ZÉ GATÃO: A BUSCA.
Um derivativo de SIROCO.
História baseada no
personagem de Eduardo Schloesser.
Por Luca Fiuza.
PRÓLOGO:
Em dezembro de 2022, a Editora
ATOMIC publicou o último e definitivo álbum do felino tristonho,
produzido por Schloesser, de nome SIROCO. Assevero: uma
história brutal, violenta, apocalíptica e de forte cunho EXISTENCIALISTA!
O chamado oficialmente FELINO EM
PROSA, escrito por mim, com vários de meus contos ilustrados pelo
Quadrinista Edu Schloesser, foi encerrado definitivamente, eu
acreditava, em 2020 com a saga INFERNO VERDE! Mas como dizem: Never
say never!
Há poucos dias, me veio um desejo de
produzir uma continuidade da saga SIROCO…! Cozinhei a ideia por vários
dias e finalmente veio à luz, um enredo consistente, o qual achei deveras
interessante e atrativo! Para relembrar a saga de 2022, tomei a liberdade de
elaborar a capa da história com um dos rascunhos do Gatão feito pelo Edu, para
os extras de SIROCO.
O título do álbum de Schloesser foi
extremamente apropriado, pois SIROCO significa um vento do deserto
extremamente quente, o qual surge de forma repentina, calcinando tudo em seu
caminho!
Boa leitura.
A BUSCA – Capítulo 1:
O Deserto infinito e insondável! Calor constante e abrasador!
O sol inclemente a fustigar o lombo suado do felino casmurro! Há muitos dias, o
Gatão vagava por aquela imensidão arenosa e silente, sem encontrar uma viva
alma em seu caminhar sem rumo! “Por que não morria de uma vez?” -
perguntava-se! - Seria melhor, do que ficar morrendo lentamente naquele inferno
de horrores sem fim! Horrores causados pelo ambiente agreste acrescido pela
solidão inexorável, onde a própria mente pregava peças, fosse desperto nos dias
abrasivos, ou durante o sono, nas noites gélidas! A natureza do felino cinzento
era solitária! Ainda assim, o excesso de solidão também não faz bem! E
estranhamente, ele desejava encontrar alguém! Pensamento irônico, em um mundo
destroçado pelo Apocalipse final! Ainda assim, quem quer o felino gris
encontrasse naquela amplidão desolada, ou seriam hordas de animais hostis e
desesperados, ou nas ruínas do que havia sido antes uma cidade, seres tão
ferozes e desapiedados quanto os errantes, encontradiços no mesmo deserto, onde
jaziam ainda, estes arremedos da antiga Civilização decaída! Em qualquer um dos
casos, o Gatão teria que lutar tenazmente para não ser assassinado! Matar para
não morrer! E era esta energia visceral, atávica e irracional que respondia ao
seu racional questionamento anterior! Apesar de tudo e de si mesmo, a ordem era
sobreviver! Buscar alimento quebrando as duras e espinhosas plantas desérticas,
ou seja, um tipo de cactus extremamente resistente! Destes rudes vegetais podia
também extrair água! Líquido mais do que precioso naquele ambiente bizarro!
Desertos sempre existiram, mas após eles havia florestas,
rios, lagos, lagoas e mares! Vilas, cidades, megalópoles, Vida, enfim! Do mundo
civilizado, só ficaram escombros e animais sobreviventes da hecatombe
destruidora, bastante espalhados por aí! Rios, lagos, lagoas e mares estavam
mortos, tomados pela toxicidade provocada pela Grande Guerra, sem
quartel entre os entes da superfície e os entes das águas! Estes últimos
acabaram extintos e os de terra, reduzidos e bem próximos também da extinção!
Este era o novo normal, onde o grande Nada tinha tomado conta do Tudo
que antes existia!
