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domingo, 17 de dezembro de 2017

UM DIA NA VIDA DE UM DESENHISTA (um conto pintado com cores opacas bukowskianas).

Ed Palumbo era desenhista, tentava pagar suas contas com aquilo que conseguia desenvolver no papel. Não era uma vida fácil, nada na vida dele era fácil, mas ele sabia que tinha gente muito pior, pessoas morrendo de câncer ou vivendo em países com guerra civil, tentava se consolar com isto. Paulista de nascimento, farto da vida infrutífera e da agitação da selva de pedra mudara-se para Brasília onde residia numa quitinete da comercial 202 norte.

Morto de cansaço ele acordou ao som do telefone. Levantou-se para atender, o sol na janela da pequena sala anunciava que deveriam ser mais de 9 horas da manhã.
- Alô?
- Ed?
- Sim?
- É o Strumer, do Periódico do Planalto.
- Ah, sim, tudo bem?
- Tranquilo. Incomodo?
- Não.
- Seguinte, não vamos poder publicar aquela matéria que fizemos sobre aquele seu álbum de quadrinhos, infelizmente.
- Tudo bem.
- Olha, seu trabalho é ducaralho, mas tenho que te dizer, editores de jornal não se importam com tiros na cabeça e tripas espalhadas no asfalto, mas se incomodam muito com picas e bucetas, tá me entendendo? O teu trampo tem todas estas coisas, então não vai rolar.
- É uma pena, mas tudo bem, agradeço por você ter tentado.
- E olha que tentei mesmo, cara, sou teu fã! Quem sabe numa próxima?
- Pois é, quem sabe?
- Valeu, cara! Abração e sucesso com teu gibi!
- Obrigado!

Ed estava sedento, a cabeça doía, foi à geladeira e bebeu um copo de água, sentia o corpo pesado. Tornou a deitar-se. Estava frustrado, precisava que seu álbum de quadrinhos vendesse bem, o Periódico do Planalto era o tipo de veículo que se dissesse que merda fazia bem à saúde os leitores iriam correndo comer. O sono chegava de mansinho quando ouviu batidas na porta.
Levantou da cama e pôs uma camisa.
Atendeu; do lado de fora uma loura de olhos verdes sorria.
- Você é o Ed Palumbo?
- Sim.
- Amo seu trabalho, seus desenhos, seus gibis, amo você! Uma amiga me deu seu endereço. Poderia assinar este seu livro?
Ela estendia para ele sua primeira coletânea de tiras, lançada muitos anos antes, um trabalho fraco, mas que lhe deu uma passagem para o reduzido mercado das artes gráficas no Brasil.
- Claro! Gostaria de entrar?
- Oh, sim, obrigada!
Ao passar por ele, notou seu corpo escultural, ela usava um vestido de noite, verde brilhante, apertado.
Entregou para ele o livro e foi quando Ed notou que ela tinha pinças de caranguejo no lugar das mãos. Ele não fez caso disso e começou a autografar o tomo.
A loira caminhou até uma estante que havia na minúscula sala e se admirou:
- Nossa! Quantos livros de arte bacana você tem aqui! E estes são os que você publicou?!? Meu Deus, que relíquias! Amo seus trabalhos!
Ed reparou que a mulher tinha tentáculos de polvo como pernas e retirou seus livros da estante e começou a devorá-los com um bico cheio de serras, com uma fome louca e fazia um barulho horrível ao comer, ela parecia aqueles dinossauros alados. Neste ponto, Ed acordou. O barulho que ouvia era o de uma distante britadeira que vinha de fora.
Porra, que sonho escroto! pensou. Não dá pra dormir mais.

