Última semana do mês de julho, final de férias do meio do ano. As nuvens de coloração cinza que se batiam contra o firmamento azul pálido alardeavam tempos chuvosos. Para o rapazola chamado Alberto, que esperava no ponto de ônibus, era também o início de uma nova fase de vida: dispensa do serviço militar, encerramento do ano letivo, vestibular e, se tudo desse certo, na inauguração da nova década que se daria em alguns meses, ele estaria ingressando na faculdade de veterinária, mas para um jovem de 18 anos recém completados, tempo, esse grande inimigo do homem moderno, não era motivo de preocupação. Não pensava nisto, nem mesmo nas transformações do seu corpo, que se metamorfoseou de um mirrado adolescente estapafúrdio para o porte másculo entrando na vida adulta. Na mente, porém, a criança que todo homem guarda dentro de si, digladiava-se com o ser responsável que timidamente começava a emergir. Suas solicitudes no momento, porém, se dividiam entre Mariana e o ônibus que estava atrasado mais de 20 minutos.
Uma cólera quase irreprimivel ameaçava explodir a qualquer momento. Passara mais de duas horas desconfortáveis dentro de um trem que o trouxera do centro da cidade até aquele inópio terminal e ainda tinha que esperar! Cuspiu no chão, sentiu sede. Daria tempo de ir ao bar que ficava em frente ao ponto? Se perdesse aquele coletivo, outro só dali à três horas.
Ele não se dava conta mas a irritabilidade que sentia advinha de seu relacionamento com Mariana, a amiga de uma das suas primas. Estava apaixonado e nem mesmo sabia se era correspondido. Suas reflexões foram subitamente interrompidas pelo ônibus que finalmente dobrava a esquina. O carro parou no ponto e para sua surpresa o motor foi desligado, o motorista saltou e se encaminhou para o botequim em frente. Talvez ele estivesse apertado para ir ao banheiro, sabe-se lá, menos mal, assim ele poderia beber algo e mitigar sua sede. Tomou seu refrigerante e voltou ao ponto onde já haviam algumas pessoas esperando para embarcar. O motorista chegou ajeitando as calças e, do lado de fora mesmo, pôs o antebraço musculoso para dentro da janela e acionou o dispositivo que fazia a porta se abrir para os passageiros entrarem e se dirigiu à guarita dos fiscais. O rapaz estranhou, esse transporte sempre passava apressado, hoje, apesar do atraso, ainda se dava ao luxo de parar para um bate papo. Talvez os horários tenham mudado, vai saber.
O ônibus era novo, as cadeiras confortáveis, contrastava com o minúsculo terminal empoeirado do lado de fora. Ele entrou e escolheu um assento longe dos demais, havia um casal com três filhos birrentos que ele evitou como se fossem praga. Acomodou-se e se pôs a pensar no objeto de sua paixão juvenil.
O moço viera passar as férias de meio de ano na casa dos tios. Era sempre assim, revezava-se entre o lar dos avós maternos e a dos tios nestes períodos. Toda a infância e adolescência passados em cachoeiras, passeios de cavalo, brincadeiras com os primos no vasto quintal do casarão até tarde da noite. Aquelas férias eram aguardadas com tal ansiedade que suplantavam todas as expectativas de um menino. Este ano, porém, algo havia mudado, o primo fizera outros amigos na cidade, as primas entravam na fase de olhar para os rapazes, os idílios de criança iam dando lugar à soberba da maturescência e pouco a pouco soterrando nos azedumes da evolução a puerilidade da insensatez. Ele refletia agora na gradual mudança: no começo, as brincadeiras de piratas, Tarzan, faroeste. Noutros tempos, relatos de assombração à luz de fogueiras, as piadas sujas. Posteriormente os planos de morarem juntos e nunca se separarem. Incrível como essas ilusões desmoronam como um castelo de cartas.
O jovem teve então seus pensamentos suspensos no momento que um idoso alto e mal vestido subiu no carro, o que se destacava nele era sua magreza, orelhas de elefante e um chapéu que completava o aspecto de espantalho. Trazia na mão ossuda uma coxinha, o motivo da cisma era que com tantos lugares vagos o velho sentou-e no outro lado do corredor logo ao seu lado e o cheiro da fritura o enjoou. Alberto, cheio de fúria, discretamente viu o macróbio mastigar o salgado de forma ruidosa e lenta, cada vez que engolia, seu pomo de adão parecia querer rasgar a fina pele de seu pescoço de galinha. A refeição pareceu ao jovem, levar uma eternidade e quando o ancião a completou, ficou olhando os compridos dedos cheios de gordura sem saber o que fazer com eles, por fim, limpou-os na cortina da condução, manchando-as. Era demais para suportar, em seu íntimo o rapaz se via agarrando o velhote pelas enormes orelhas e batia aquela cabeça esquelética em todas as janelas do ônibus. Nesse instante o troncudo motorista entrou, ligou o motor e seguiu destino. O cheiro da coxinha ainda se fazia presente, atrás uma criança começava a chorar, Alberto então trocou de lugar indo para os fundos e ficou olhando a passagem rústica desfilar ante seus olhos. À visão das árvores e matas correndo por sua janela sentiu uma profunda paz interior apesar dos pensamentos caóticos.
Cerca de um mês atrás, uma semana apenas uma após ele ter chegado à residência dos tios, Mariana, uma amiga de infância de suas primas, assomou na casa, cheia de malas e prantos. Era uma moça de uma beleza pedante, gordota, falante e quando o fazia olhava profundamente nos olhos. O motivo de sua desdita fora o rompimento do noivado de dois anos com um jogador profissional de futebol, atacante do Vasco da Gama. Alberto soube mais tarde que a razão do desenlace fora que ela flagrou o noivo beijando um tio na boca. Um beijo de língua, comentavam as primas. E no próprio tio! Que absurdo! Um acontecimento como aquele suscitava muitos comentários e não demorou nada para que até os vizinhos começassem os mexericos. Alberto ficou na dele, convidou a moça para um passeio e assim os dias eram levados com longas caminhadas pelo ribeirão, pela via férrea ou pelas largas ruas ladeadas por casinhas e casarões, o céu sempre de um azul pálido carregado de nuvens que mais pareciam imensos chumaços de algodão, como se fossem deuses expulsos do Olimpo a observá-los. Era uma região serrana cujo o clima era maravilhoso.
O rapaz, sempre dado a leituras, impressionava a moça com sua eloquência e seus conhecimentos acerca de quase tudo que fosse banal. "Nossa, como você é inteligente! Quanta coisa você sabe! Fale mais, adoro ouvir você falar!" Com essas palavras o moço se enchia de orgulho mascarando sua altivez com um sorriso amarelo.
Algumas vezes aqueles passeios eram acompanhados pelos primos, mas na maioria dos casos eram apenas os dois e numa dessas ocasiões ela falou do ex-noivo, como se conheceram, namoraram, juraram amor eterno, ele sempre viajando, adulando-a com presentes, era empresariado por um tio arrogante e afetado, até a noite em que indo até a casa dele encontrou a porta apenas encostada e viu os dois se apalpando com as bocas coladas. Ela reprimiu um grito e partiu dali chorando, louca de ódio, ciúmes e vergonha. Quando procurada pelo pretendido , numa ato insano, contou tudo o que vira, chamou-o pelos piores nomes e terminou tudo. Ele quis se explicar, mas explicar o quê? Como justificaria aquilo? Ela bateu no rosto dele chamou-o de bicha sem vergonha e expulsou-o de sua casa.