Com a chegada do anoitecer, o fortíssimo calor do longo dia
começou a diminuir. O Gatão rapidamente
armou a tenda. Acendeu uma fogueira diante da entrada e acomodou-se para
comer a última porção da ração de sobrevivência! Tanto a barraca desmontável
quanto as latas de ração, consumidas nos últimos dias pelo felino tristonho
eram o presente que os felinos mercenários deram, antes dele se despedirem. O
Grande Gato alternava estas rações com as plantas espinhosas, no sentido de
poupar o conteúdo das latas que era mais alimentício do que os ásperos vegetais
espalhados por aquele ermo. Porém, em breve, o casmurro felídeo teria que
contar apenas com os recursos naturais para continuar a viver! O céu
avermelhado e as primeiras estrelas a brilhar no firmamento, anunciaram a
chegada da noite! Dali a duas horas, a temperatura cairia a zero grau! Por
isto, Zé Gatão tratou de alimentar a fogueira com lenha sintética! Outro
equipamento fornecido pelos felinos mercenários! Há muito não pensava
detidamente neles. Mas naquele início de chona, lembrou-se da última
conversa que tiveram, antes de se separarem. Sentiu de modo quase palpável, o
abraço de Lena, a onça-pintada, seguido de seu beijo cálido!
Intimamente, o Gatão desejou estar junto à felídea pintalgada e seus novos
amigos. No entanto, os caminhos do felino gris não eram os mesmos daqueles
intrépidos mercenários! Assim, cada qual seguiu em direções opostas! O Gatão
resolveu entrar na tenda, fechando-a, de maneira firme e hermética. Não
aceitara trazer consigo nenhuma arma de fogo! Não gostava e nem precisava tais
artefatos, embora soubesse manejá-los com eficiência e precisão!
O Gatão custou a dormir! O silêncio opressivo da noite só era
quebrado pelo ulular ocasional do vento. O Grande Gato virou-se para o lado
esquerdo e lentamente começou a relaxar. Imperceptivelmente, começou primeiro a
cochilar! Em seguida, mergulhou em um dos mais profundos sonos que jamais
tivera! Seu enorme corpo simplesmente se desligou da realidade! Então veio o
sonho! O Gatão viu-se em uma mata tropical! Sentia o calor gostoso do sol em
sua pele! O ar, perfumado pelo odor de plantas exóticas! Não muito longe,
escutou o murmúrio agradável de um rio! Sentiu sede e caminhou em direção
daquele som! Enquanto avançava, afastava de si uma folhagem estranha,
luxuriante como nunca tinha visto antes. À sua volta, pendiam do alto,
samambaias enormes e viçosas! Parecia já ter visto aquela curiosa paisagem em
antigos compêndios, possivelmente, nos tempos de escola! Voluntariamente
aspirou o ar e concluiu que era um dos mais puros que já respirara! Rico em
oxigênio de um modo surpreendente e inimaginável! Poucos passos depois, chegou
junto ao rio que procurava. Abaixou-se junto à margem e com as mãos em concha
tomou da água fresca e cristalina! Estava nisto, quando um som de passos
pesados se fez sentir atrás dele! O som era seguido de um odor pungente,
estranho e muito desagradável! O Gatão virou-se de brusco! No lusco-fusco da
mata, ele divisou uma silhueta dantesca! Uma figura disforme e gigantesca se
aproximava! Tinha em torno de uns seis metros de altura! Uma bocarra cheia de
dentes pontiagudos se abriu, dela escapando um silvo prolongado, lembrando o
trinado de uma ave monstruosa, mas aquela criatura não parecia uma ave! Com o
silvo, um fedor nauseante encheu os ares, deixando no gato, uma vontade de
vomitar quase incontrolável!
O Gatão teve a impressão de ver cintilantes olhos amarelos, a
dardejar de fúria insana naquela face grotesca! A coisa fez carga sobre o
felino! Ela se movia com a velocidade de um trem expresso, se precipitando
sobre o Grande Gato! Pouco antes do choque mortal, Zé Gatão despertou daquele
sono anormal com um urro de terror! De busto erguido, um suor frio a descer
pela espinha, um tremor gelatinoso sacudindo o corpanzil musculoso…! A custo
ele voltou a raciocinar! Tinha tido um pesadelo! Um horrível pesadelo! Não
dormiu mais! Aos primeiros sinais da aurora, conseguiu dar um cochilo inquieto!
