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quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

SIROCO RESENHADO POR DANIEL LÚCIO

 


Zé Gatão é um personagem que conheci nos anos 90 numa das minhas inúmeras peregrinações à cidade de São Paulo, e pelo que sei, praticamente na mesma data de sua estreia comercial.  Vejo o personagem como um produto daqueles dias, apesar de que quase tudo tenha mudado na sociedade e costumes (não necessariamente para melhor) ao longo desses anos, os temas abordados continuam espantosamente atuais.

Como falar de Siroco sem compará-lo as obras anteriores do Eduardo? Traçando uma ponte entre os extremos, Siroco e Cidade do Medo, dá para notar uma evolução enorme no conjunto da obra do Eduardo nesses mais de 25 anos.

Siroco entrega tudo que Zé Gatão sempre representou, mas melhor e mais bem amarrado, mais conciso, claramente é um espelho do amadurecimento do autor.

Os personagens são cativantes, algo que sinto falta até mesmo nas grandes obras cinemáticas atuais, é possível sentir a ojeriza que o autor tentou passar ao criar por exemplo a gangue dos urubus, com suas feições repugnantes e cheiro fétido. O clima tenso e opressor ao adentrar na nave infestada por seres aracnídeos.

Como não vibrar com o destino do rato puxa-saco que servia ao hipopótamo emissário dos figurões? O hipopótamo é uma referência explicita da nossa sociedade real dominada por oligarquias que nunca dão as caras e conseguem tudo o que querem através do dinheiro e manipulação.

Apesar das críticas implícitas e explicitas, Zé Gatão não é uma obra progressista, o autor deixa claro num breve diálogo durante a história as incoerências dessa vertente política, convenhamos, posicionamento raro de se ver principalmente no meio artístico, certamente praticado por alguém que não teme, ou não se importa mais com o cancelamento automático que comumente se segue, talvez por já sofrer com ele.

Siroco segue a tradição dos trabalhos anteriores e nos entrega uma deliciosa brutalidade sem pudores, diria até que acima dos demais, como sempre é uma violência justificada no contexto da história. Muito embora as cenas de sexo dessa vez inexistam, temos agora uma abordagem muito mais sutil e romântica, confesso que gostei, são aquelas pequenas doses de esperança e suavidade para contrabalancear o mundo duro e mortal de Siroco.

Aliás, quem conhece o Eduardo, mesmo que virtualmente como eu, sabe que ele é um cara temente a Deus, extremamente educado, contido e culto, quando leio Zé Gatão não posso deixar de ter um sorriso no canto da boca imaginando o contraste entre autor e obra, não tenho dúvidas que Zé Gatão é também uma forma de extravasar aquela “boca do lixo” que todos nós, independente da classe social, temos internamente.

Não sei se as pequenas mudanças introduzidas em Siroco foram propositais, acredito que sim, acredito que o Eduardo quis que as impressões deixadas sejam as derradeiras, afinal, tudo leva a crer que Siroco é uma HQ que encerra o ciclo de narrativas conexas do Zé Gatão, para minha tristeza. Sempre resta a esperança de ainda sermos agraciados com histórias solo e/ou qualquer rascunho que o Eduardo certamente tem sepultado em suas gavetas.

Pintura de Guerra é um material adicional opcional que entrega muito pelo que foi cobrado. Não costumo ser apreciador de HQs coloridas, elas remetem a minha infância onde devorava álbuns, gibis e cartilhas como os do Mortadelo e Salaminho, Brasinha, Mônica, Daniel Azulay, Ely Barbosa, entre tantos outros, todos coloridos, acabo involuntariamente associando o colorido a HQs infantis, mas em Pintura de Guerra as cores funcionam maravilhosamente bem, o Eduardo é um mestre da experimentação e parece ter usado técnicas não tão convencionais que deixa tudo perfeitamente harmonizado, são duas histórias coloridas dos primórdios do Zé Gatão, Pintura de Guerra é um primor visual, vários quadros dariam facilmente um poster, embora sofra de problemas citados pelo autor na introdução, Right Here Right Now (entrego a idade se disser que esse nome me faz lembrar do popular telejornal? Aliás pensando bem, dado o enredo, acho que caiu uma ficha aqui hem?) apesar de curta e despretensiosa, tem um final inesperado e admito ter gostado demais.  Como bônus temos um conto e uma entrevista com o Eduardo. Pintura de Guerra em resumo é uma pequena pérola.

Minha consideração final é que Siroco é aquela obra que deve estar na estante de qualquer pessoa que realmente goste de bons quadrinhos, não só os fãs do Zé Gatão, um trabalho atemporal, claramente o apogeu artístico do Eduardo, um cara que não canso de admirar, principalmente porque ele é um autor que entrega um tipo de obra que tanto sinto falta no mundo atual.

4 comentários:

  1. Poucas vezes vi tamanho aproveitamento de espaço num texto. Nenhuma palavra desnecessária, nenhuma abobrinha, apenas a definição exata e certeira de uma grande obra. Melhor que essa resenha só mesmo a obra em si. E o texto encerra com uma pontada nostálgica e lembra ferindo que, salvo honrosas exceções, o tempo dos bons quadrinhos passou. Siroco é provavelmente o canto do cisne dessa época.

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    1. Também gostei dessa resenha em particular (na verdade gosto de todas, claro, embora seja mais que suspeito para afirmar isso), ela além de econômica, como você pontuou, algumas ideias foram bem captadas pelo leitor, ou seja, ele não leu apenas com os olhos, mas principalmente com o coração.
      Existe uma resenha que estou guardando para o final (ela contém alguns spoilers) que é bem longa e detalhada e toca em um ponto que até agora ninguém deu atenção. Aguarde.
      Sobre o tempo dos bons quadrinhos estarem no ocaso, concordo em parte, há obras bem interessantes ainda sendo publicados, mas nada que se compare com as obras espanholas da década de 80, onde sou fortemente inspirado. Sim, talvez estejamos mesmo no fim de uma era. O que virá a seguir, só o tempo dirá.
      Agradeço muito o comentário e carinho/admiração pelo meu trabalho.

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  2. Eu discordo do Cliff, acho que o cara da resenha fala mais que esposa quando decide ter uma DR. Fiquei curioso entretanto com a suspeita levantada, se Right Here Right Now realmente foi uma paródia (pelo menos no nome) com o antigo telejornal sensacionalista, que eu assistia vez ou outra apenas porque tinha acabado de ver (ou estava esperando, não me lembro mais a ordem) American Gladiators.

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    1. A resenha tá ótima e você demonstra um bom conhecimento da minha obra e personagem.
      Sim, a referida HQ tem o título inspirado no tal telejornal. Existem algumas histórias do felino que tem personagens baseados em pessoas reais e fictícias que antropomorfizei mas não foram percebidos pelos leitores (ou não deram a mínima).
      Ah, eu também via Americam Gladiators.

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