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sábado, 9 de fevereiro de 2019

PÃO E CIRCO (um conto sobre Zé Gatão escrito por Luca Fiuza e ilustrado por Eduardo Schloesser).


Parte 1.
Entre 09/08/16 e 13/08/16

      Como quase sempre, estou com pouca grana nos bolsos e há não sei quanto tempo vagando erraticamente pelas ruas desta cidade fedorenta e superlotada na qual eu cheguei hoje de madrugada, transportado por um velho ônibus resfolegante que me deixou em um arremedo nojento de rodoviária.  A “alegre metrópole,” onde agora me encontro é uma daquelas típicas cidades industriais que vem empesteando os ares com a fumaça tóxica de suas velhas fábricas e fodendo a natureza em volta, ou o que resta dela!
      Como eu estava curto de dinheiro, fui da rodoviária a pé mesmo, diretamente à periferia daquela metrópole, pois ali, provavelmente, hospedagem e comida seriam mais baratas do que no centro ou nos bairros chiques. Nestes bons locais deviam viver os donos parasitários das fábricas e suas famílias abastadas, longe da fumarenta merda vomitada por suas indústrias! Longe da sofrida classe trabalhadora que vivia penosamente do magro salário pago por patrões insensíveis e gananciosos que engordavam à custa do penoso trabalho do populacho. Eram os que viviam nesta área miserável onde eu transitava que supriam a cruel indústria, de proletários maquinais e sem sonho no olhar. Estes animais infelizes vegetavam em insalubres residências alugadas, nas quais mal cabiam eles, suas fêmeas e sua prole sempre aumentada. Dava para sentir no ar o futum de suor misturado com o olor acre de roupas mal lavadas. Era também indisfarçável o aroma pesado da insatisfação generalizada, corporificada mais claramente nas carrancas graníticas dos transeuntes que por mim passavam, naquele fim de madrugada, como se fossem ao matadouro, ao se enterrar diariamente no seio infernal que na verdade eram aquelas fábricas horrorosas, de ar frio e impessoal. Eu estava precisando de trabalho, mas me empregar naquelas malditas usinas de moer os espíritos dos seres vivos seria minha última e desesperada opção.
Cheguei a uma caricatura de bar, localizado em uma ruazinha de ar tristonho. O dono, um cágado marrom de extrema fealdade estava se preparando para abrir o tosco estabelecimento. O atarracado quelônio me encarou com um olhar mortiço, mas com um pálido cintilar de desconfiança. Com certeza não simpatizou com minha figura: um gato grande, cinza e de ar casmurro. A cabeleira basta amarrada no costumeiro rabo de cavalo, camiseta sem mangas, velha de um azul desbotado, dentro das calças, cinto de couro preto e grosso. Calças marrons de barras puídas, calçando tênis de cor preta, o par bastante encardido e denotando uso prolongado. Entrei calado e carrancudo no bar. Sentei-me em um canto de costas para a parede. Meus olhos felinos rapidamente se acostumaram com a penumbra reinante no interior daquele local acanhado. Consultei minha velha carteira, enquanto o cágado mergulhado em um mutismo obstinado deixava diante de mim um cardápio engordurado. Minha escolha iria acabar com as poucas notas moedas que trazia na carteira. Dane-se! Depois eu daria um jeito para resolver a questão de hospedagem! Apesar de ser ainda muito cedo pedi uma cerveja preta e um alentado sanduíche que contrário às minhas expectativas estava bem saboroso! A cerveja também não estava má. Paguei e saí para as ruas ainda sem saber o que fazer. Por mais modesto que fossem o hotel ou a pensão que eu quisesse me hospedar eu teria que ter dinheiro para pagar as diárias. Talvez fosse melhor que eu tornasse a pegar a estrada. Não havia nada que me prendesse aquela cidade decadente. A cismar, estava para atravessar a rua na faixa de pedestres, quando uma voz que soou conhecida, me chamou pelo nome. Virei-me um tanto surpreendido e encarei o simpático rosto de uma bonita e jovial felina de pele e fartos cabelos dourados que eu conhecera de outros tempos. Seu nome era Cora. Na época, ela era agenciadora de Lutas de Rua. Pareceu-me que a inteligente fêmea continuava no ramo. E havia prosperado! Veio correndo me abraçar e seus olhos de uma intensa cor lilás, se fixavam nos meus quase que hipnoticamente, enquanto impetuosamente me beijava na boca. Perguntou com voz argentina onde eu estava hospedado. Titubeei e ela imediatamente me intimou a ficar em seu apartamento. Tomou-me pelo braço e nos encaminhamos rapidamente para seu carro, um daqueles autos aéreos de último tipo. Entramos no veículo. Com um zumbido suave este se elevou em direção ao céu escurecido por fumo e fuligem.  Agilmente, se deslocou entre os prédios de ar pesado e tosco daquele bairro miserável, enquanto um nascer de sol embuçado e turvo surgia no horizonte como um borrão amarelento, clareando palidamente a densa atmosfera enfumaçada.