Pouco antes do nascer do sol, já havia levantado acampamento! No estômago, a
magra refeição de cactus e restos de ração da última lata! A escassez alimentar
era o de menos! Sua metade lince, lhe dava condições de resistir às maiores
privações! Devia ser herança genética de seu pai desconhecido: o Lince
Vermelho! Aliás, raramente pensava nele! Tudo que sabia dele era pelas
histórias que sua mãe, há muito falecida lhe contara! Em sua genitora muito
amada, no entanto, ele pensava com maior frequência! Ainda bem que ela não
viveu para enfrentar este mundo terrivelmente devastado de agora! Ela não
resistiria! Não conseguiria sobreviver, mesmo sob a proteção dele, seu filho!
Aquele espírito delicado e bondoso não suportaria tal realidade! Sua mãe
decerto, morreria de tristeza!
Com tenacidade inquebrantável, o Gatão jornadeou por horas a
fio naquela imensidão desoladora! Paisagem tristonha, o solo crestado, abrasado
por um sol tórrido, o andarilho solitário tentando espantar inutilmente, a
imensa monotonia que aquele ambiente uniforme e profundamente silencioso
infundia no espírito indômito do felino acinzentado! O Grande Gato caminhou até
quase o fim da tarde, quando finalmente o cansaço físico o fez parar e
novamente montar acampamento! A noite se aproximava! O Gatão acendeu uma
fogueira e preparou uma refeição frugal. Até então comera os cactus in natura,
mas naquele momento, resolveu expô-los ao fogo! Com satisfação, notou que sua
consistência se tornava mais macia, os espinhos agudos se soltavam facilmente
do vegetal e por fim, o sabor ficava muitíssimo melhor do que cru! Comeu com
vontade, sentindo-se incrivelmente bem alimentado!
Apesar de estar bastante cansado, não sentia sono ainda e
isto foi sua salvação! Sua audição aguda, detectou um movimento sutil à sua
direita. Voltou o olhar para a origem do som e divisou na meia luz do poente,
um pequeno grupo de baixotes raposas do deserto, se aproximando cautelosamente.
Os canídeos portavam porretes! Eram de constituição esguia, focinhos pontudos,
olhos grandes e cintilantes! Pele de um vermelho sujo, túnicas brancas, bem
folgadas no corpo! Na cabeça um lenço vermelho e branco conhecido como conhecido como Keffiyeh, uma proteção adequada contra o sol forte e o vento arenoso, muito recorrentes naquelas plagas! O
Gatão permaneceu calmo, mas vigilante! Naquele deserto, qualquer um que
aparecesse poderia ser na verdade, o mensageiro da morte, encarnado! Para
certificar-se das intenções dos recém-chegados, o Gatão assim, lhes falou num
tom de voz neutro: – Se vieram em paz, podem se aquecer junto ao fogo…se
vieram com más intenções, caiam fora!
Um dos canídeos que parecia ser o chefão, replicou:
– Você não acha que está
sendo meio abusado, ô felino? Especialmente para quem está sozinho, no meio de
lugar nenhum? - Os cupinchas do líder, soltaram ganidos estridentes! Algo
comparável a gostosas gargalhadas! Zé Gatão não achou graça! Seu semblante se
fechou em uma carranca medonha! Respondeu entre dentes:
– Já disse para vocês se
arrancarem daqui! Se teimarem em bancar os espertos, eu vou arrebentar o cú de
vocês a pontapés! Sumam! Última chance, idiotas! - Como resposta, os
caninos sacaram suas jambiyas, um tipo de adaga de lâmina curva, de dois
gumes. Então, o felino gris mexeu-se! Rápido como um raio, meteu um chute
brutal nas fuças do líder! No mesmo movimento, deu um chutaço lateral no peito
da segunda raposa! As outras duas, sem ação, devido à surpresa do ataque foram
brindadas com murros explosivos em suas dentaduras, estilhaçando-as, enquanto
cuspiam sangue de modo profuso de suas bocas nojentas! Sem parar, o Gatão fez o
que prometera! Aplicou nas bundas das raposas chutes tão fortes que aqueles
seres infelizes vomitaram o que tinham e o que não tinham em suas entranhas! A
violência dos chutes era tão grande que aquelas criaturas lançavam aos ares,
fortes alaridos tristemente lamentosos devido a uma dor espantosa! Inominável!