Fazia calor. O ventilador de teto estava com defeito e girava lento. Tinha fome mas estava com preguiça de ir na padaria da SQN 203 traçar um misto quente com vitamina de mamão e laranja, restava apenas comer alguns biscoitos recheados que tinha no armário da cozinha e tomar um copo de leite.
O telefone tocou.
- Sim?
- Senhor Palumbo?
- Ele.
- É da Imobiliária Novo Horizonte, tudo bem?
- Tudo.
- O seu aluguel está atrasado.
- Vocês disseram isto ontem.
- Bem, quando o senhor poderá pagar?
- Eu disse ontem e anteontem. Acertarei semana que vem com os devidos juros.
- Ah, certo, então. Desculpe incomodar e tenha um bom dia.
- Ok!

Palumbo sabia que o bonde da felicidade não passaria pela rua dele, se passou um dia ele não percebeu. Tinha 55 anos e havia avançado pouco na vida. Um tanto mais de dinheiro não faria mal,  só para ele não ter que passar por certos apertos. Pensando nisto ele discou um número.
Depois do que pareceu ser uma eternidade uma voz apática atendeu.
- Zezão?
- Ele mesmo.
- É o Ed Palumbo.
- Hei, falaí grande artista! Mito dos desenhos!
- Zezão, quando você vai pagar pela arte que me encomendou?
- Já terminou a nova que te pedi?
- Ainda não, mas você não me pagou pela anterior, tenho que quitar meu aluguel e abastecer minha geladeira, cara!
- Claro! Faz o seguinte: termine esta e eu acerto logo as duas no início da próxima semana. Vai entrar uma grana na minha conta e eu transfiro para você.
- Ok, combinado. Até!
- Falou, se cuida!

Se espreguiçou, preparou lápis, pinceis e sentou-se na prancheta. A arte encomendada não era difícil mas ele se sentia pouco motivado. Molhou o pincel na água e já ia colher a tinta quando a campainha soou. Ele se levantou e foi abrir. Era o Taveira.
- Diz aí, Ed! E foi entrando.

Taveira era um cara alto, ruivo, magro, difícil de especular a idade, devia ter de uns 25 a 30 anos, usava sempre roupas encardidas e cheirava como uma pessoa que não tomava banho há muito tempo. Sempre descabelado e mal barbeado. Nunca ria e falava sempre com voz monótona.
- Esse mundo é podre! Disse.
- É mesmo, respondeu Ed, se sentando para ver se conseguia trabalhar enquanto o Taveira murmurava suas besteiras. Taveira sempre dizia que odiava as pessoas.
- Tenho ódio das pessoas!
- Sei.
- Ontem eu descia as escadarias da rodoviária. Todo mundo com pressa e lá estava aquela mulher gorda, parada nos degraus, falando no celular e atrapalhando quem estava com pressa e queria passar. Tive vontade de dar um chute bem forte no cu gordo dela e vê-la rolar degraus abaixo!

Palumbo passava o pincel com as cores sobre a superfície do desenho como quem não escutava aquela litania monótona sobre como as pessoas são frias, covardes e inócuas e como a arte poderia salvá-las. Taveira desenhava bem, tinha um traço minimalista bem interessante, criava umas tiras que traduziam seu pseudo desprezo pela humanidade e em seguida queimava tudo. Ele, felizmente nunca sentava, só falava sem parar, olhava Ed pintar e nunca fazia comentário, nenhum elogio ou crítica. Para ele só havia uma pessoa interessante nos quadrinhos, Alan Moore, o resto era merda, até mesmo Eisner. Vivia fazendo paralelo com Watchmen e a filosofia nietzschiana, sempre o mesmo repeteco,  tirando meleca do nariz e limpando na camisa.
- Um dia vou pegar uma arma e dar uns tiros em algumas pessoas, mas só em gente escrota, só em filho da puta!
- Tenha calma, Taveira. Relaxa, cara, sinta o sol, o vento, não vale a pena se aborrecer. O mundo é complicado e a gente tem que se adaptar.
- É, acho que cê tem razão. Bem, vou indo nessa!
- Falou cara, não vou me levantar, não posso parar aqui, se esta cor secar antes da próxima camada, fodeu!
O outro nada respondeu. Observou rapidamente os livros e os quadrinhos de Ed na estante como sempre fazia e saiu.

