéria sobre a produção nacional. Marcaram um dia e hora e na ocasião foi recebido por um gordo de barba e cabelos longos que mais parecia membro de uma banda de metal rock.

- Gostei muito do seu livro, você é um cara corajoso.

- Obrigado.

- Achei interessante as reflexões do seu personagem sobre vida e morte.

- Bem, então acho que atingi meu objetivo.

- Com certeza.   

Estavam na cantina, no último andar do prédio onde funcionava o jornal, na Barão de Limeira, dali se via boa parte da cidade. Era uma tarde quente, sentaram em uma mesa, o barbudo tomava um refrigerante. 

O fato é que conversaram e conversaram um bom par de horas, falaram sobre Flávio Colin, Shimamoto e todos os mestres das antigas, as adversidades que as HQs tupiniquins enfrentavam por não existir um mercado sólido com produções regulares, boa distribuição e divulgação.

Por fim Zac foi embora satisfeito por mais esta divulgação. Semanas depois a tal matéria saiu na Ilustrada, duas páginas de texto e imagens e não havia uma única referência a seu nome, ao seu personagem ou ao seu livro, fora isso, todo o resto estava lá.

Foi tirado de seus pensamentos pela pessoa que iria encontrar, um amigo de seu pai conhecido como "Professor". Estava ali, parado, a espera, com um jornal dobrado debaixo do braço, o terno era surrado mas a barba branca era bem aparada. Era bebedor e fumava cigarros sem filtro.

- Como vai meu jovem?

- Bem, e o senhor?

Tomaram o metrô em direção ao Jabaquara. Fizeram baldeação na Paraíso em direção à Clínicas.

O cara falava e Zac não ouvia. Dava conselhos, mas a cabeça do rapaz estava em outro planeta, ele só prestou atenção na seguinte frase: 

- ...se não fosse a sabedoria do seu pai, você teria um filho com cada mulher com quem dormiu.

Eles se dirigiram à casa de uma mulher a quem chamaremos de "Poetiza". Zac achava que ela deveria ser alcunhada de "Agiota", pois era disso que se tratava, a mulher ia emprestar dinheiro ao pai de Zac a juros altos, a pulseira ia ficar de garantia e o Professor seria o intermediário da transação.  

Chegaram na casa da poetiza já noite. O apartamento dela mais parecia um museu, Zac apreciou; muitos quadros ornavam todas as paredes, alguns de excelência, muitos objetos bregas também, móveis coloniais, tapeçarias e toda tralha antiga possível. A tal mulher era uma velha bonitona que se vestia de forma extravagante, viúva de um oficial da marinha. Se julgava uma intelectual, tinha publicado diversos livros de poesia. Trajava um vestido azul colado no corpo com uma abertura nas pernas deixando entrever fartas coxas brancas.

Enquanto ela e o Professor conversavam sobre política, o rapaz lia algumas das poesias criadas pela mulher. Nada que se comparasse a Florbela Espanca ou Cecília Meirelles, claro, mas eram sonetos muito bons. Ele recusou bolachas e chá, queria ir para casa tocar seus desenhos, era a única coisa que lhe dava alguma satisfação.  

Deixou a pulseira, pegou o dinheiro e ele e o barbudo ganharam o metrô as 23 horas. Fazia um frio terrível. Ele saltou na estação Luz e o amigo de seu pai seguiu para Santana. Começou a garoar e o vento glacial parecia fúnebre.

Lembrou-se do HQ Mix, a premiação era importante, os criadores ótimas pessoas, mas todo o resto lhe enchia mortalmente o saco. Praticamente todo ano eram os mesmos premiados, nunca havia renovação. Talvez ele fosse mesmo invejoso e não admitia para si mesmo, mas todo aquele papo sobre Jim Lee,  MacFarlene, as artes pasteurizadas focando em heróis fantasiados, lhe embrulhavam o estômago. Os quadrinhos eram muito mais que isso, ele sabia, haviam roteiros geniais e desenhos interessantes, inclusive nos mangás, mas acabavam se perdendo no meio de tanto material medíocre criado por gente presunçosa. A arte, na maioria, careciam de identidade, não pareciam nascer das entranhas como as do Crumb, Moebius, Corben, Eisner ou Flávio Colin. Certamente a música e a literatura sofriam do mesmo mal. As artes estavam fixadas à regras, à um modus operandis que só visavam o lucro imediato. De dar nojo!

Estava decidido: ele ia mandar tudo à merda, esquecer os quadrinhos e coisas relacionadas, ia arrumar um emprego que lhe pagasse um salário fixo todo mês.

Subia a Rua Aurora, à sua frente, um travesti de quase dois metros, canelas finas e uma bunda desmedida que parecia querer estourar o micro vestido apertado, fez-lhe uma proposta sexual numa voz anasalada, ele fingiu  não ouvir e continuou seu caminho perdido em pensamentos até escutar o cantar de pneus ao seu lado e um carro enorme e escuro, de faróis apagados, lhe barrar a passagem. Numa fração de segundos ele entendeu a encrenca que estava por vir. Os homens da lei saltaram do veículo com artilharia pesada em punho.