E desta forma, o felino gris expulsou os intrusos! Varreu-os dali como se varre
lixo! Deixou as raposas do deserto estendidas, inconscientes a alguns metros da
fogueira acesa! O Gatão resolveu se retirar! Sem olhar para trás, afastou-se,
não sem antes apagar a fogueira! Muitas horas depois, as raposas despertaram,
gemendo! E se quiserem saber, antes da aurora estavam mortas! Hemorragia
intestinal e impossibilidade de evacuar!
Alta madrugada! Sentindo-se seguro, o Gatão fez um novo
acampamento, acendeu outra fogueira e resolveu descansar um pouco, até o
amanhecer. Desta vez, seu sono foi leve. Ainda assim, sua constituição vigorosa
e afeita à frugalidade, no viver, se recuperou o bastante para o felino acordar
bem-disposto e pronto para mais um dia de longa caminhada! Sua aparência não
era das melhores! Suarento, cabelos longos, balouçando soltos, ao vento quente
daquele descampado averso! Roupas em estilo militar, sujas, rasgadas em vários
pontos e empoeiradas! Aquelas vestes lhe foram dadas por Lena e pertenceram a
Nero, o pantera-negra, amado da intrépida onça, morto em combate! Os pés, dentro
das pesadas botas estavam em brasa! Mas o Gatão ignorou este incômodo, somado a
uma miríade de desconfortos físicos. Tal situação, por certo, enlouqueceria
qualquer outra criatura, dita civilizada! Ele sufocara dentro de si, quase
todos os preceitos de uma Civilização que deixara de existir, há muito! É claro
que havia muita coisa da realidade anterior, ainda arraigada nele! Não se
tornara totalmente uma fera selvagem e desapiedada! Mas não teria comiseração
com quem quer que tentasse lhe fazer mal, ou matá-lo! Jamais mataria por matar!
Jamais se alegraria em fazê-lo, em qualquer tempo! Porém, entre sua vida e a de
outrem, naqueles tempos mais que bicudos, o Gatão não hesitaria em fazer o que
fosse preciso para sobreviver! Não havia mais lugar para dúvidas, ou remorso!
Imperava, a Lei do mais forte!
Por cinco dias consecutivos, o felino cinzento caminhou sem
direção definida! Depois das raposas, não encontrou mais nenhum ente, a não ser
alguns pequenos lagartos cor de âmbar que o evitavam, afastando-se velozmente
quando vistos, nas horas claras! Quando caía a noite, a solidão silente do
deserto era mais opressiva do que nunca!
Para não dizer que nada aconteceu, naqueles dias, certa
noite, o Gatão foi visitado por um escorpião de porte médio, o qual entrou
sorrateiramente na tenda do felino! Mais uma vez, o sono superficial e os
instintos agudos do Grande Gato foram providenciais no sentido do Gatão ter
podido ver o raiar do dia seguinte! Quando o aracnídeo enterrou seu ferrão
mortal, onde deveria estar sua vítima, deu com “os burros n’água!” A coisa foi
premiada com um soco poderoso em sua cabeça destituída de pescoço, sendo seu
corpo compacto lançado lá fora! Tombando como bosta, no solo pedregoso, o
escorpião escabujava, tentando erguer-se! Zé Gatão saiu da tenda, em tempo de
ver o adversário aprumar-se! O Gatão acercou-se do escorpião, atento ao ataque
de seu ferrão! O invertebrado não se fez de rogado! Atacou, dando ferroadas a
torto e a direito, sem contudo alcançar o mamífero que evitava agilmente as
investidas de seu implacável verdugo! Em um movimento repentino, Zé Gatão
abaixou-se e recolheu do chão um pedregulho! Com ele atingiu violentamente a
cabeça do oponente! O impacto devastador rachou a carapaça escura exatamente no
ponto visado pelo felídeo! A esta pancada, outras se sucederam! O Gatão batia
com toda a força de seu braço musculoso! Ao mesmo tempo, deu um pisão no
ferrão, quebrando-o! O guincho de dor, expelido pelo órgão fonador do aracnídeo
foi indescritivelmente macabro! O Gatão empurrou brutalmente o parente das
aranhas, derrubando-o de costas na poeira! Seu braço se ergueu, segurando com
firmeza o pedregulho!