Não contou nada aos pais ou à família dele. Fez as malas e veio para a casa das amigas da meninice tentar esquecer. Ah, esquecer.....como tirar aquela cena da cabeça?
Alberto confortou-a como pode. Ela era mais alta e dois anos mais velha que ele. Sem que planejassem seus lábios se encontraram e durante aqueles dias o tempo era passado entre passeios, beijos e abraços. Tudo, claro, na maior discrição, não pegava bem uma moça chorando por uma infelicidade como aquela estar ao mesmo tempo aos amassos com um rapazola. Numa dessas conjunções, Alberto tocou no seio da moça, ela o repudiou dizendo que não poderia ir tão longe, ainda estava sob os efeitos do infortúnio, completou exprimindo que ter se envolvido com ele fora um erro. Fugiu em seguida e passou a evita-lo, permanecendo sempre na companhia das amigas.
O rapaz já tinha tido relações sexuais com uma empregada de sua casa, mas não havia amor envolvido. Orgulhoso, ele saía com o primo para paquerar na praça central da cidade, era o período das festas juninas, mas em vão, em seu interior um gigantesco buraco devorava todas as outras sensações. Estava apaixonado; a moça era petulante, tagarela, gorda e ele a amava.
Sua situação pioraria bastante nos dias por vir, um telegrama do nubente com pedidos de perdão, súplicas por uma nova chance e ela, feliz, aceitou conversar com ele. Fez as malas, disse que a história do beijo homo fora uma invenção dela, pediu desculpas a todos e e partiu sem nem olhar para Alberto.
O mancebo ficou destruído. Como tudo saíra assim do controle? Entretanto ele teve força interior para não deixar ninguém perceber o que ocorria em seu íntimo. Logo no dia seguinte precisou ir ao Palácio do Exército tratar de sua dispensa militar com um coronel amigo de seu pai. Agora retornava para a residência dos tios e para tudo o que recordava suas utopias com Mariana. Imerso nesses devaneios, não notou o ônibus entrar no município montesino e encostar na pequena rodoviária. Saltou sentindo-se cansado, vazio e deprimido.
Ao invés de atravessar a pontezinha que ficava sobre o rio e lhe daria acesso direto à casa dos parentes, preferiu um caminho mais longo só para poder pensar mais um pouco, falar consigo mesmo e se consumir em auto-piedade. Cada estrada, casa e árvore lhe recordavam as horas tépidas que passou nos braços da jovem.
Súbito, um grupo de papagaios que grasnaram no páramo enevoado atraiu sua atenção para uma das casas situadas num elevado; ali, uma mulher de formas opulentas na faixa de uns 30 anos torcia roupas num tanque e pendurava no varal. Usava um vestido azul estampado com pequenas flores, a barra do mesmo havia sido atada em um nó entre as fartas coxas evidenciando assim nádegas e quadris abundantes. Apesar da distância ele percebeu que ela tinha um rosto bonito, de um nariz forte e um lenço branco amarrado na cabeça retendo uma basta cabeleira negra.
Distraída no trabalho, a mulher não notou o jovem que a observava com olhos famintos e que ia até o final da rua e voltava até o início da ladeira como quem procura, de um jeito mal disfarçado, o número de uma residência. O moço, de forma magnética, fotografava cada curva, cada traço sinuoso daquele corpo escultural quando repentinamente ela abaixou-se para pegar o sabão que caíra e seus olhos se encontraram. Desconcertado, o rapaz apressou-se em sair dali. Umas quatro ladeiras abaixo e ele finalmente chegava na casa da irmã de sua mãe.
O tio lia revistas em quadrinhos na varanda e reverenciou-o com um largo sorriso: "Salve meu querido, como foi na cidade?" "Tudo ok, consegui a dispensa." "Ótimo! Eu sabia que tudo ia dar certo. Ainda bem, militarismo é pra quem tem vocação, do contrário é um ano de vida perdendo tempo.... apesar das muitas boas coisas que se carrega para a vida."
Ele gostava de ouvir o tio falar, mas naquele momento não tinha a menos paciência, inventou que estava apertado para urinar e saiu dali. Evitou a cozinha de onde se ouvia o falatório da tia, das primas e uma vizinha e se fechou no banheiro. Quase sem poder se conter, tirou o membro para fora e se masturbou pensando na lavadeira de roupa, imaginou-se possuindo toda aquela fartura ali mesmo no tanque de pedra a céu aberto. Não demorou para atingir o clímax. Todas essas sensações o aliviaram do fardo, já não pensava em Mariana com a mesma dor. Puxou a descarga, lavou as mãos e se encaminhou para o quarto do primo. Lá estava ele conversando animadamente com um amigo, um indivíduo beiçudo, de cabelos longos, pernóstico, que exalava um desagradável cheiro de azedo; falavam sobre bandas de rock. Não encontrando espaço entre os dois parças, Alberto saiu dali aborrecido, sorte que dali a dois dias viajaria de volta para a casa dos pais e à sua rotina de vida.
Na cozinha foi saudado pelas mulheres. Só agora percebia que se sentia mais aquecido próximo ao sexo feminino, fora assim a existência toda. Quiseram saber como tinha sido aquele negócio do exército e ele falou enquanto cortava generosas fatias de queijo com goiabada. Enquanto comia, a vizinha continuava sua fofoca. O tema em questão era o infortúnio de uma certa dona Margarida, uma mulher guerreira que tivera a má sorte de se casar com um homem que não valia merda, estivera preso cinco anos por homicídio e tráfico de drogas e agora retornava para casa bêbado quase todas as noites e infernizava a vida da pobre esposa, coitada - pessoa tão boa - e dos filhos pré-púberes.
Todo mundo tinha uma história triste pra contar, se a tal mulher tinha feito a burrada de se casar com um marginal, problema dela; Alberto não tinha paciência para esse tipo de conversa, discretamente saiu dali no exato momento em que o cabeludo se despedia do primo. "Ótimo, esse mala parou de alugar", pensou. O telefone tocou. "Fabiano, hoje eu vi um mulher gostosa pra caralho, eu vinha..." "É mesmo? Peraí, deixe eu atender essa droga!" Enquanto o primo respondia entusiasmado ao aparelho, uma espécie de sexto sentido o alertava para ficar calado acerca da mulher. No fundo Alberto achava o Fabiano tão babaca quanto os amigos caipiras dele. Saiu dali e foi tomar um banho. Depois disso foi procurar solidão, tentou ler um livro mas não conseguiu se concentrar. O espectro de Mariana começou a buscar espaço em sua mente. Sentia falta dela, dos lábios umidos, a pele alva e sedosa, o perfume dos cabelos. Pensou em perguntar para a tia o endereço da moça, escrever, tinha que vê-la, fazer algo, do contrário iria enlouquecer. Encolheu-se na cama mas não pode chorar; batidas na porta o impediram de continuar sua auto-comiseração. "Sim? Pode entrar." Era sua tia. "Betinho, está tudo bem com você, meu filho? Tenho achado você tão tristinho esses dias!" "Tô bem, tia, acho que estou com saudades de casa, dos meus pais, sabe?" "Ah, eu entendo, mas depois de amanhã você estará com eles, então, aproveite o tempo que tem com a gente."
A tia era uma boa mulher, tão atenciosa e meiga quanto sua mãe, sempre teve um carinho especial por ele. "A senhora está certa, titia, desculpe." "Venha jantar, eu fiz lasanha especialmente para você." "Obra!!!" Na verdade ele não tinha fome, mas não podia entristecer a mulher com sua falta de entusiasmo. Comeu pouco mas alegou que tinha exagerado no queijo com goiabada.