Passava de uma da tarde e o desenhista sentiu fome. O telefone tocou mas ele não atendeu. Foi até a minúscula cozinha e pôs um pouco de água para ferver. Retirou da pequena geladeira um pouco de carne moída da véspera. Adicionou ketchup e botou pra esquentar. No ponto certo despejou uma caixinha de creme de leite e misturou tudo. A água fervia e ele jogou um macarrão instantâneo dentro. Em três minutos ficava pronto e ele despejou a carne moída em cima. Catou um suco de uva em pó de saquinho e diluiu numa pequena jarra de água gelada. Comeu enquanto assistia o noticiário. Tudo notícia fabricada, pensou.

Antes de voltar ao trabalho alcançou o grosso volume de Crime e Castigo para ler pela quinta vez, um ótimo livro mas que capengava no arco final, ele tinha plena certeza que Dostoievski mudou o final para atender melhor o público. Ninguém estava livre de se vender para agradar os outros e assim obter mais sucesso.

Começou a sentir sono quando o telefone tocou mais uma vez. Não fez caso. Pôs sua calça jeans, o tênis e vestiu uma camisa branca. Pegou uma sacola de roupas sujas que estavam num canto e saiu. O sol estava forte, mas de uma quentura agradável, as cigarras cantava dando à atmosfera um tom preguiçoso. Se encaminhou até a lavanderia e foi atendido pela mocinha dentuça e bunduda.
- Olá! Nunca mais tinha visto o senhor!
- Sim, muito trabalho e roupas sujas acumulando, sabe como é.
- Imagino.
Pagou o sinal, pegou o recibo e saiu. Passou pela banca de jornal da quadra. Deu uma vista pelas manchetes dos jornais e folheou alguns quadrinhos. Muita coisa havia mudado desde que ele lia super-heróis, O Superman não respondia mais aos EUA e sim a ONU, o Capitão América não era mais a sentinela da liberdade, mas um dedo duro da Hydra, o Thor tinha virado mulher, e quem usava o traje do Homem de Ferro era uma mulher negra. Porra, que tempos tristes! Pensou.

De volta ao lar sentou-se para recomeçar o trabalho, eram 15:30. O telefone tocou. 
- Alô!
- Oi, Ed!
- Fala, Ingrid! O que manda?
Ela tossiu, em seguida parecia que bebia algo.
- Eu e o Filho terminamos tudo.
- É mesmo?
- Não suportava mais as traições dele, aquele cheirador de cocaína miserável!
- Entendo.
- Ele que se foda com aquela banda de rock de merda dele.
- Até que ele faz sucesso.
- Cê gosta da música dele?
- Nem um pouco; na verdade, não é que eu não goste, eu não ligo a mínima, aquilo não me diz nada!
- Aquele viciado nojento!
- Olha, Ingrid, desculpa, mas estou ocupado aqui!
- Estava lendo o sua HQ, é muito boa!
- Ok.
- Tem um personagem lá que tem um pau bem grosso! Ouvi dizer que os artistas colocam muito de si mesmos em suas criações. Estava pensando em passar aí depois que eu sair do trabalho e constatar se é mesmo verdade.
- Olha, não é uma boa ideia.
- Não gosta de mim?
- Não é isso, é que pretensamente eu sou um ilustrador e se eu não trabalhar não pago as minhas contas! E depois, você e o Filho já romperam outras vezes e voltaram, acho que desta vez não será diferente.
- Você é uma pessoa estranha, Ed.
- Muitos acham isso.
- Gosto do seu jeito, a maneira como me olha, o Filho disse que você elogia meus olhos cor de mel. Você é um cinquentão muito charmoso. Sei que você não curte cigarro, prometo que seu eu for aí não vou fumar.
- Um outro dia, talvez, hoje estou realmente muito atarefado.
- Certo, me liga depois? Gosto de ouvir sua voz.
- Sim, depois.
- Beijo!
- Até!