- Mãos na parede, vagabundo!

O moço obedeceu tendo o cuidado de afastar bem as pernas e assim evitar que os PMs o chutassem por baixo. Foi apalpado nos tornozelos, saco, pernas e costelas, teve cócegas mas não sentiu vontade de rir.  

- Ele tá armado?

- Não.

- Drogas?

- Não.

O policial tirou-lhe a carteira do bolso traseiro e olhou sua identidade.

- Tá fazendo o que na rua a essa hora, cabeludo?

- Estou a caminho de casa.

- Trabalha?

- Sim.

- É sim senhor,

- Sim senhor.

- Faz o quê?

- Sou desenhista.

- Isso não é trabalho. Se ajoelha.

- Como é? Zac estava apavorado mas não ia permitir um abuso desses.

- Se ajoelha, ô cara!

O PM, um negro bem alto, deu lhe um soco de cima para baixo no ombro, pesava como um saco de cimento, mas ele não se dobrou.

- Ajoelha!!! A manzorra desceu de novo como uma marreta. Um outro atrás de si lhe aplicou um "telefone"; ficou zonzo, o ouvido zunia, caiu de joelhos. O que queriam afinal? Se divertir humilhando um coitado qualquer?

- Esse cabeludo é cheio de marra!

Outra viatura menor, também de luzes desligadas estacionou ao lado.

- O que está acontecendo aqui?

- Um folgado, tenente.

- Tá com identidade?

- Tá aqui.

- Você trabalha, rapaz? O oficial era um indivíduo de estatura média, musculoso, com bigodes grisalhos.

- Sim senhor. Zac não reconheceu a própria voz.

- Faz o quê da vida?

- Sou artista plástico, formado como arte educador.

- Ah, é professor de artes?

- Ainda não exerci. No momento faço ilustração para livros didáticos e histórias em quadrinhos.

- Quadrinhos? Como os do Fantasma e do Mandrake?

- Sim senhor, é isto.

- Eu lia muito gibi do Mandrake.

Zac nada disse, é como se ele não existisse no tempo e espaço.

- Tem carteira de trabalho?

- Tenho, mas tá em casa.

- Mora onde?

- Na Rua Guaianazes.

- É perto, venha, vamos te dar uma carona.

O jovem não queria. Temeu que os traficantes da área o tomassem por "ganso" da PM, mas não conseguiu recusar. Entrou na viatura menor. Os veículos seguiram silenciosos pela Rua Aurora, dobraram na Rua Conselheiro Nébias, depois na Rua Vitória até chegar à rua de Zac. 

- É aqui. 

Ele pensou em anotar mentalmente o número da viatura, o horário e fazer uma queixa ao comando geral da polícia militar, mas preferiu esquecer o assunto. Bem, esquecer seria impossível, mas ia deixar daquele jeito.

A localidade estava deserta e escura. O policial que o agrediu falou:

- Tenha uma boa noite.

O desenhista o olhou pela primeira vez no rosto, era um indivíduo jovem com uma boca esquisita, parecia um cu com hemorroidas.

Pernas trêmulas o conduziram ao elevador e dali para seu apartamento. 

Entrou silencioso. Não queria ver ninguém. Precisava de um banho.

O telefone tocou. Quem seria a uma hora daquelas? Atendeu no primeiro toque. Tarde demais, sua mãe surgia de seu quarto com o rosto amarrotado de sono informando que havia deixado seu jantar na geladeira. Agradeceu e respondeu à ligação:

- Alô? Sua voz verdadeira tinha voltado.

- Alô, eu queria falar com o Zac.

- Já está falando

- Zac? Desculpe o adiantado da hora, mas eu estive esta noite na premiação do HQ Mix e não te vi por lá, conheço um amigo seu, o Fat, ele me deu seu número.

- Sim?

- Bem, olhe eu comprei o seu livro, foi uma das melhores coisas que li nos últimos anos. Você é sensacional!

- Obrigado.

- Veja, eu estou roteirizando uma estória e queria saber se você poderia desenhá-la. Se passa no século passado, na França, é sobre um vampiro...

- Escute, desculpe, mas o momento não é bom, me ligue uma outra hora, então conversamos, pode ser?

- C-claro, desculpe. Te ligo amanhã, então.

- Certo.

- Boa noite.

- Boa noite.

Zac entregou o dinheiro da agiota para sua mãe dar a seu pai. Agradeceu a Deus a polícia não ter percebido todas aquelas notas em seu bolso, poderia ter sido uma dura provação.

Foi ao banheiro. Despiu-se

Parecia estar num freezer. Regulou o chuveiro na temperatura certa e ficou debaixo d´água abraçado ao próprio corpo. Quis chorar mas agora já era muito tarde para isso.

A noite parecia não ter fim, mas para ele não fazia qualquer diferença.


 

A SAUDADE É MAIS PRESENTE QUE NUNCA

   No momento que escrevo essas palavras são por volta das 21h do dia 21 de abril. Hoje fazem três anos que o Gil partiu, adensando as sombr...