Os primos inventaram de ir ao cinema, ele achou a ideia boa, precisava de distração. O filme em cartaz era O Homem Que Queria Ser Rei com direção do John Houston, ele já tinha assistido com seu pai, era um ótimo filme, mas a cópia estava ruim, o som era baixo, as cadeiras do velho cinema daquele município eram de madeira e pra piorar estava cheio de pernilongos.
O retorno para casa foi bem mais legal, um grupo de uns dez jovens alegres, despreocupados, rindo, sem pensar no amanhã. É claro, pensar para quê? Tinham toda uma existência à frente, as mazelas do mundo ainda não haviam maculado suas vidas. Então vamos rir, celebrar. O cheiro do mato, as estradas de chão iluminadas pelo luar, o firmamento pontilhados de estrelas trouxeram conforto à alma melancólica de Alberto. Embalado por essas emanações ele teve uma noite de sono tranquila.
A manhã seguinte foi cortejada por fortes chuvas. Alberto despertou ao som de um forte ribombar de trovão. Uma desagradável sensação de bexiga cheia o obrigou a levantar e ir ao banheiro, tonto de sono, voltou ao leito para acordar três horas mais tarde, faminto. No desejum comeu ovos mexidos com presunto, queijo de minas, mamão, leite e torradas.
"Betinho, você faria um favor para mim?" "Claro, tia, o que é?" "Seu tio ligou dizendo que vai demorar e eu preciso de uma coisinhas do mercado, fiz uma listinha." "Vou agora mesmo!" "Você é um anjo."
Munido de disposição e um guarda chuva, o rapaz se dirigiu ao centro comercial daquela cidadezinha, como tinha medo de sapos, optou por não usar o caminho do rio onde teria que cruzar a ponte, foi pela via mais longa.
Caminhando com cuidado para evitar as enormes poças de água barrenta, o moço subia a ladeira quando ouviu alguém chamar: "Mocinho! Hei, mocinho!"
Só ali se deu conta que estava bem em frente à casa da mulher que observara na tarde anterior e para sua surpresa era ela mesma que o chamava. "Suba aqui, mocinho, por favor!" "Eu...é, bem....sim, senhora."
Trêmulo, com o coração descompassado, ele galgou acanhadamente os degraus que o levariam à deusa que o convidava.
Quando esteve frente a frente com a mulher, mal pode acreditar. Um largo sorriso de dentes perfeitos, um nariz vigoroso, belo, porém, olhos de um verde magnético que hipnotizavam. "Você é o ssobrinho da Celeste? Como você cresceu!" "Ah...a senhora me conhece? Conhece minha tia?" "Claro, eu e sua tia somos amigas há muitos anos. Meu nome é Margarida, você era garotinho quando eu ia à casa dela, não lembra de mim?" A tia tinha tantas conhecidas que decerto ele não lembraria, entretanto agora jamais a esqueceria.
"Desculpe te chamar assim, mas você está indo ao comércio?" Ele moveu a cabeça afirmativamente; Estranho, ela parecia menor, vista de tão perto. "Me faz um favor? Preciso de um xarope da farmácia. Meu caçula está com uma tosse terrível, teve febre esta noite. Não posso sair, meu marido está em casa mas passou a noite bebendo com amigos e agora dorme, com ele não posso contar. Compra pra mim?" "Claro" "Oh, muito obrigada, você é um ótimo rapaz! Tome, aqui está o dinheiro e o nome do remédio."
Enfiou o papel e o dinheiro no bolso e ouviu-se o estatelar de um trovão. A chuva intensificou sua força.
"Nossa, que dilúvio! São Pedro quer nos castigar hoje!", ria a mulher de modo forçado. "Desculpe receber você assim na varanda e não te convidar a entrar, mas meu marido, sabe... ele não é muito simpático, sabe como é...." "N-não, não tem nada não....é melhor eu ir, minha tia também precisa das coisas dela." "Claro, claro, olha, me desculpe por te dar esse trabalho." "Queísso, não é trabalho nenhum."
Desceu com cuidado a escada íngreme e retomou seu caminho.
Margarida, marido complicado....seria ela a mulher que falavam na véspera?
O jovem fez as compras ainda sob o encanto daquele encontro. Absorto, embasbacado, pensava na mulher agora com certa piedade. Como uma criatura daquela pode se casar com tal homem?
No retorno a chuva tinha parado. Ele começava de novo a sentir o coração pulsar mais forte e a garganta ressequir outra vez. Subiu as escadaria que o levaria à presença da deusa. Ficou em frente à porta meio sem saber o que fazer quando abruptamente ela se abriu e o que se apresentou diante dele não foi nenhuma ninfa, mas um sátiro.
"Hei, quem é você? O que quer aqui?"
O indivíduo era de estatura mediana, mais ou menos a altura de Alberto, tinha um tórax largo, os braços peludos e tatuados, trajava camiseta branca e calças de pijama. Seus rosto era de uma beleza máscula, uma cicatriz na sobrancelha direita e a barba por fazer acentuavam-lhe o ar feroz, de animal acuado.
"Ah.... a dona Margarida está?" "Que é que cê qué com ela, rapaz?" "É...ela me pediu pra comprar um xarope para o filho....sou sobrinho da tia Celeste....quer dizer, da dona Celeste, da rua ali de baixo...." "Celeste, sei quem é." "Bem, tá aqui o xarope e o troco." "Ah, valeu mesmo, quer entrar?" "Não, não, obrigado, só vim trazer isso, eu preciso ir." "Tá certo, eu falo pra Margarida que cê veio trazer o remédio."
Alberto apressou-se a sair dali.
Chegando em casa, entregou as coisas para a tia e foi tomar um banho. Ao sair, os primos o convidaram para passear após o almoço. Agora que Margarida aparentemente tomara o lugar de Mariana na sua mente, ele não sentia vontade de estar com ninguém, mas não podia deixar que percebessem.
Pouco depois da hora do almoço o sol surgiu em todo o seu esplendor trazendo consigo uma forte sensação de abafamento, todos concordaram que um sorvete cairia bem e deveria ser tomado na lanchonete da praça. Lá foram eles, os primos e mais dois amigos vizinhos. Alberto embora risse e conversasse, estava ausente. Sua cabeça divagava entre Margarida, Mariana e sobre o que faria de sua vida assim que retornasse para seu lar. Um conflito de proporções épicas se dava em seu interior.
Voltaram para casa por volta das três horas. Já na varanda ouviram uma conversa animada que vinha lá da cozinha. Alberto reconheceu o som daquele riso: Margarida, a deusa do tanque de roupas! O coração acelerou de tal maneira que ele pensou que fosse desfalecer.
"É, pessoal, eu.... é....eu preciso de uma ducha, caramba, que calor, né?" Sua tia chamou-o. "Betinho, venha cá por favor, tem uma pessoa aqui que quer revê-lo."
Não, não podia ir, não sabia explicar porque mas precisava fugir daquele encontro como se sua vida estivesse em risco. "Ah, j-já vou, titia....deixa só eu tomar um banho e então..." "Nada disso - falou o primo - vai lá, eu vou dar uma cagada, depois cê toma seu banho."
Antes que pudesse dar outra desculpa sua tia e Margarida entraram na sala. "Lembra dela? Esta é a Margarida, uma querida amiga que sumiu por uns tempos mas agora voltou a dar o ar de sua graça. Ela vinha muito aqui quando você era menor, lembra dela?" "N-não, não lembro, não.....é...desculpe."