O escorpião gritou algo em sua
língua incompreensível! O braço do felino desceu e o pedregulho bateu uma,
duas, muitas vezes mais contra aquela cabeça luzidia! A potência dos golpes,
simplesmente a destruiu com se fosse feita de papel! O resto de vida que ainda
existia no escorpião, se esvaiu rapidamente! Em seus estertores finais, antes
da morte o tirar permanentemente de cena, o invertebrado tentou
desesperadamente, em um ato reflexo, agarrar seu algoz com suas pinças enormes,
mas, com o término da energia vital, só conseguiu abri-las e fechá-las de
maneira inofensiva, e tentar apertar um dos braços do felino, com a força de
uma larva inerme! O Gatão, só parou de bater quando daquele ser sob ele, só
restou uma papa informe e em nada semelhante a um ente que um dia, já viveu!
Horas mais tarde, enquanto aguardava insone o amanhecer, o
Gatão de repente, entregou-se ao pranto! Chorou! Não por si mesmo, mas pelo que
o mundo se tornara inexoravelmente! Sempre fora só! Podia contar os verdadeiros
amigos e verdadeiras amigas nos dedos da mão! Onde estavam eles? Onde estavam
elas? Naquele momento, mais do que nunca desejava ter alguém para acalentar e
que o acalentasse! Mas não havia! Talvez nunca mais houvesse! Oh! Que realidade
era esta, onde se ele encontrasse outro ser vivente em seu caminho precisaria
brigar contra esta criatura e quase com certeza matá-la?! Com as costas da mão,
o felino procurou enxugar o rosto banhado em lágrimas! Começou a pensar nos
seres que matara, até ali! Será que deveria ter deixado abandonadas à própria
sorte, as raposas do deserto? Mesmo o escorpião, representante de uma espécie
abominável, merecia o fim que teve? Enquanto se martirizava e novamente
chorava, seu lado racional lhe deu uma resposta que soou como um tapa, em sua
alma fragilizada! Sim! Teve que aniquilar a todos! Ou do contrário, no caso das
raposas, seria torturado, assassinado e seus poucos pertences roubados! A esta
hora seu cadáver estaria jogado na poeira! Pronto para servir de pasto para as
feras da terra e do ar! Quanto ao escorpião, este ofertaria um fim ao felino
que seria com certeza, mais lento e sofrido! Seria o gato, Inapelavelmente liquidado
pelo veneno letal do desalmado celerado de oito patas! E concomitantemente,
suas carnes seriam consumidas pelo escorpião em um horrendo banquete noturno!
Consciente desta verdade, o Gatão foi se acalmando! Silenciosamente, ele
serenou de vez! Felizmente, em seu âmago tinha sobrado algum sentimento, alguma
compaixão! Ainda não se tornara completamente, mais um monstro entre monstros!
Não ainda! Em verdade, lutaria contra tudo e contra todos, mas os seus
princípios de conduta que lhe eram tão caros, jamais seriam corrompidos pelas
adversidades! Jamais!
Pouco antes do amanhecer, o Gatão desmontou seu acampamento e
se lançou à frente! Mesmo sem saber para quê, seu instinto o impelia sempre
adiante! Estava alimentado pelo consumo prévio, dos cactos cozidos! Deixara
alguns crus, para que deles pudesse extrair água!