      Em poucos minutos, estávamos planando sobre um bairro bem mais aprazível opulento. Não pude deixar de notar que o ar estava limpo e a luz do sol que subia no firmamento, derramava livremente sua luminosidade sobre aquele trecho da urbe, enquanto o bairro pobre continuava envolto em pesadas brumas de poluentes. Notando minha surpresa, Cora explicou que um sistema purificador de alta tecnologia, mantinha o ar poluído longe dos bons bairros e do centro da cidade, mantendo aquele fétido miasma expelido pelas fábricas no seu expirar doentio, apenas sobre o bairro dos carentes trabalhadores que labutavam como industriosas formigas inglórias naquelas mesmas fábricas que os matavam aos poucos como se fossem pragas sob o efeito daninho de venenos letais que respiravam do nascimento à morte. Fiquei pensativo, ao constatar mais uma vez as injustiças da sociedade urbana, onde parasitas viviam da miséria alheia, crescendo, engordando e prosperando em detrimento dos que se consumiam, sem nunca ter direito a sequer uma migalha da opulência das classes endinheiradas.
      O carro voador desceu no telhado de um belo prédio de linhas arrojadas. Gentilmente, Cora me conduziu ao seu belo e aconchegante apartamento finamente decorado, mas sem exagero. Na sala ampla, sentamo-nos em poltronas confortáveis. Ela perguntou se eu queria comer alguma coisa. Ao saber do meu frugal desjejum mais cedo, sorriu penalizada e disse que me prepararia uma refeição digna, para comemorar nosso reencontro. Delicadamente, objetei. Então ela disse que almoçaríamos juntos mais tarde, ali mesmo ela iria preparar-nos uma deliciosa refeição.  Perguntei o que fazia no mal afamado bairro onde havíamos nos encontrado e ela me disse que estivera em uma reunião com agenciadores locais para conseguir lutadores para um evento que aconteceria em poucos meses na cidade. O negócio fora bem sucedido. Eu observei que ela havia prosperado bastante. Quando nos conhecêramos Cora era uma obscura promotora de Lutas de Rua, viajando de cidade em cidade como aqueles velhos circos de variedades. A felina riu alto, ao recordar daqueles tempos.  Assegurou que isto pertencia ao passado. Agora ela estava em outro nível, trabalhando com grandes e poderosos empresários do ramo. Ganhando muito dinheiro. Cora sugeriu que eu tomasse um banho e depois me faria uma proposta irrecusável. Piscou-me um olho e me conduziu a um banheiro gigante. Cora me deu uma toalha felpuda e um roupão, ambos de cor branca imaculada. Era como se esperasse um dia me reencontrar. Achei curioso, mas nada disse. Era apenas coincidência. Ela saiu de mansinho e eu ansiosamente entrei no chuveiro quente.
Estava ali absorto naquele prazer, quando senti o corpo sensual de Cora, totalmente nua, colado ao meu por trás. Ensaboamos-nos mutuamente e depois nos amamos intensamente sob a ducha quente e revigorante. Após este banho delicioso em todos os sentidos, carreguei Cora em meus braços. Nós dois ainda molhados, nos deitamos na enorme e macia cama do quarto. Amamos-nos como se fosse a última vez em nossas vidas! De todos os meus amores fortuitos, Cora sempre foi a que me proporcionava mais prazer em uma magnitude tão palpável que meu corpo tremia como se sentisse frio! Eu a queria com a mesma força que ela me queria! Completávamos-nos! Seu bom humor contrastava com meu temperamento melancólico. Era muito bom estar com Cora.
      Após nosso longo interlúdio amoroso, fomos para a cozinha, ambos de roupão. A manhã já estava adiantada. Cora preparou para nós um coquetel e enquanto bebíamos com vagar, saboreando os drinks em pequenos goles, a felina bonita e sensual me propôs que eu me tornasse um de seus lutadores. Afirmou sem rodeios que eu iria ganhar um bom dinheiro. Não respondi de imediato e Cora insistiu. Disse que naquela noite me apresentaria durante um jantar já agendado, ao maior empresário de Lutas da região. Um porco. Seu nome era Suideus Suinis Scrofa. Já havia ouvido falar dele. Particularmente, não gosto deste tipo de animal que vive do sangue, suor e morte de outros animais que são usados como gladiadores em arenas de morte. Pensei em recusar. Lendo esta determinação em meus olhos, Cora pediu que eu reconsiderasse. Lembrou os velhos tempos quando eu participara de Lutas de Rua agenciadas por ela, ganhando nós dois uma grana considerável! Seu pedido somado a seus beijos candentes, aliados ao magnetismo de seus olhos derrubaram toda e qualquer resistência de minha parte. Além disso, eu estava quebrado. Um dinheiro mais polpudo não faria mal. Balançando fortemente a cabeça para espantar a influência daqueles envolventes par de olhos de cor lilás, eu asseverei que assinaria um contrato temporário e que se tivesse que matar meu adversário ao final da luta, não ia assinar porra nenhuma! Com a face iluminada por um lindo sorriso, Cora me assegurou que não haveria mortes. Nas regras, os lutadores poderiam machucar e até aleijar seus oponentes, mas era proibido matar. Aceitei. Contudo, o fato não me deixou satisfeito. Nunca gostei de lutar para promover espetáculos. Assinei o contrato, por fim. Brindamos o acordo com mais um drink e voltamos para a cama. Transamos tantas vezes que cheguei a perder a conta! 