Ed foi até a geladeira e bebeu o restante do suco.
Sentou-se e continuou o trabalho. Tempos depois ouviu alguém gritar seu nome repetidas vezes, foi até a janela e lá estava o PT.
- Cara, desculpe berrar assim, mas não tinha certeza se tu tava em casa!
- Sobe aí.

Ed conheceu PT numa comic shop de Brasília e desde então ficaram próximos. Era um escritor de talento e nos últimos tempos tinha metido na cabeça - influenciado por Neal Gaiman - que queria ser roteirista de quadrinhos. Tinha umas ideias bastante interessantes. Ele vivia com uma mulher muito bonita chamada Yolanda, e segundo ele mesmo, doida e paranoica. Enquanto ouvia os passos do cara no corredor, Palumbo antevia a mesma conversa de sempre sobre a direita retrógrada e a má interpretação que faziam da obra de Marx, além de "papai disse isso ou papai falou aquilo".
- E aí, gênio, o que anda aprontando? Caralho, isto está ficando sensacional!" Entusiasmou-se PT exibindo um largo sorriso com dentes enormes e ligeiramente projetados à frente. Ele parecia mesmo gostar das artes do Ed Palumbo. Um tempo antes ele criou um roteiro intrincado para uma HQ e queria que Palumbo fosse o desenhista. Pediu uns esboços de personagens para anexar ao texto e fez a defesa do projeto às editoras paulistas, a resenha enaltecia o talento do ilustrador como nunca fizeram antes e demonstrava ser bem sincero. Pena que o roteiro tenha sido recusado por todos, o material era muito bom.
- Cara, não me conformo de você não ser aclamado como um dos grandes de todos os tempos!
- Obrigado, PT, mas não exagera!
- Não é exagero cara, eu tenho discernimento, sei que tu é foda na arte e escreve uns roteiros muito massa! Só não entendo como funciona o mercado editorial no Brasil, eu sei que você se esforça e vai à luta. Papai sempre me diz que as coisas não caem do céu, a gente tem que correr atrás e sei que você faz a sua parte.

Ed sabia que aquele papo não levava a nada embora houvesse muita coerência no que o PT dizia; tornou a trabalhar enquanto o outro falava.
- Pelo pouco que notei deste meio dos quadrinhos, existe muita panelinha, talvez se você fizesse parte de alguma delas...
- Eu já tentei, meu caro, não gosto de clubinhos, mas houve um tempo na vida em que deixei de lado meus escrúpulos e fui a tudo que era evento e lançamento de HQs, tentei me enturmar com os fodas que fundaram academias de arte, conheci muita gente bacana, talentosa e esforçada. A maioria - é bem verdade - depois que conquista um espaço se acha uma estrela e fica babaca, embora o que produzam seja mais do mesmo, um padrão que se estabeleceu no mercado ianque, mas tem uma parcela que sabe que há espaço para todos e sempre há novidades a aprender, com estes fiz uma sólida amizade. Eles dão dicas de trabalho sempre que podem....se esta é uma panelinha...
-Isso aí, cara, papai sempre disse que temos que correr atrás do sonho para vê-lo realizado. Do que você falou, sinto a mesma coisa no ambiente literário, o cara não é porra nenhuma, mas dá a sorte de publicar um livro bem criticado num veículo como a Folha de São Paulo e já se acha um Cervantes. E essa coisa de crítica é foda, basta um dizer que é legal e todo mundo copia sem nem ter lido a obra toda. Livros hoje em dia são escritos por uma equipe de pessoas e uma só leva o crédito.
- Complicado, né? Disse Palumbo com um suspiro de impaciência.
- E tem escritor que todo mundo ama sem nem ter lido a obra do cara, é o caso de Joyce; papai sempre diz que toda a unanimidade é burra.
- Essa frase é atribuída a Nelson Rodrigues!
PT explodiu em uma sonora gargalhada como sempre fazia quando achava graça em algo.
- Isso é bem típico de papai, roubar a máxima dos outros como se fosse dele.
Dizendo isso o PT enfiou a mão por dentro das calças - na traseira - e começou a coçar sofregamente.
- Não repare, tem três dias que não tomo banho e minha bunda tá coçando!
Ed fingiu que não escutou e continuou sua pintura.
- Rapaz, essa noite foi difícil, Yolanda acordou durante a noite com um pesadelo e começou a gritar! Eu dizia: calma, calma, foi só um sonho! Mas nada dela se recompor, então veio um ataque violento - te falei que ela sofre de epilepsia, né? - Dei o remédio dela, mas desta vez foi forte a coisa!
- Rapaz, sinto muito!
- Ah, tudo ok, agora! Hei, vamos comer em algum lugar? Estou com fome! Papai não depositou grana na minha conta esta semana, mas eu ainda devo ter algum crédito.
- Obrigado, PT, mas tenho mesmo que terminar esta ilustração.
- Ok, então, vou nessa!