Deixara alguns crus, para que
deles pudesse extrair água!
Tomara “emprestado” de uma das
raposas um Keffiyeh, para proteger a cabeça do calor de um sol inclemente! Ajeitara sua cabeleira acinzentada, o melhor possível, sob aquela ótima proteção para o cocuruto, embora uma parte de seus cabelos ficasse exposta, a se agitar no vento quente! Não tinha mais a intenção de voltar a prendê-los no seu costumeiro rabo de cavalo! Inconscientemente, de alguma forma, achava que não tinha mais sentido, o fazer! Não, naquele mundo de distopia extremada!
No meio da tarde causticante, localizou adiante, umas ruínas, do que fora provavelmente, uma cidade de porte médio! Agora não havia mais referências! Não existiam estradas, ou ruas e muito menos placas! Daquela urbe, só sobraram algumas estruturas inteiras, mais parecidas com peças gigantescas de um quebra-cabeças quebrado! A audição apurada do felino casmurro, captou uma voz lamentosa, seguida de outras vozes em tom agressivo e irônico! Moveu-se então, com cautela, protegido por umas dunas que se elevavam à sua direita! Daquele esconderijo providencial, firmou sua vista aguda e seu olfato sensível, identificou os personagens, bem antes de Vê-los com maior clareza. Farejou os desagradáveis cheiros de abutre e do suor acre de chacais! O que viu, fez seu sangue ferver nas veias! Um grupo de cinco chacais torturava uma abutre fêmea, um filhote jazia estripado no chão a poucos passos da cena grotesca! Os chacais eram chefiados por uma fêmea taluda, de musculatura sem exagero, mas sólida! Os demais eram mais magros, em comparação a líder. Aquele bando de canídeos usava roupas meio esfarrapadas, de ar encardido e gasto! A abutre, e o filhote morto estavam despidos! A pobre criatura alada apresentava sinais de espancamento severo! Antes de agir, o Gatão observou bem os arredores e a quantidade de adversários! Notou que ninguém portava armas de fogo e sim, porretes pesados e facões! A Líder chacal segurava ameaçadoramente, um alfanje, de um tipo que se assemelhava a uma espada curva, de lâmina grande. O Gatão ouviu atentamente o diálogo, a seguir, com os músculos do corpo maciço, retesados, como molas, prontas a explodir em ação e contidas a custo!
A voz da líder, era um ronco carregado de desdém, misturado a um ódio quase palpável!
– Ave maldita e fedorenta! Não sabe o prazer que vou ter em te eviscerar aqui e agora! Sua filha de uma puta! Carniceira, desgraçada! Você e seu imundo filhote caíram no meu truque! Ao verem do alto, os meus chacais caídos, já desceram rapidamente na intenção de devorá-los, sem piedade! Mesmo que ainda estivessem vivos, não é mesmo? Responda, carniçal dos diabos! Responda!
– T-tudo que queríamos…era sobreviver…! Como vocês…!
– Sua nojenta! Podre! Ouviram isto, pessoal? Esta porra ainda tenta justificar, o injustificável! Você e sua raça se aproveitam de animais fracos e moribundos que não podem se defender! Às vezes os infelizes ainda não estão mortos e vocês começam sua refeição macabra, bicando os olhos! Eu estudei sobre vocês na escola, há uma pá de tempo pra trás! E o pior! Eu já vi este horror! Puta merda! Não sou ignorante! Antes da Guerra, eu tinha uma vida decente! Mas chega de falar, sua praga infernal! Já mandei teu moleque pras profundas! Agora será você! E parem de rir, seus palhaços! Ou se verão com o meu alfanje! - As risotas dos chacais silenciaram e amedrontados, aguardaram! A fêmea de chacal ergueu furiosamente, sua arma letal, no intuito de desfechar um golpe destruidor contra sua vítima! Esta fechou os olhos, conformada e sem esperança de viver! Porém, um grito forte e áspero interrompeu o movimento de ataque da cruel algoz!
– Pare aí mesmo, saco de merda!