O rapazola não conseguia vencer seu descabido nervosismo, logo ele que sempre fora tão auto-controlado. É como se diante de todos não conseguisse esconder a irresistível atração por aquela que nas últimas horas se tornara seu objeto de desejo maior.
"É claro que não poderia se lembrar, quando eu vinha aqui você era um menino elétrico que só pensava em brincar com os seus primos."
Tentou evitar o olhar magnético daquela que lhe falava.
"Betinho, tá tudo bem, meu filho? Está pálido!"
"Pálido, eu? N-nããão! Nada disso. É....que a dona Margarida veio me ver e eu não lembro dela....."
"Ah, que bobagem, esses adolescentes não passam de crianças crescidas, hahahaha......ih, esqueci as torradas no forno! Esperem, já volto."
A tia correu à cozinha e as primas foram para o quarto com risinhos reprimidos deixando o rapaz mais leve. Notou que seu nervosismo agora só se exacerbava com a presença de outros, a sós com Margarida ele recuperava seu domínio.
"Nem te agradeci pelo favor que me fez." Ela disse isso olhando penetrantemente em seus olhos. Os olhos verdes e profundos como o oceano. Ele se sentiu como um passarinho hipnotizado por uma serpente. "Não posso demorar aqui, tenho um marido chato lá em casa que acabou de sair da prisão, mas as cinco horas ele vai para um carteado com uns desocupados como ele. Apareça lá em casa umas seis horas pra gente conversar um pouco." Ao som desse convite Alberto teve uma ereção tão violenta que teve que se curvar de modo disfarçado. Margarida sorriu seu sorriso de dentes perfeitos e deu meia volta encaminhando-se para a cozinha e de lá despediu-se da amiga desculpando-se por não poder lanchar pois o marido bruto a esperava.
As horas seguintes foram passadas na mais intensa expectativa. Tentou ver tv, não conseguiu, quis ler mas não lograva concentração. Como iria embora no dia seguinte, os primos quiseram adula-lo ficando próximos, convidando para passear pelos campos mas ele recusou, queria ficar só. "Nossa, cê tá estranho, tá chato!" Ele não respondeu. Deixou-os sem grandes explicações. Foi tomar banho, pensava em Margarida debaixo do chuveiro mas não conseguiu se masturbar, estava ansioso demais. Saindo do banheiro sentiu-se exaurido, culpado, teve saudades dos tempos de outrora com seus primos queridos. Porque tudo tinha mudado? Porque tudo tinha que mudar? Entrar para a vida adulta era isso? Ter todas essas sensações que o faziam sofrer?
Olhou o relógio. Já passava das seis, a tia logo iria chamá-lo para jantar, não tinha fome, Margarida era encrenca, o que esperava dela? Não, não iria à sua casa. Ficaria com seus tios e primos, era mais honesto. No dia seguinte à tarde ele embarcaria de volta à casa dos pais e não veria esses parente por muito tempo...... por outro lado.....por outro lado, que mal haveria em conversar - só conversar - com uma amiga de sua tia? Ela estaria junto aos filhos, qual o problema? O marido, o ex-presidiário, condenado por tráfico e homicídio, esse era o problema.
Dilema.
Contudo, o lado sombrio de todo o ser humano cedeu à tentação. O desejo de pelo menos ouvir a voz da perdição o fez ignorar a sensação de culpa por sair sorrateiro aproveitando que não havia ninguém ali para indagar onde iria e ganhou a rua que recebia os últimos raios do poente.
Olhava para os lados, atrás de si, para se certificar que não era observado ou seguido.
Quando se deu conta já subia as escadarias. Em frente à porta, novamente a dúvida. O que ele estava fazendo ali? E se o tal marido tivesse desistido do compromisso?
As mãos suavam, mas inconsequentemente, munido de uma coragem própria dos insensatos, bateu na porta.
Margarida abriu.
"Finalmente, rapaz, achei que não vinha, pensei que estava com medo de alguma coisa." A mulher falava de modo atrevido, como se ele não fosse um recém conhecido. Alberto respondeu ao desafio: "Devo ter medo de alguma coisa?" "Aí depende..." "Depende de quê?" "De quais são as suas intenções." "Não tenho intenção alguma." "Eu duvido." Ela venceu. Ele cedeu novamente à timidez sorrindo sem graça. "Entra."
O ambiente era composto por mobília modesta mas bem arrumada. A tv ligada na novela das seis. Reproduções de paisagens ornando as paredes. Um cheiro gostoso de torta salgada recindia pela casa.
"Estou fazendo torta de frango, receita da sua tia, você gosta?" Ele a seguiu até a cozinha. "Margarida, e seu marido?" "Não se preocupe, ele foi, como sempre, jogar e beber com os conhecidos dele, não vai voltar tão cedo, e se voltar, qual o problema? Digo que você veio buscar parte dessa torta para sua tia." "E seus filhos, estão onde?" "Eu os levei para brincar com os filhos da comadre. Você poderá conhecê-los depois." "Será? Vou embora amanhã." "É, eu sei." Ela baixou os olhos; no rosto um quê de consternação. Se o rapaz tivesse experiência de vida advinharia que aquela mulher era manipuladora e que aquela expressão deixava entrever frustração por não ter controle ainda sobre a vida dele.
"Margarida...porque me chamou para vir aqui?"
Ela ergueu os imensos olhos verdes. Fitou-o de forma intensa e num instante colou-lhe um beijo. Naquele ato apaixonado, línguas se entrelaçaram, dentes se arranharam, as salivas se misturavam enquanto a linha pélvica se insinuava procurando sua ereção. Sussurrou em sua orelha, "te desejei desde que vi você me comendo com os olhos na tarde de anteontem." "Você me viu?" "Sim, eu vi. Te senti me devorando....vai, me abraça."
As mãos desajeitadas do mancebo apalpavam o traseiro carnudo da mulher. Num momento ela o puxou pela mão até um quarto com duas camas, parecia ser o local onde dormiam os filhos. Sofregamente ela desafivelou o cinto do rapaz, abriu-lhe o zíper abaixou-lhe a cueca e deixou escapar o membro palpitante. Olhou por uns instantes como a medir suas dimensões e enfio-o na boca como sinal de aprovação. Ao ser chupado, o calor daquela língua mentirosa a massagear-lhe a glande, sentiu a chegada do orgasmo. "P-pare...eu vou....gozar..." "Vai, vai na minha cara, a primeira é mais abundante..."
Correntes elétricas percorreram suas veias concentrando-se nas pernas, sentiu os testículos se espremerem, o pau parecia aumentar de tamanho, o dique se rompeu e golfadas viscosas banharam a boca e a face da mulher, a força sendo drenanda dos músculos. Ele teve que se reprimir para não gritar. "Isso, isso", dizia ela.