Ed acompanhou o rapaz até à porta.

Voltou à mesa mas não pegou nos pinceis. Toda aquela conversa trazia à ele uma crescente depressão. Tudo parecia inútil e sem sentido. Correr atrás do vento, enxugar gelo, não parecia fazer outra coisa na vida a não ser, à moda dos cães, girar em círculos tentando morder o próprio rabo.
A tarde se avizinhava e ele foi à geladeira, tomou um copo de água e deitou-se um pouco. Cochilou pesado por uns 30 minutos, teria dormido mais se não fosse de novo o telefone.
- Alô!
- Fala Ed, tudo bem?
- Quem é?
- Cara, não reconhece mais os amigos?
- Desculpe, não estou identificando a voz.
- É o Lu Batata, cara!
- Não lembro de nenhum Lu Batata.
- Cara, assim você me magoa, nos conhecemos num workshop que você deu no ano passado no Memorial da América Latina!
- Ah, sim, lembrei! Como vai?
- Tô de boas! E tu?
- Também, só ocupado, agora.
- Entendi, cara desde que ficamos amigos meu traço melhorou muito, você vai ficar impressionado com meus desenhos, são poderosos!
- É mesmo?
- Sim, vou mandar para seu e-mail, ok?
- Escute, não leve a mal, mas como sabe meu telefone e e-mail?
- Foi o Peixeiro quem me deu.
- Ah, sim, o Peixeiro. Ele nunca mais deu notícias.
- Ele largou a vida de desenhista e virou caminhoneiro. Deve estar lá pelas bandas de Belém do Pará.
- Ok, Batata, tenho que desligar.
- Falou, gênio! Aguarde meus desenhos!

Ed suspirou cansado. Se possível fora ele queria dormir por longuíssimo tempo.

Colocou uma coletânea de Jazz dos anos 30 no computador  e trabalhou por mais uma hora ignorando o telefone que sempre tocava. Quase 20 horas, teve fome, saiu para comer algo numa lanchonete que tinha numa quadra próxima. A noite estava maravilhosamente estrelada.

Voltando a seu apartamento ligou a tv, zapeou os canais e não tinha nada de bom passando. Deteve-se na globolixo onde um casal se esmurrava e em seguida se beijavam como se não houvesse amanhã. Novelas, ele já assistira este tipo de coisa no passado, num tempo onde as pessoas tinham algo a dizer. Ed detestava essas estrelinhas globais, pessoas vazias, ocas, sem estofo, com quilos e quilos de  mentiras e de maquiagem e tinturas de cabelos, pessoas que enalteciam umas às outras falsamente. Mercadores de ilusões baratas. As personagens nunca trabalhavam naquelas tramas e sempre tinham dinheiro, nunca ficavam à vontade em suas casas, nunca usavam bermudas e chinelas, dormiam maquiadas e acordavam como se tivessem vindas de um salão de beleza. Desligou o aparelho.