Parte 2.

16/08/16



      Depois do amor, Cora e eu dormimos abraçados esquecidos de tudo e todos.  No meio da tarde despertamos famintos. Cora com minha ajuda preparou uma rápida, mas substanciosa refeição. Comemos bem, acompanhados de algumas garrafas de cerveja. Cora disse que a partir de amanhã eu começaria minha preparação: treinamento físico, alimentação balanceada e nada de bebidas alcoólicas. Assenti silenciosamente. Ela quis saber se eu queria que saíssemos um pouco. Disse eu preferir que ficássemos em casa, já que tínhamos o tal jantar com o porco empresário à noite. Ela concordou e seu olhar cativante me trouxe uma sensação de tranquilidade.  Terminamos o almoço. Ajudei-a tirando a mesa. Ofereci-me para lavar e enxugar a louça. Cora não objetou. Sorrindo um pouco, me disse que eu era um macho diferente da maioria que normalmente se negava a participar de atividades caseiras, alegando ser um atentado à sua masculinidade. Dei os ombros. “Cada idiota que agisse como lhe aprouvesse”, repliquei, simplesmente. Cora me abraçou repentinamente, gargalhando. “Você não existe!” Gritou ela. Apertei-a em meus braços e a beijei na boca.

      Cozinha arrumada. Fomos para a sala e nos sentamos no sofá. Logo ela estava deitada no meu colo e eu alisava de leve seus cabelos dourados. Perguntei como eram estas lutas e como eu me encaixaria neste esquema. O rosto de Cora ficou sério. Refletiu um pouco e me explicou que estas lutas organizadas por Scrofa e outros empresários de lutas locais ocorriam em uma arena gigantesca, altamente tecnológica conhecida como Maximus Circus. Por sinal, amanhã se mudariam para lá. Ambiente climatizado. Havia alojamentos para os lutadores, ginásio equipado, restaurantes, locais para o lazer. Capacidade de público impressionante em arquibancadas e cadeiras ergométricas anatômicas. Enfim, era uma cidade dentro da cidade. Um detalhe importante: era tudo de graça. Tudo bancado pelos empresários. Os espectadores não gastavam um centavo, nem comprando ingressos e muito menos comida e bebida. Refleti intimamente: “a velha política do pão e circo.” Era uma espécie de catarse para o povo. Assistindo as contendas, descarregavam sua agressividade violentamente reprimida no dia a dia. Durante as lutas, a população esquecia por algum tempo sua existência miserável. Assistindo seus “heróis vilões” se arrebentarem na arena viviam a ilusão de estarem no controle, de ter um poder que na verdade não possuíam. Eram sem o saber, meros joguetes nas mãos dos poderosos e assim tudo corria ao gosto dos dominadores de plantão! Era o melhor dos mundos. Não havia revoltas populares! Fiquei pensando que estaria fazendo parte deste jogo sujo! Mas quem era eu para mudar coisas que sempre existiram mesmo antes de eu nascer? Há muito havia deixado o idealismo de lado. Faria minha parte, pegaria meu dinheiro e cairia fora! Mas vamos ser mais objetivos. Perguntei a Cora como seriam minhas lutas. Cora disse que eu participaria da contenda principal. Meu adversário seria um lutador famoso. Um canídeo extremamente hábil e forte cognominado de Cachorrão Parrudo.

      Cora pegou seu laptop e puxou a ficha do Cachorrão. O elemento nunca havia conhecido a derrota! Examinei sua foto de corpo inteiro. Era da minha altura e quase tão forte e largo quanto eu. Sua musculatura era pesada, não tão delineada quanto a minha, mas o bichão era um massa bruta. Pele de um amarelo encardido. Indivíduo cuja expressão facial parecia ser a de um cara de maus bofes! Jeito desagradável! Orelhas curtas, caídas. Face quadrática, focinhudo! Narinas amplas, abissais! Usava bigode cavanhaque feios, amarelentos e em desalinho, tornando o sujeito mais antipático do que nunca. Já havia lido sobre ele, bem como sobre sua violenta e vitoriosa trajetória nos jornais. As fotos estavam sempre desfocadas! Uma merda! Agora eu via uma foto bem nítida. Encarei aquela carantonha de ar arrogante na tela do laptop de Cora. Alguma coisa me intrigava! Parecia que eu conhecia aquele fulano...! Mas de onde? Meneei a cabeça, meio irritado e procurei não pensar mais nisto. Não faria diferença na luta! Após mais algumas considerações relativas ao futuro evento no Maximus Circus e ao jantar à noite com Scrofa, Cora me convenceu a ir com ela tomar um sorvete em uma confeitaria próxima. Como a partir de amanhã doce seria proibido na minha dieta, resolvi aceitar o convite. Descemos e caminhando fomos até uma confeitaria de aparência antiga agradável. Comemos cada um uma Banana Split e torta de morango. Tomamos uma soda. Não pude deixar de notar como Cora estava bonita no vestido vermelho e vaporoso que usava em substituição às roupas de cores opacas que estava usando quando nos encontramos aquela madrugada. Apesar de parecer descontraído, uma sensação ruim me oprimia o peito e um quê de melancolia toldava o brilho de sol daqueles deliciosos momentos com a felina dourada. Consegui ocultar meus pensamentos daquela gata inteligente e perspicaz. Achei que sim, mas no fundo sabia que ela conseguia ler meu íntimo como ninguém. Procurou me animar com sua energia e seu sorriso e creiam: conseguiu um pouquinho!