Encostou-se na parede. "Vou lavar o rosto, já volto." Alberto deixou-se escorregar até o chão naquele ambiente semiescuro. Na confusão mental provocada pelo clímax, ele não pode discernir se isto teria consequências nefandas, não queria pensar nisso, e nem poderia, num segundo ela voltou. Ele, com as calças nas canelas, sentado no chão, encostado na parede, ela de pé ao seu lado, sombria naquele ambiente caliginoso, levantou a saia estampada. Virou o traseiro na direção do seu rosto. "Vai, lambe essa bunda grande." Ele aninhou o rosto no meio daquelas duas enormes melancias de carne, um suave cheiro de intimidade feminina invadiu suas narinas devolvendo-lhe a ereção. "Garoto novo é bom por isso, sussurrou ela, fica em forma rapidinho." Baixou a calcinha, ele divisou um triângulo abundante de pelos negros no meio das fartas coxas da mulher. Cheirou seu sexo. Se embriagou. "Ui, não, sinto cócegas", riu ela um riso de puta. Sentou-se sobre ele, pegou-lhe o pênis rijo e encaixou na gruta molhada e num instante o moleque se sentiu engolido por um buraco úmido e quente.
A fêmea cavalgava o adolescente com um gemido comedido, lembrando uma gata no cio. Aquelas ancas enormes com movimentos ritmados, por vezes provocavam uma gastura, machucando a região pubenta do jovem, ele contra-atacou cravando-lhe as unhas na bunda suculenta.
A respiração ruidosa aumentando de intensidade prenunciava o clímax da mulher, ele deixou de se segurar e no momento em que ela travou os músculos vaginais em torno do seu cacete, explodiu, banhando-a por dentro. Ela sentiu. "Assim, meu lindo, vai", sussurrava.
Exaurida, deixou-se cair sobre ele. Sentiu-a suada sobre seu rosto, o perfume suave daqueles cabelos. Nunca encontrara alguém assim e jamais encontraria. Acariciou-a, ela beijo-lhe a boca com paixão. "Meu lindo... meu lindo!" Ainda dentro dela sentiu o pau se intumescer novamente. "Ei, mas você é danadinho, né?" Riu. "Se estivéssemos num lugar onde ninguém nos incomodasse transaríamos a noite toda."
Nesse momento batidas na porta interromperam a magia. "Céus! Será seu marido?" Sussurrou o rapaz em pânico. "N-não, não pode ser, ele não bate assim, deve ser a comadre. Fique aqui." A mulher levantou-se. Novas batidas. Ela olhou-se no espelho, ajeitou-se e foi atender.
"Oi, comadre, tudo bem?" "Ah, Margarida, o Netinho tava enjoadinho, chorando, queria vir para casa." "C-claro, Fez bem em traze-los, só ia terminar de lavar a louça e ia busca-los, ele teve febre a noite retrasada."
Alberto ouvia isso aliviado enquanto aprumava as calças, entretanto teve o bom senso de furtivamente enfiar-se no banheiro, se os pequenos o vissem poderiam dizer ao pai.
"Obrigada, comadre, desculpe o incômodo." "De nada, meu bem, sempre às ordens."
No escuro do aposento, o moço ouviu passos infantis correndo para o ambiente onde estivera. Uma voz argentina feminina se fez ouvir; "Manhê, tá um cheiro estranho aqui no quarto!" "Bobagem, minha filha, fica aí dentro com seu irmão, que eu vou no banheiro e já volto." "Mas, mãe, eu quero ver televisão." "Ritinha, me obedeça ou vai apanhar, não sai daí, eu já venho."
Atento ao barulho da porta, o rapaz saiu e se encaminhou para à saída, seguido por Margarida. "Nossa, ainda bem que você teve presença de espírito, senão eu ia ter que inventar uma bela história!" "Tá, tudo bem, olha é melhor eu ir...." "É, vai, é melhor, meu menino não está muito bem...ui!" "Que foi?" "Tô...tô sentindo seu leite descer pelas minhas coxas!" Riu com malícia. "Ah...." "Vá meu querido, amanhã a gente se fala."
Ela fechou a porta e ele desceu cautelosamente as escadas. Estava com as pernas bambas. Antes de dobrar a esquina olhou para trás e a teve a impressão que era observado mas ao entrever atentamente a rua mal iluminada não divisou ninguém. Talvez fosse paranóia causada por um sentimento de culpa que ele lutava para manter enclausurado no subsolo de sua mente. Ele pelejava para se convencer de que não fizera nada errado, afinal foi uma mulher mais velha que o seduziu, ele não procurou ninguém, e depois, o velhaco do marido não a maltratava? Ele merecia isso mesmo, ser corneado sem dó nem piedade. Vagabundo! Safado!
Ao chegar em casa encontrou a porta aberta. Ninguém à vista, ótimo, assim ele toma banho e vai para a cama sem dar explicações; qualquer coisa ele diz que teve uma dor de cabeça, uma indisposição e foi dormir cedo.
Entrou no banheiro, se despiu. A água morna do chuveiro fez brotar a fragrância agradável da pele de Margarida. Instigado pelas lembranças das loucuras que fizera com a mulher, se masturbou. Em pouco tempo ejaculava de novo. Uma aflição terrível se apoderou dele, pensou que fosse desmaiar, a água agora lhe era insuportável. Teve sede. Se enxugou e cingiu a toalha na cintura. Ao sair, quase caiu para trás com o susto.
"T-tia....caramba, quase tenho um treco!!!"
A tia o fitava séria; o semblante duro, em nada lembrava aquela senhora meiga.
"Posso saber por onde o senhor andou?" "Eu? É...ah, nenhum lugar especial, estava entediado e e fui caminhar um pouco." "Como hoje é sua última noite aqui, nós íamos todos jantar fora, naquele restaurante que você tanto gosta, na cidade vizinha, mas você sumiu!" "Poxa, tia, desculpe, eu...ando meio deprimido, sabe, queria ficar sozinho, eu não sabia...." "Você por, um acaso, não foi à casa da Margarida, né?"
O rapaz ficou lívido, sentiu-se descoberto, nu perante um juri implacável.
"N-não...claro que não, eu mal conheço aquela mulher, o que eu iria fazer lá?"
A tia abrandou o olhar. "Sente-se aqui, quero te falar uma coisa." "Posso me trocar primeiro?" "Não, depois você se troca."
Alberto se sentia espavorido, suas mãos suavam e sua voz o denunciava.
"Olha, Betinho, entendo que a transição da adolescência para a vida adulta pode ser difícil para alguns jovens, principalmente um sensível e sonhador como você; sei que sua relação com Mariana não acabou bem." "Mariana? Mas...." "Não tente negar, meu filho, eu tenho experiência de vida. Aquela é uma moça desmiolada e eu fiquei na minha por respeitar seu silêncio e se você anda estranho por causa dela, não me preocupo pois sei que logo você vai superar, mas a Margarida...." "Mas, tia, eu...." "Escute o que eu tenho pra te dizer, eu vi os olhares que ela te lançou esta tarde. Ela é uma boa mãe, é trabalhadeira mas é inconsequente. Todo mundo sabia que o Durval não valia nada, ela principalmente, no entanto, se casou com ele."
O moço não gostava do que ouvia mas resignou-se.
"Dois anos atrás, enquanto ele cumpria pena, ela se envolveu com um rapaz uns dois anos mais velho que você, tempos depois ela o descartou e arruinou a vida dele; menos mal pois se o Durval ficasse sabendo, aquele moço perderia algo mais que o brio." "Olha titia, nem sei porque a senhora está me contando isso, a vida dessa sua amiga não me interessa." "Espero mesmo, Betinho, porque eu não ia me perdoar, afinal eu permiti que ela entrasse aqui e falasse com você. Margarida e Durval se merecem. Ele é frio, é metido com todo tipo de coisa ruim que pode ter nesta vida! Fique longe deles." "Não se preocupe - ele tentou transmitir segurança na voz - não tenho nada com este povo, não os conheço e nem quero!"