Pintou seu desenho mais um pouco ouvindo Miles Davis. Parou. Fez um alongamento, em seguida cinco séries de flexões de braços, algumas abdominais. Ofegou. Estava velho, sem fôlego. Pra quê aquilo tudo? Ele não sabia, só para manter um ritmo, um hábito de vida, talvez. Foi ao banheiro, escovou os dentes e tomou banho.

Sentou-se para terminar a arte. O telefone tocava. Não atendeu.
Colocou sua assinatura no papel ainda úmido e olhou a arte de longe. Tinha ficado razoável. Mais uma obra terminada. Escaneou e enviou a pintura por e-mail. Sabia que teria que lutar para receber por ela. Com aquele cliente era sempre assim. Ele demorava mas sempre pagava.

O telefone tocou novamente, ele desconectou da parede, desligou a luz e se deitou.

Mais um dia havia se passado e ele tinha vivido. Fechou os olhos esperando o sono, se tivesse sorte,  nunca mais acordaria.

 






10 comentários:

  1. Pôxa! Li concentrado cada palavra agora às 19:38 desse domingo. Texto bacana e autobiográfico, creio. Talvez mais que isso, retrata tb a vida de muita gente que se dedica à arte. Gostei dos personagens e tudo o mais. Parabéns!!

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    1. Autobiográfico, com certeza, Gilberto! Claro que faz parte de diversas situações passadas na minha vida e no conto concentrei tudo em um dia, mas é meio por aí, sou frequentemente interrompido o tempo todo. Mudei nomes de personagens mas não há exageros neles. Que bom que gostou, obrigado!

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  2. Que desassossego! Que "amigos" inconvenientes! Pobre do seu protagonista, Schloesser! Por essas e outras que não tenho celular nem dou o número de casa pra ninguém. Parabéns pelo texto! A gente fica torcendo pelo Ed. Torcendo pra ele soltar os cachorros nesse povo todo e tacar o telefone na parede. ;) Abraço!

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    1. Pelo seu comentário vejo que atingi meu objetivo, Carla, que os leitores sentissem essa agonia. Tentei escrever com o máximo de ironia possível.

      Obrigado e grande abraço!

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  3. Que fadiga! Identifiquei-me com um monte de coisa, não compensa citar aqui, mas houve identificação! Embora haja nítidos traços autobiográficos em seu texto, imagino que a trama se passa num universo paralelo, porque o pessoal da cobrança do aluguel é educado. Já os entrantes e saintes são iguaizinhos aos do lado de cá mesmo. Caramba! Por essas e outras é que além dos meus filhos não recebo ninguém em casa há tempos. Muito bom texto. Apesar da referência ao Charles, você, em minha opinião, escreve milhões de vezes melhor que ele.

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    1. Sim, auto biográfico, com certeza. Foram coisas que aconteceram ao longo dos anos e eu condensei num único dia. Palavras, elogios, desilusões, tá tudo no conto.
      Obrigado, meu amigo, suas palavras dão gás para continuar na labuta.
      Sobre o Buk, eu curto por achar engraçado, até mesmo a ranhetice dele, não levo a sério, é só para me divertir mesmo. Abraço forte!

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  4. Cara, nem sei o que dizer!!! Texto fluente, personagens que parecem vivos, cheios de personalidade e... coitado do Palumbo. Que vocês dois encontrem melhor sorte em breve!

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  5. Uau! Mais um conto/crônica/autobiografia. Impressionante a fluência e a riqueza das cores com que pintas teus textos. Como vi aqui, muitas pessoas, especialmente as que têm alguma atividade similar à sua, se identificam. Não sou desenhista, aliás desenho mal pra caramba, mas não temo como não me identificar. Parabéns pelo texto.

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    1. Muito obrigado, caro poeta! Tenho um gosto particular por este conto por me transportar para um tempo, apesar de sofrido, muito melhor que os dias atuais. A vida passa e os anos ficam mais amargos. Sobre a identificação com as situações, creio, são comuns aos mais sensíveis.
      Grande abraço!

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