Parte 3.
Entre 18/08/16 e 23/08/16

      Restaurante Katmandu, um dos melhores da cidade, 19 horas e 30 minutos. Chegamos pontualmente. O carro aéreo foi deixado com o manobrista, pavão branco todo de vermelho, inclusive o quepe. Ar sisudo. Fomos então conduzidos pelo Maitre, um cisne negro, solene e impecável em seu fraque cinza claro a uma saleta reservada. A ave nos acomodou em uma mesa arrumada com esmero para o jantar. A iluminação distribuída estrategicamente no ambiente tinha um tom suave e relaxante. O Maitre me entregou um cardápio trabalhado, onde poderíamos escolher as entradas e também consultar uma carta de vinhos finos da melhor qualidade. Escolha feita, o cisne se retirou de maneira silenciosa para providenciar os pedidos. 
      Eu estava envergando um blazer branco, camisa azul turquesa, calças brancas e sapatos pretos de bico fino. As roupas foram compradas por Cora e apesar do meu constrangimento e objeções, Cora me convenceu incisivamente a aceitar dizendo que eu precisava estar apresentável para aquele importante e decisivo encontro. Não dava para discutir com aquela gata terrível! Cora estava deslumbrante em seu vestido de cor vinho. Justo, evidenciando seu corpo curvilíneo e sensual. A indumentária era aberta nas costas. Os cabelos dourados e fartos em um penteado da moda. Um belíssimo colar adornava seu pescoço. Rosto bem maquiado, sem excessos. Estava realmente linda!

      No momento em que o Maitre estava nos servindo o vinho e as entradas, Scrofa e seus dois sócios adentraram no recinto. Barulhentos, obesos como quase todos os suínos. Suas atitudes eram grosseiras e inconvenientes. As mesmas não condiziam com animais tão ricos como aparentavam ser e de fato o eram! O Maitre e os garçons se desmancharam em obséquios, desdenhosamente ignorados por aqueles untosos indivíduos! Os imensos porcos se sentaram à nossa mesa que por sinal, já tinha lugares especialmente reservados a eles. As apresentações foram feitas. Scrofa me tratou com uma familiaridade que me irritou profundamente. A vontade que me deu foi a de esmurrar sua carcaça rotunda até que ela virasse uma pasta de merda! É claro que me contive! Limitei-me a apertar firmemente sua mão rechonchuda cheia de anéis, de modo a fazê-lo gemer de dor e se curvar um pouco. Aos seus dois sócios, bastou um aceno de cabeça. Sorrindo amarelo, Scrofa comentou como eu era forte e que achado eu já representava para seu empreendimento. Minha atitude de desconforto velada e o sorriso forçado com o qual brindei a todos sem mostrar os dentes fizeram Cora me olhar feio com ar de reprovação. Dei de ombros, contrafeito. Só a gata percebeu o meu desdém em relação aquele trio de suídeos imbecis! Os mesmos nada notaram! Gargalhavam alto, enquanto pediam ao Maitre vinho, uísque e todas as entradas possíveis e imagináveis do cardápio. Assim que o Maitre saiu para providenciar as demandas, Scrofa se dirigiu a nós em tom mais sério. O suíno fez uma série de perguntas a Cora e a mim e combinamos tudo em relação à futura luta. Cora expos sob quais termos eu assinaria meu contrato temporário. Scrofa lamentou, pois gostaria que eu fosse seu lutador permanente. O mais polidamente possível, declinei. O enorme suíno deu uma gargalhada borbulhante, dizendo que até o fim da vigência daquele contrato as coisas poderiam mudar e eu com certeza ficaria a serviço dele como seu lutador principal. Achei melhor nada responder. 

      As entradas chegaram e os porcos as consumiram com voracidade. Depois pediram o jantar e Cora e eu deixamos a escolha dos pratos por conta de Scrofa e seus sequazes. Foi uma comilança exagerada, entremeada de um falatório de pouco sentido, arrotos e bufos típicos de criaturas como aqueles porcos nojentos! Comi com moderação e Cora como não podia deixar de ser agiu da mesma forma. A conta foi paga por Scrofa. Não objetei! Ele que se fudesse! 

      Com satisfação, nos despedimos daquela súcia! Minha companheira teve que admitir que aquele jantar desastroso foi extremamente desagradável, a não ser em relação aos negócios. Um breve resmungo foi o meu arremedo de assentimento. Fomos pra casa e lá procuramos esquecer nos braços um do outro a repelente figura de Suideus Suinis Scrofa.


Parte 4.
27/08/16

      No dia seguinte, bem cedo, Scrofa mandou sua luxuosa limusine voadora nos pegar no teto do prédio de Cora. Fomos transportados para o Maximus Circus, gigantesca e portentosa arena de lutas construída fora dos limites da cidade em uma área cercada por bosques frondosos, especialmente desenvolvidos por paisagistas de renome. As instalações internas eram altamente tecnológicas. Um computador central controlava tudo. Ficamos em alojamentos individuais. O mesmo deve ter se dado em relação aos outros lutadores. Não nos misturávamos. Política da Casa! Embora eu tenha ficado separado de Cora, podíamos nos encontrar no refeitório, no ginásio e na ampla sala de reuniões. Fomos para esta última logo após deixarmos nossa bagagem em nossos alojamentos que em verdade, não eram muito distantes um do outro.

      Sentados em poltronas confortáveis e anatômicas, conversamos sobre as lutas que ocorreriam dentro de dois meses, talvez menos. Cora me disse que eu e Parrudo seriamos a atração principal. Participaríamos de algumas lutas preliminares para que o público pudesse ter contato conosco. Os adversários seriam com certeza, de bom nível. O auge do espetáculo seria a luta entre mim e o canídeo.  

      Após este breve colóquio, fomos ao refeitório tomar café. Minha refeição matinal foi corretamente balanceada, preparada por um cozinheiro computadorizado. Para Cora a máquina preparou panquecas com mel bem ao gosto dela. Tomei um copázio de suco de laranja e ela café preto bem forte e sem açúcar.