Como que acreditando, ela lhe sorriu. "Desculpe, querido, falar assim com você, nem sei o que pensei, temi por sua segurança." Beijo-o na face. "Vá, vá se trocar e venha jantar.
Ele não tinha fome, mas procurar solidão agora só iria aumentar a desconfiança da tia.
"Tá certo. Onde estão os outros?" "Como você não aparecia eles foram ao tal restaurante e eu fiquei te esperando."
Esforçou-se para comer e ouvir a conversa fiada da mulher, que ia das grandes profissões do futuro às fofocas de família. Antes ele a ouvia com prazer, agora aquela jovem senhora, irmã da sua mãe, lhe era insuportável.
Após momentos torturantes na companhia do tio e dos primos que chegaram logo depois, ele se deitou; estava alheio a tudo, ao frio, ao calor. Martelava-lhe no cérebro as palavras da tia. Paixão, ciúme, medo, cólera. Dormiu envolvido por essas sensações. Teve pesadelos. A cama lhe parecia ora fria, ora quente demais. Quando notou, a claridade expulsava a escuridão do quarto.
Uma sensação de ressaca lhe oprimia os músculos, uma forte intuição de desgraça eminente azedava aquele alvorecer. A irmã de sua mãe estava certa, ele fizera uma loucura, se meteu num vespeiro. Ontem, na casa da Margarida, ao invés da vizinha podia ser o tal do Durval, então, o que poderia ter acontecido? Uma desgraça, talvez morte, vergonha e vitupério. E porque? Por causa de uma mulher irresponsável, inconsequente? Estava decidido, não iria sair da cama até que estivesse na hora de viajar. Quando mais cedo ele esquecesse aquele ocorrido, melhor para todos.
Acalentado por essa determinação foi dominado por um sono embriagador.
Despertou confuso, sem saber qual era sua posição no quarto, as cortinas ainda estavam cerradas. Que horas seriam? Consultou seu relógio de pulso no criado mudo, 9:32. Impaciente, não conseguiu cumprir a promessa de se manter no leito até a hora da partida. Foi ao banheiro, urinou, fez a higiene e encaminhou-se até a cozinha.
"Olá, pensei que não ia acordar mais, Betinho!" "Oh, oi, tio, bom dia. Onde estão todos?" "Ah, seus primos em época de férias sabe como é, não param em casa. Sua tia foi fazer umas compras e já, já ela estará de volta. Prepare seu café." "Só vou tomar um copo de leite, se comer agora não terei apetite para o almoço." "Você quem sabe. Olhe, sairemos daqui logo após o almoço, coisa de meio dia e meia, seu avião decola as 15h, daqui até a cidade, com trânsito tranquilo dá menos de uma hora, teremos mais algum tempo juntos." "Certo, muito bom."
O telefone tocou e o tio foi atender. Enquanto bebia seu leite o rapaz olhava pela imensa janela do cozinha. As árvores do quintal, as bananeiras, os pés de jabuticaba, as roseiras de sua tia hoje já não lhe traziam alento, parecia estranho a tudo isso. A manhã estava nublada, apática, volúvel.
"Alberto, você me faria um favor?" "Claro, tio, o que é?" "Meu sócio me ligou, eu preciso enviar dois documentos para ele. Um cliente nosso antecipou uma reunião e ele precisa disso em meia hora. Eu mesmo iria mas estou esperando um telefonema." "Sem problema, seu sócio fica no posto de gasolina pela manhã, né?" "Isso mesmo, chame o Fabiano para ir com você, ele está no vizinho ao lado." "Ok."
No tempo que o homem foi buscar os papeis, Alberto refletiu. Não queria ir embora sem ver Margarida uma última vez, se despedir de forma adequada. A tia fora e este favor ao tio parecia providencial. Talvez uma insanidade, mas pior ele fizera na tarde de ontem.
Pegou o envelope da mão do tio e ignorou a recomendação de chamar o primo. Mais uma vez ele evitou o caminho da ponte que o deixaria mais rápido no centro. Tinha dois motivos para isso, evitar de encontrar a tia no percurso e acima de tudo reencontrar aquele hipnóticos olhos verdes que o guiavam ao abismo dos imprudentes.
Cismado, ele obstinadamente olhava em torno de si, temia que alguém o estivesse observando de algum ponto, escondido. Mas fora algumas crianças que brincavam na rua aquela hora, não havia nada que pudesse temer.
Contendo os nervos, bateu na porta, com uma lorota pronta caso outra pessoa viesse atender. Mas quem abriu foi a deusa do tanque de roupa. Séria, mas de olhar acolhedor.
"Entre." "Seu marido não está?" "Ele nunca está, saiu bem cedo, nem sei onde se meteu. Recebeu um telefonema ontem a noite e ficou nervoso andando pela casa, não quis me dizer o que era e pra falar a verdade, nem quero saber...se eu pudesse eu me livrava desse homem."
"Olhe, eu nem deveria ter vindo, minha tia ontem ficou desconfiada, me falou um monte de coisas...." "Coisas sobre mim, não é?" "Também." "Não me importo, desde que eu fique na sua memória, as lembranças dos poucos momentos que passamos juntos."
"Margarida, eu....eu..." "Shhhhh - fez ela com carinho - você veio aqui tentar por em ordem a confusão que está na sua cabecinha. Sei que você vai voltar para seus pais hoje e não vai voltar tão cedo. É melhor assim. Vá tranquilo. Siga sua vida. Eu estou bem."
"Mesmo? Puxa, eu fico aliviado, quer dizer, tive medo que você pensasse que eu....sei lá...." Então ela o beijou, não com a fúria e o ardor da véspera, mas um beijo cálido, beijo de despedida.
"Sabe, se eu pudesse, eu não iria embora." "Mas você deve, não há nada para você aqui." "Tem você..." "Alberto, não posso mudar a minha vida, mas há todo um futuro à sua frente." "Mas...mas eu me preocupo com você...." "Eu sei, mas eu vou ficar bem. Agora é melhor você ir, o Durval pode chegar a qualquer momento aí, sim, posso ter problemas." Ativado por essa lembrança ele se apressou.
"Não vou te esquecer, Margarida!" "Nem eu." "Olha..." "Por favor, vá. Não torne isso mais difícil. Você sabe o quanto te quero, mas o melhor para nós dois é que você vá em paz!" Dizendo isso ela fechou a porta.
Ele ganhou as ruas um tanto acabrunhado mas ao mesmo tempo aliviado por estar deixando atrás de si uma situação que fugia ao seu controle. Era como um remédio desagradável que o curaria de uma doença.
Atravessou a via férrea afogado em pensamentos que se interpunham e quando se deu conta lá estava ele no posto de gasolina do sócio do seu tio entregando a encomenda.
No retorno passou pela barbearia para se despedir do filho do dono, que era um moço legal, conversaram um pouco, ambos com sede, beberam um refrigerante na padaria. Sentiu-se leve, suavizado. O relógio da igreja anunciava 10:30h. Acelerou o passo de volta para casa pelo mesmo caminho que veio. Estava bem, vivera nessas férias duas insólitas histórias de amor, havia sobrevivido ao caos. Esses pensamentos davam agilidade aos pés, ora corria, ora parava. Nesses momentos seu lado criança emergia, em sua cabeça ele se via como os heróis dos seriados japoneses. Ele vinha do espaço para salvar a terra dos monstros invasores. O prédios caiam em volta de si, as criaturas lançavam seus raios, as aberrações o abatiam; Margarida, Mariana, sua tia e primas choravam sua desgraça em meio aos escombros e ao caos, mas num momento, quando tudo parecia perdido ele se levantava triunfante, raios que saem de seus olhos e armas que se materializa em suas mãos pelo poder de sua vontade, destroem os alienígenas e ele salva com seu poder cósmico os carros e as crianças dos edifícios que desabam em chamas; ali, gigante em meio ao pó e a negra fumaça, ele vitorioso, nem nota o júbilo de suas amadas. Quando ele se prepara para alçar voo em direção à solidão do espaço sideral, uma voz o chama à realidade:
"Ei rapaz, você! Sobrinho da Celeste!"