– Quem ousa?! O que? Um felino? Que gracinha! Pra cima dele, rapazes! O que estão esperando? Matem-no, idiotas!
– M-mas você viu, o tamanho dele, chefa…?
– O gato é grande pra caralho! Puta que me pariu!
– Acho que é demais para gente…!
– Acho que não dá…! É um lince! Estes bichos são foda!
– Malditos idiotas! Tão se borrando nas calças?! Andem! Acabem com ele! Ele nem arma, tem e vocês são quatro! O felino é só um! Vão pra cima dele, ou eu corto fora, o saco de vocês! Ataquem!
Engolindo em seco, os quatro chacais se
acercaram do Gatão que se aproximara de forma impetuosa e decidida! Um dos cães
selvagens se adiantou, dando um golpe amplo e giratório com seu porrete! Se
atingisse seu objetivo, Zé Gatão teria a cabeça arrebentada! Só que para azar
do indivíduo, atingiu o vazio! Em um movimento rápido, o Gatão agarrou o braço
armado do oponente e puxou-o com tanta força, que o sujeito deu um urro de dor,
tendo a sensação que os tendões de seu membro direito iam ser seccionados, ali
mesmo! Imediatamente, uma brutalíssima joelhada na cara, além de destroçar o
focinho, a dentição, junto com um forte esguicho de sangue, calou para sempre
aquele ser ignóbil, mergulhando-o nos abismos escuros da própria morte, devido
à potência do impacto! Os demais, nem tiveram tempo de se surpreender! O Gatão
desabou sobre eles como uma tempestade de sopapos pesados! Melhor seria para
eles, se tal fenômeno
fosse apenas de
areia! Os punhos do felino eram como bate-estacas poderosos! Murros certeiros
no meio das fuças! Nos olhos! Nas orelhas! Cutiladas fortíssimas na garganta!
Chutes e pisões nos testículos! O último deles, teve o pescoço torcido como o de uma galinha! Só sobrou a fêmea com o alfanje! Ela se
voltou para o Grande Gato! Em um ataque selvagem e alucinado, gritando alto, ela se jogou sobre ele, brandindo a arma com extrema perícia! O felino cinzento saltou de lado, enquanto se abaixava e pegava um dos porretes, deixados por seus adversários, agora defuntos! Empregando toda a força de seu braço, lançou-o, na direção da antagonista! O porrete acertou-a bem no meio da testa ampla, mandando sua alma abjeta para o mesmo local, para onde pretendia enviar a fêmea de abutre! Sua carcaça foi para trás como um joão-bobo e é claro, não voltou à posição inicial! Caiu para não mais erguer-se! Ficou aplastada como um monte de bosta, no solo pedregoso do deserto infindável! O Gatão ignorou aqueles cadáveres e foi logo prestar assistência à fêmea de abutre ferida! Ela o olhou com um brilho de agradecimento, o qual o Grande Gato jamais pensou em ver no rosto de uma ave daquelas!
– Aguente firme! Eu vou cuidar de você!
– Não…! É muito tarde! Quebraram minhas asas! Meu filhotinho está morto! O estriparam ainda vivo! Sem piedade…! Diante dos meus olhos! Nunca pensei…que seria grata a um mamífero…! Mas você ainda pode fazer mais uma coisa por mim! Acabar com meu sofrimento! Sei que pode! Com sua mão redentora, me dará a paz! Aí, eu poderei me reunir ao meu filhotinho! Coragem! - O Gatão nada mais disse! Compreendeu o que precisava fazer. Tirou o alfanje da mão crispada da finada fêmea de chacal!
O Gatão ergueu a lâmina acima da cabeça e decapitou a abutre em um único golpe! Julgou ver um vislumbre de gratidão, naqueles olhos mortiços e um último sorriso a iluminar aquele rosto destruído pelos violentos, desta terra, sem Lei! Enterrou os chacais mortos, ali mesmo, onde com eles lutara. Quanto à fêmea da abutre e seu filhote, enterrou ambos no interior das ruínas e resolveu ficar no local para passar a noite.