Após a higiene pessoal, nos reencontramos no ginásio. Tinha equipamento de último tipo e um ringue onde eu poderia treinar com um Sparring especialmente designado para mim. Comecei uma sessão de duas horas de treinamento pesado. Seria assim todas as manhãs. Antes do almoço, treinamento com o Sparring que realmente achei um merda. Meu primeiro soco no meio das fuças botou o sujeito pra dormir. Era um cachorro malhado braçudo, físico grande, mal proporcionado e mal trabalhado. Sabia os fundamentos, mas era um lutador medíocre! O canídeo assim que acordou do “desmaio” saiu do ringue tonto e de cabeça baixa. Dispensei-o e pedi a Cora que providenciasse outro no dia seguinte. O sujeito deveria ter sido um daqueles professores de academia que se achavam uns grandes fodões! Indivíduos assim gostavam de ficar se exibindo de modo narcisista para as cadelinhas que iam lá fingir que malhavam! Não sei por qual razão Scrofa colocou um bobalhão daqueles para treinar com lutadores sérios como eu. Depois fiquei sabendo através de Cora que ele era amigo de um dos sócios de Scrofa. Depois deste fiasco deve ter sido demitido. Cá comigo, penso que o porco sacana colocou o infeliz para treinar comigo só para arranjar um motivo justo para dar um pé na bunda dele! Desci do ringue pensando o quão sujo era aquele universo de lutas! Nunca me iludi a respeito disto! Cora ficou no ginásio me esperando e rindo ainda do desafortunado canino. Tomei uma ducha bem fria, depois abri o registro de água quente que veio pelando! Voltei ao ginásio enxugando a cabeleira solta, trajando uma bermuda vermelha justa, em substituição ao calção preto e branco de lutador que eu estava antes trajando. Cora sorriu para mim e eu a olhei com ternura. A linda fêmea envergava um moletom azul claro e calçava um par te tênis leves de cor vermelha. Convidei-a para irmos ao refeitório almoçar. Umas três horas depois, fui nadar na piscina aquecida para esticar os músculos. Cumpri esta rotina por dois meses. Então minha primeira luta nas preliminares foi anunciada. Uma semana antes pude estudar meu adversário através de leituras e vídeos de suas lutas. Era cão um Fila marrom pintalgado horroroso! Lábios pendentes de cujas comissuras escorria constantemente uma baba grossa e repugnante! Olhar baixo e estúpido. Contudo, era um lutador rápido e feroz! Nome: Canis Familiaris ou Canis F. Francamente não me impressionou!


Parte 5.

15/12/16



      Noite da luta preliminar! O ulular da multidão enchia o ambiente em um som semelhante as ondas de um mar tempestuoso se chocando contra os arrecifes. Postei-me em meu canto do ringue ao lado de meu Segundo, um cãozinho atarracado com uma ridícula barba sem bigode muito em voga naquela época. Os olhinhos apertados encravados em uma testinha proeminente davam a ele um ar traiçoeiro e pouco confiável. Sentei em um banquinho de madeira e me sujeitei silenciosamente aos cuidados “profissionais” daquele caninozinho meio quilo. O contato de suas ágeis mãozinhas enquanto espalhava vaselina em meu rosto era exasperante para mim, mas tive que reconhecer que a figurinha trabalhava com eficiência. Atribuo mais a minha irritação ao fato de não gostar muito de cães em geral. São animais subservientes demais para meu gosto, sempre de língua de fora, ofegando e salivando. Quanto maiores eram mais o faziam. Hálito pútrido na grande maioria dos casos. É verdade que tive uns poucos amigos caninos na vida, mas minha relação com estes bichos nunca foi das melhores. Salvo as exceções a que me referi.

      Terminado o preparo, o Segundo me deu algumas instruções em tom sussurrado, as quais eu escutei sem mover um músculo. Até a vozinha do sujeitinho era incomodativa. Se eu fosse um daqueles caras sem paciência eu daria um cascudo pesado no coco daquele infeliz silenciando-o permanentemente. Mas seria algo sem sentido que não fazia parte do meu feitio, afinal o nanico estava só fazendo o seu trabalho. Neste ínterim, meu adversário subiu ao ringue e se colocou em seu canto para receber também ele, os cuidados do seu Segundo, um galgo esquelético com cara de punguista. Meu oponente, conhecido como Canis F. era de fato um indivíduo bizarro e um dos mais feios seres que já vi na vida. Ao sentar-se, pude escutar nitidamente o ranger do banquinho em protesto, ao receber aquela massa bruta sobre ele. Também ouvi bem o bufo pesado que o camarada exalou pela boca, enquanto se acomodava precariamente naquele minúsculo assento.

      Dali a alguns minutos chegou o anunciador da luta. Era um gambazinho cinzento que espargia um odor meio desagradável, misturado com cheiro forte de naftalina de seu terno preto fora de moda e gravata roxa de cor berrante. Parecia um agente funerário. E o mais engraçado é que tinha uma voz surpreendentemente grossa para uma criatura tão diminuta. Assim que o anãozinho finalizou a apresentação eu me levantei, não sem antes colocar o protetor bucal. Notei que meu contendor também estava pronto. Tenso. Seu protetor bucal entrando e saindo da boca como uma língua adicional. Foi algo momentâneo, porém. Logo seu ar ficou mais concentrado e nos dirigimos para o centro do ringue.  