Olhou atrás de si. Ali vinha Durval. Resoluto. O ex-presidiário, de camiseta, bermuda e chinelos de dedo. O traficante e homicida. De cicatriz na sobrancelha e corpo peludo, com expressão feroz e tatuagens nos braços.
O jovem não tinha notado mas estava sobre os trilhos dos trens.
Uma voz furibunda, mas contida, saiu dentre os dentes do bandido: "O que há entre você e minha mulher, seu babaca?"
" O-o q-quê? Do que cê tá falando?"
Rápido como um raio o homem o agarrou pela gola da camisa, sentiu os nós dos dedos pressionarem seu gogó.
"Não tente negar, eu conheço a minha mulher, ela está me evitando, agindo estranho. Me falaram que você esteve ontem a noite lá em casa e hoje de manhã também. Não negue, seu merda, não negue!"
Era uma situação totalmente nova, o rapaz não sabia como reagir. "N-não há n-nada, cara..... so-somos apenas amigos....juro! Ela é amiga da...minha tia....!" A voz do mancebo saía boca afora num tom esganiçado de súplica mesclada ao desespero.
"O caralho! O caralho! Olha aqui pivete, eu já tive duas detenções, convivi com bandido da pior espécie, assassino, estuprador e o caralho a quatro, todos valentões e eu comi o cu de todos eles, literalmente. Fodi o rabo de cada um daqueles merdas e tu pensa que pode me por chifres e vai ficar elas por elas? Hein, seu bosta, hein!" Enquanto falava o meliante lançava perdigotos, dava pra sentir o hálito de café. Alberto estava em pânico. Nãos sabia o que pensar ou o que dizer.
"Sabe o quê? Se tu num tá comendo a Margarida é porque cê deve ser bicha, e pra provar isso cê vai chupar minha pica, aí vou acreditar que cê é viadinho e não tá trepando com a minha mulher, aí não te dou uma surra!"
Dizendo isso, o marginal começou a arrastá-lo para a mata cerrada que ladeava a estrada de ferro. Movido por uma sensação de terror o moço ofereceu resistência. Durval, num acesso de ira, deu-lhe uma violenta bofetada no rosto. "Cê tá me resistindo moleque? Tá pensando que pode comigo?"
A aflição que sentia, por um momento deu lugar a uma raiva incontrolável, jogando tudo por tudo, o garoto lançou um murro na cara do antagonista, deu até pra sentir a barba por fazer arranhar sua mão, mas foi como bater numa parede, o vilão mal moveu o rosto. "Ahhh, seu merda!"
O menino sentiu um violento soco na boca, que de tão rápido, nem viu de onde saiu. Ato contínuo, uma joelhada no saco que o lançou por terra. Louco de dor e humilhação, o jovem mal discernia o que estava sucedendo. Num formidável chute que o bandido lhe deu nas costelas, notou a unha do dedão ferir-lhe a carne. Urrou sentindo o ar escapar-lhe dos pulmões. Nas ondas de dor em que estava envolvido a voz escarnecedora do meliante lhe soava etérea, irreal. "Tu é um merda, garoto, um titica, pode crê, ainda não acabei contigo!"
Nauseado, respirando com dificuldade, ouvindo aquela voz desdenhosa, Alberto sentiu tal angústia no peito que liberou uma forte carga de adrenalina, um ódio irreprimível que tomou conta do seu ser num crescendo que tudo mais pareceu não importar, o chão ali era pedregoso, tateando, ele pegou uma pedra de tamanho médio, segurou-a com tanta força que sentiu a palma doer e então, levantando-se como pode, arremessou nas fuças do adversário atingindo-o em cheio. Ele, porém, não caiu, um grito que se assemelhava a um rugido escapou da boca ensanguentada do homem: "Porra, o que cê fez?!?" Incrédulo, diante da reação do rapaz, olhando o sangue viscoso que caía copioso do nariz para as mãos, ele urrava: "Porra, m-moleque, o que tu fez???"
Ainda segurando a pedra enquanto Durval cambaleava para trás, o moço, com sanha homicida, desferiu-lhe um novo violento golpe, desta vez na têmpora esquerda. Um feio talho se abriu como uma boca vomitando sangue e em câmera lenta, o homem arqueou-se e caiu pesadamente de costas sobre cascalhos e dormentes.
Zonzo, ainda com o pedaço de concreto nas mãos, Alberto divisou o inimigo ensanguentado, largado nos trilhos; não o viu se mexer. Olhou em volta, nada, ninguém, nem mesmo os som de uma ave. Arremessou a pedra bem longe, em direção ao matagal. Com as forças que lhe restavam, correu respirando sofregamente pela dor nas costelas magoadas. Tudo perdido! Estava aniquilado! Não só iria pra cadeia se tivesse matado Durval, como teria que enfrentar o aviltamento dos tios, primos, Margarida e o desgosto dos pais, o arruinamento de sua vida! E se o marginal tiver sobrevivido, viria se vingar de alguma maneira.
O desespero por essas possibilidades deram-lhe, apesar de tudo, frieza para pensar que em pouco tempo estaria viajando para longe desse lugar, dessa trágica situação. Precisava acelerar o processo, ir embora o quanto antes. Primeiro, ao chegar em casa precisaria explicar os ferimentos. A angústia deu-lhe uma ideia. Entrou por uma trilha à direita da estrada que ia dar na chácara do seu Osvaldo, um simpático senhor que possuía algumas cabeças de gado e o seu touro era bem conhecido por ser bravio. Por duas vezes já havia corrido atrás de uns garotos desavisados que foram surrupiar algumas frutas.
Agora, já respirando melhor, abriu a cancela onde as rezes pastavam. O Malhadão, como era chamado o boi furibundo, comia sua relva tranquilo, bem distante de onde ele estava. Ótimo - pensou - a última coisa que precisava era de um touro correndo atrás dele. Apressadamente atravessou o campo e foi até a casa do seu Osvaldo e bateu na porta.
Uma senhora magra, de aspecto caboclo, atendeu.
"Minha nossa, meu rapaz! O que houve?" "Eu...sou o sobrinho da dona Celeste da Rua Borba Gato. Vi uns meninos abrindo a porteira do seu sítio, fui fechar e o Malhadão correu atrás de mim..." "Ele chifrou você? Meu Deus!" "Não, eu escapei, mas caí ao pular a cerca, acho que estatelei em cima de alguma pedra oculta na vegetação."
Nisso, seu Osvaldo veio lá de dentro, era um senhor de aspecto distinto, nariz adunco, farto bigode branco, olhos azuis luminosos, usava óculos de aros dourados finos. "Eu conheço você, está tudo bem? O jovem repetiu a história bastante nervoso. "Mocinho, eu lamento muitíssimo e te agradeço por tentar impedir que meu gado fugisse." "A porteira ainda está aberta, não consegui fechar, o touro veio pra cima com tudo." "Certo. Joana, vai lá, minha santa, fechar a cerca. Eu vou levar esse moço a um hospital, a boca dele está muito inchada e sangrando." "Não, não precisa, tá tudo bem, mas se o senhor puder me levar em casa eu agradeço, minhas costelas estão doendo muito!"
Assim foi feito; qual não foi o alvoroço na casa dos tios ao verem Alberto chegar acompanhado e cheio de escoriações e saberem que que foi atacado por um bovino irritado!
O tio passou uma reprimenda no velho: "Seu Osvaldo, já não é a primeira vez que esse animal ataca os passantes! Precisa dar um jeito nisso!" O ancião baixou a cabeça sem ter o que argumentar. Alberto se sentiu desconfortável, sem nenhuma culpa no cartório, aquele senhor sofreria acusações infundadas, tudo para encobrir um possível crime. Com pedidos de mil desculpas e pondo-se à disposição para o que precisassem, seu Osvaldo se despediu.
A região lateral direita do rapaz apresentava uma mancha preto-arroxeada. "Cruzes, Betinho, meu filho! Como está feio isso! Vamos imediatamente ao pronto socorro." "Não, tia, não, por favor! Eu já estou melhor, fora o susto e o tombo feio, não foi nada, eu só quero me trocar e ir embora." "Mas...." "Por favor, tia!!!"
Ao notar o desespero na voz súplice do sobrinho, Celeste intuiu que havia algo mais por trás daquele incidente, algo muito mais grave e sórdido. Seu sexto sentido a alertou que talvez fosse melhor o garoto partir o quanto antes.
"Sei não, advertiu o tio, é melhor ver um médico, podemos remarcar o voo, já vi casos em que...." "Não! Acho que nosso sobrinho está ansioso para rever os pais, não vamos deixá-los preocupados. Ele garante que foi apenas uma queda. Vamos nos aprontar para ir ao aeroporto." Disse Celeste, resoluta.
Ainda mancando, com o lábio inchado e os testículos doloridos, o mancebo tomou seu banho e não sem dificuldade, vestiu suas roupas. Suas malas já estavam prontas.
Suas primas queriam mais detalhes do ataque do Malhadão, Fabiano ria e dizia que ele tinha sido um mané, sua tia, muito séria, quis saber o que ele ele tinha ido fazer na propriedade de seu Osvaldo, uma vez que aquela área não fazia parte do trajeto até o centro. Pego de surpresa, por um instante, Alberto ia dizer que fora até lá pedir uns jambos para levar para sua mãe, quando a campainha tocou.
"Ué, quem pode ser?" O coração do rapaz disparou.
"Salve, compadre!" Era o Lucena, sócio de seu tio no posto de gasolina.
"Então, já está pronto para partir, Alberto? Nossa! O que aconteceu com você, rapaz? " Deram um resumo do acontecido ao recém chegado, que fez cara de dó. Lucena era um simpático senhor alto, calvo, bigodes pretos bem aparados e um eterno sorriso desenhado no rosto redondo.
"Ei, já sabem da novidade? O Durval, marido da dona Margarida, foi encontrado morto na linha do trem."
"Jesus, Maria, José!!!" exclamou Celeste.
Alberto teve um enfraquecimento nos membros, seu coração palpitava como se fosse ter um ataque cardíaco. Como foi burro - pensou - devia ter arrastado o corpo para a mata fechada, levariam tempo até encontrá-lo e ele já estaria há milhas de distância.
"Dois tiros no peito, parece."
"Dois tiros?!?" Todos ficaram estupefatos.
"Como foi isto, Lucena?"
"A polícia prendeu dois suspeitos na saída da cidade após o Onofre, empregado do seu Aníbal, do acougue, encontrar o corpo do Durval todo ensanguentado na linha férrea. Um deles tava nervoso demais. Não sei bem como foi, mas encontraram uma arma com os caras. Só chamaram a atenção das autoridades por que começaram a brigar por passagem no terminal de ônibus, tinham pressa em sair daqui, parece. Eles confessaram que vieram da cidade grande atrás do Durval para executá-lo, mas juram de pés juntos que quando o acharam largado e ensanguentado na linha ele já estava morto, deram-lhe dois tiros só para garantir. Pelo que se comentam, eram dois marginais pé de chinelo contratados por um traficante da pesada que tinha contas a acertar com o Durval. Rixa antiga. Quando soube que ele estava em condicional, o seguiram até aqui e acompanharam seus passos. Afirma ter visto de longe um outro indivíduo abandonar o local onde o Durval estava caído."
Nesta parte da conjectura, Alberto sentiu os olhos de Celeste cravarem nele, porém ele permaneceu quieto, atento às teorias que já começavam a formular. Juntaram-se ao tio e ao Lucena outros dois vizinhos debatendo o assunto, uns acharam que era muita cara de pau dos assassinos admitirem que atiraram no infeliz e dizer que ele já estava morto quando o encontraram, como se isso fosse diminuir o peso da culpa deles, o tio refletia que se alguém tivesse matado o Durval antes da chegada dos assassinos devia ser alguém muito forte e muito valente, afinal, o marido da Celeste era um homem temido por todos, quem quer que fosse não devia ser da cidade para se meter com ele. Sim, mas quem poderia ser? Ora, isso não faz sentido, é claro que aqueles dois atiraram friamente no cara e agora inventaram essa só para confundir a polícia. Qualquer que seja a verdade foi muito bem feito, aquele vagabundo do Durval mereceu.
E assim continuava aquela conversa agoniante que feria os ouvidos de Alberto, e ninguém sequer citou a Margarida, como ela tinha reagido à notícia, como estaria se sentindo, era como se não fizesse parte da equação.
Depois de alguns cafés e muitos cigarros os homens foram embora deixando a família impactada com os últimos acontecimentos. Os primos perplexos comentando ainda o ocorrido, tal fato não tinha ainda acontecido naquela cidadezinha serrana tão pacata.
Não muito tempo depois todos entraram no carro e se encaminharam para fora da cidade, o centro estava em polvorosa devido ao assassinato, o veículo passou em frente à delegacia, foi possível ver Margarida em prantos, amparada por umas mulheres, entrando no local. Alberto sentiu compaixão, remorso e medo. Percebeu ali que todas as emoções dos últimos dias eram pálidas diante do espectro da morte e da culpa. Teria que conviver com aquilo. Ele tentava se convencer de que o marginal não tinha morrido por suas mãos e sim pelos que o alvejaram deitado lá, no pó.
Pararam em um restaurante para almoçar. Seus primos falavam trivialidades e ele tentava acompanhar, rir, ainda que por dentro chorasse por Margarida. Comeram bem e seguiram para o aeroporto. A costela magoada, os testículos doloridos não o incomodavam tanto quanto os olhos verdes de Celeste a fitá-lo pelo espelho retrovisor do carro como que tentando sondar sua alma. Ele evitou esse contato visual tentando se convencer que assim que embarcasse no avião tudo ficaria para trás e ele jamais voltaria a essa cidade.
E assim sucedeu. O tio apertou forte a sua mão, as primas o abraçaram e beijaram, Fabiano quase chorou ao se despedir do primo. Celeste enviou recomendações à irmã e ao cunhado mas não o abraçou, nem beijou, é como se ela soubesse toda a verdade e sua presença na vida dela tivesse se tornado abominável.
Ele caminhou pelo corredor que o conduziria até a aeronave, tomou seu acento. Não pensou em nada. Fechou os olhos e adormeceu pesado apesar das dores.