      O gongo soou como um toque de Finados aos meus ouvidos. Comecei a circular em torno do meu oponente lentamente, fechando o cerco e procurando encurralá-lo em um canto do ringue. Canis girou tentando sair de lado. Foi nesta hora que desferi um soco que se encaixou perfeitamente no lado direito de sua face. O canídeo bambeou, mas assimilou bem o golpe. Canis reagiu rápido e desferiu uma sequência de jabs tentando me desestabilizar! Pobre idiota! Evitei facilmente o ataque e de novo encaixei um murro naquela carranca horrível, lançando a cabeçorra de Canis para trás. No mesmo ato, enterrei um murro profundo no plexo solar do cão. O ar foi arrancado brutalmente de seus pulmões e o som que lhe saiu das entranhas foi uma miscelânea de ganido com uma espécie de arroto adornado por um som aquoso, como o borbulhar de um bueiro de esgoto expulsando seu fétido conteúdo. Ainda assim, ele não caiu. Só que não parei por aí. Apliquei um uppercut que fez o cabra subir como se não tivesse peso nenhum. Ato contínuo: entrei nele e esmurrei duramente suas costelas. Pelo ruído quebrei algumas. Ele se curvou latindo de dor. Massacrei sem dó a cara dele, transformando-a em um pudim de sangue. O cachorro dançava no ringue no compasso de meus murros. Ajeitei um bem potente em seu maxilar, quebrando-o. Canis estava a minha mercê. Avancei de novo e acertei dois socos pesadíssimos que o jogaram no chão meio inconsciente. Caí sobre ele desferindo muitas cotoveladas que acabaram de detonar aquele rosto já desfigurado pelas pancadas recebidas.  Então o juiz interrompeu a luta. Levantei-me do chão e voltei ao meu canto sem olhar para meu oponente caído. Minha vitória foi incontestável.  Ignorei o clamor do público. Despedi-me com uma reverência mecânica após o anúncio do resultado da luta. Pelo canto do olho vi que enfermeiros levavam Canis F. em uma padiola. Pelo visto ele ia ficar muito tempo hospitalizado e eu não estava nem aí para isto. Fui para o vestiário sem falar com ninguém.  Tomei uma ducha forte. Sentindo o jato revigorante bater contra meu corpo eu comecei a pensar que aquelas lutas realmente não eram convencionais. Não havia regras e o juiz, um boi branco forte, não me impediu de massacrar ao máximo o desgraçado do Canis Familiaris. Que se fodessem todos! Se queriam um espetáculo eu lhes daria um.


Parte 6.
26/12 e 27/12/16
      Acordei um pouco mais tarde do que de costume. Enquanto tomava café sozinho no refeitório encontrei um recado de Cora junto à torradeira elétrica. Queria que eu a fosse encontrar em seu escritório e assim que acabei de comer me dirigi para lá. Ela me recebeu com efusão. Sentei-me na cadeira mais próxima curioso com todo aquele contentamento um tanto exagerado. Rindo alto ela me disse que o lucro havia sido enorme noite passada. Olhei-a intrigado. Se os espectadores que frequentavam a Arena não pagavam nada pelo espetáculo e pela comida, de onde saía o dinheiro? Cora deu um sorriso matreiro e explicou-me que a renda vinha do Sistema PAAD – Pague e assista à distância, com imagem HD e som digital de alto nível. Ricos empresários, Militares e Políticos pagavam verdadeiras fortunas para assistir estas lutas no conforto do lar e até apostas milionárias poderiam ser feitas nos contendores. 

      Compreendi a engenhosidade de Scrofa e sua organização, e pude entender bem a satisfação de Cora. Ela como Empresária de Lutas, trabalhando para o porco, deveria ter ganhado uma gorda soma nesta brincadeira!
      Cora também me disse que na mesma noite da minha luta, Parrudo havia lutado em outra das muitas Arenas do complexo. Ela ligou uma enorme TV fixada na parede e pediu que eu prestasse muita atenção ao combate. A tela se iluminou e vi os lutadores em seus devidos cantos, fremindo a musculatura imensa e pronta para o embate.  O oponente de Parrudo era chamado de Cachorrão. Raça indefinida, tão grande quanto Parrudo, mas só de olhar concluí que ele não seria adversário para o feroz canino.

      Mal o gongo soou e Parrudo já partiu como um bólido para cima do Cachorrão. Foi chegando e batendo pesadamente em uma brutal sequência de socos na cabeça do outro que a fizeram se movimentar de cima para baixo muito fortemente, como se fosse a cabeça de um boneco de mola. Não deu nem para o infeliz tontear. Uma joelhada seca nas costelas do lado direito as trincou em um estalo terrível. O vagido de dor do Cachorrão foi sufocado por um chute violento na boca que estourou seu maxilar, dentadura e protetor como se fossem feitos de porcelana. Sangue em profusão acompanhou a explosão bucal, sujando o ringue e as pernas de
Parrudo. Friamente, ele atacou enquanto o corpanzil do Cachorrão tombava inerme em direção ao piso. Antes que aquela carcaça amolecida tocasse o solo outro chute fortíssimo no pescoço do oponente foi aplicado por Parrudo. Como um monte de bosta o corpo do Cachorrão se esparramou no meio do ringue. Os microfones sensíveis captaram um soluço estrangulado que saiu de sua garganta com uma nova golfada de sangue. A multidão bramia. Parrudo foi considerado vencedor incontestável daquela rápida luta. O Cachorrão estava morto antes de bater no chão de acordo com uma junta médica que o examinou. Traqueia estraçalhada. Percebi que não podia brincar com aquele camarada! Ele batia para matar. Tinha também outro detalhe...! Parecia que eu conhecia aquele cachorro nojento! Mas de onde? Bem, isto não importava que ele viesse quando chegasse a hora! Eu não seria simplesmente morto por aquele bastardo!  Cora me olhou e sorriu ao notar meu cenho carregado. Perguntou o que achei da luta. Sem dizer nada me levantei e saí, ela ficou ali parada entre espantada e furiosa. 

      Um mês e meio se passou. Dediquei-me a um treinamento forte e me isolei. Nem a Cora eu queria ver. Ela ficou danada, mas entendeu minha atitude e não forçou a barra.
      Finalmente chegou a noite da luta. Eu estava bem concentrado. Havia estudado cuidadosamente os movimentos de meu adversário, pois sabia que isto ajudava, porém não muito. Talvez ele também tenha me estudado. Contudo, cada luta é uma luta e o grau de imprevisibilidade é grande. Dane-se! Fosse como fosse eu não seria presa fácil daquele cretino!
      Enquanto aguardava o início da luta em meu canto, mal ouvindo as orientações do    chato do meu Segundo, lembrei-me de onde eu conhecia o cão Parrudo. Quando eu era moleque, Parrudo e seu bando de cães vadios costumavam me bater e roubar meu parco dinheiro e minhas poucas bolinhas de gude. Nunca pensei em um dia rever aquele puto! Agora ia ser diferente! E ele ia pagar por todo o sofrimento que havia me causado!

       O gongo soou! Avancei como um trem expresso, dominado pela raiva. Este foi meu erro! Um soco brutalizado me atingiu bem no meio da cara me jogando no chão, tonto e sentindo o gosto acre de sangue na boca. Ao cair rolei de lado o mais depressa que pude e me ergui rapidamente, balançando a cabeça para clarear a mente. Parecia que havia um vespeiro dentro do meu crânio. Idiota! Não se luta como um amador com um cara daqueles! Devo controlar as emoções se quiser sair do ringue vivo! Atenção! Ele já está em cima de mim! Acorda Zé Gatão! Evitei por um triz um soco demolidor e uma joelhada que fatalmente me incapacitariam se me atingissem. Saí de lado, mas bem próximo de Parrudo. Arremeti um golpe rápido com a ponta dos dedos em riste, atingindo a axila de meu adversário. O golpe paralisou o braço direito de Parrudo. Ataquei de novo, dei uma fortíssima cotovelada no rosto do meu contendor, danificando sua estrutura facial direita. Mesmo abalado, cara contraída de dor, cheia de sangue ele se voltou velozmente e me socou na altura do ouvido com o punho esquerdo me fazendo grunhir de dor. Procurei recuar o mais rápido possível, escapando assim de dois potentes jabs de esquerda que ele lançou na tentativa de me desestabilizar.  No mesmo movimento de recuo embora bastante tonto eu
me movimentei em círculo e golpeei Parrudo pelo lado contrário para o qual ele se achava voltado. 
Desequilibrado, meu oponente não pode impedir que eu desse um chute baixo, mas poderoso. Como pretendia, quebrei sua rótula. Tal qual uma marionete sem cordas ele caiu de lado com um cavo urro de dor atroz. Avancei e quebrei sua clavícula esquerda com outro chute bem colocado. O ganido alto que ele soltou foi de pura agonia.
      Sem piedade eu me abati sobre ele, esmurrando ferozmente a já maltratada face do meu adversário. A cada murro uma nova ferida se abria naquele rosto massacrado e o sangue manava! Cada ferida aberta representava uma justa paga ao escárnio, humilhação e surras que ele e seus sequazes haviam me feito sofrer na infância! De maneira metódica meus punhos batiam cruelmente contra aquela sangrenta massa de carne que havia sido um rosto! E eu socava, como máquina fria e insensível completamente dominado pelo sentimento de vingança! Frouxamente, o corpo de Parrudo se agitava em um movimento convulsivo, sem qualquer defesa ao meu ataque selvagem!  
      Resfolegante, suando abundantemente, um sabor metálico no céu da boca, olhar fixo, eu ergui os braços juntos, as mãos trançadas uma na outra para dar o golpe final! Era meu este direito! Matar aquele desgraçado não só pelo que me fizera, mas também pelas inúmeras vidas que tirara sem compaixão ao longo de sua carreira de lutador. A multidão ululava! Porém, algo me fez olhar em volta e vi a turba de pé apontando o polegar para baixo, em um claro sinal de que eu devia matar meu adversário! Olhei para minha vítima! Estava totalmente à minha mercê. Encarei longamente aquele rosto destruído, onde brilhava um único olho meio aberto. Então eu vi...! Dor, derrota e acima de tudo orgulho! Orgulho do guerreiro face à morte iminente! Levantei a cabeça e encarei a multidão ensandecida! Verdadeiras feras sedentas de sangue! E o que era eu ali senão um instrumento de destruição?! Peça de uma grande engrenagem para entreter o povo e enriquecer os poderosos?! O que eu ganharia depois de consumada uma vingança tão velha e no fundo sem sentido? Eu não seria melhor que Parrudo ou qualquer dos lutadores que se estraçalhavam nos ringues todos os dias, sem remorso, sem piedade! Matando e morrendo na verdade para nada! Então eu me ergui sem me importar com a mistura de vaias e aplausos que sacudiu a Arena até seus alicerces. Sem esperar a decisão de juízes e qualquer outra merda eu me retirei enojado de tudo aquilo e principalmente de mim mesmo!
      No dia seguinte me reuni com uma entusiasmada Cora que me abraçando carinhosamente, veio me pagar regiamente pelo “meu trabalho”. Disse que a luta foi um sucesso e que eu tinha me tornado o campeão inconteste e um fenômeno das Lutas de Arena de Scrofa. Haveria outras grandes lutas em diversas Arenas de norte a sul, de leste a oeste. Ela e eu íamos ficar ricos! Scrofa ia oferecer um requintado almoço em comemoração aquela retumbante vitória e ao seu mais novo campeão, ou seja, eu! Ainda com Cora nos braços meneei a cabeça tristemente e disse a ela que eu estava fora! Ela me olhou como se eu estivesse louco! Beijei-a na boca e não procurei explicar minhas razões para não aceitar entrar naquele Mundo sujo de lutas, Pão e Circo. Ela não entenderia! Para ela não passava de um Negócio altamente lucrativo, onde ela há muito havia perdido a capacidade de ver as reais implicações sociais e econômicas provocadas em muitas famílias por cada vida que se perdia nos ringues ou pela massa de lutadores inválidos que restava apodrecendo em hospitais e clínicas. Scrofa dava um auxílio inicial, mas pouco tempo depois os vencidos eram totalmente esquecidos e ficavam a amargar sua sina, esmagados pela pobreza e incapacidade de exercer qualquer outra profissão, tendo como destino a Morte que no fim seria uma redenção. Cora ainda tentou me convencer a ficar, mas obstinadamente e mais delicadamente possível eu recusei. Peguei parte do que havia ganhado e pedi que a dessem a Parrudo, ou à família, caso ele tivesse uma. 

      Parti sem olhar para trás. Parecia que um enorme peso havia sido tirado de meu peito. Lá fora me esperava um mundo frio e hostil, mas cheio de possibilidades! E eu ia como sempre fora: livre!



     
  
  




5 comentários:

  1. Nossa! Se esse conto não fizer as pessoas pensarem sobre as lutas, nenhum outro o fará. Parabéns pelo texto, Luca! O vocabulário, a descrição dos personagens, a visão de mundo e a violência condizem perfeitamente com o universo do Zé Gatão. Como bônus, ganhamos a sensação de ver um filme. Das ilustrações, minhas favoritas são a dos felinos no veículo voador e a do aperto de mão entre o gato e o porco. Cenas de luta não me surpreendem mais. Sei que o Schloesser consegue desenhá-las de olhos fechados. Quem mandou ser fera! Agora excelência não é mais que obrigação. :) Parabéns a ambos!

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    1. Vivaaaaa! Finalmente um comentário! E da Carla Ceres, ainda por cima! Se bem que você já é da casa, Carla, então quase me arrisco dizer que você é suspeita. Como mencionei outras vezes, as visualizações estão cada dia menores e penso seriamente em abandonar este espaço, não faz muito sentido eu falar - quase - sozinho; tenho ainda uns contos para colocar aqui e mais umas lembranças da minha juventude em Brasília depois que voltei do Rio, após isto, se o lugar continuar com 8, 18 ou 28 visualizações, como vem acontecendo, então será o adeus.

      Muito obrigado, minha amiga, por não nos deixar passar vergonha, e, claro, pelos elogios às palavras e aos desenhos. Sabe, o Luca pode responder melhor, com certeza, mas este texto tinha o único compromisso de desopilar, apesar das cena de violência, seria como aquelas bandas que terminam e voltam depois de uns anos para um revival. Nós escrevíamos histórias deste tipo um para o outro com alguns desenhos ilustrando as cenas, hoje, claro mais maduros, mas ainda adolescentes na alma.

      Brigadão mesmo! Forte abraço!

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  2. Puxa, meu velho! Adorei suas considerações! Sim! Esta história representa aqueles tPuxa, meu velho! Adorei suas considerações! Sim! Esta história representa aqueles tempos bucólicos perdidos nas brumas do tempo, quando éramos mais jovens, mais sonhadores r pueris!
    Como você bem disse maduros já estamos. O corpo e a mente envelhecendo a passos largos, mas a mente ainda no fundo adolescentes com os velhos sonhos encobertos pelo verniz da vida adulta. Camada frágil que de quando em vez se rompe, expelido a lava fervente dos velhos sonhos que estejam rapidamente ao sopraren os ventos da dura realidade.empos bucólicos perdidos nas brumas do tempo, quando éramos mais jovens, mais sonhadores r pueris!
    Como você bem disse maduros já estamos. O corpo e a mente envelhecendo a passos largos, mas a mente ainda no fundo adolescentes com os velhos sonhos encobertos pelo verniz da vida adulta. Camada frágil que de quando em vez se rompe, expelido a lava fervente dos velhos sonhos que estejam rapidamente ao sopraren os ventos da dura realidade.

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    1. Lucão, pode ser que ao comentar algum bug atrapalhou sua mensagem, mas entendi perfeitamente e endosso suas palavras.

      Nossa parceria rendeu a Zé Gatão ótimas aventuras alternativas dando a ele sobrevida, o futuro dele só o tempo dirá.

      Nada impede que sonhemos em ver todos estes contos reunidos em um livro. Tenho planos a respeito se viver para tanto.

      Forte abraço!

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  3. Querida amiga Carla. Seus comentários sempre procedentes e estimulantes! Esta história, além de ser um.resgate de tempos passados da minha juventude e da Eduardo na forma de escrever é também um alerta para as injustiças e desigualdades sócio econômicas que martiriza o mundo do felino, sendo isto um reflexo da nossa própria realidade. Zé Gatão apesar de sua revolta muda e do forte ceticismo mesclado à profunda ironia, consegue reconhecer em si mesmo como a raiva e a vingança são sentimentos inócuos a médio e a longo prazo. Mesmo tendo massacrado o cão Parrudo movido pelo rancor e pelo preconceito em relação a quase todos os canídeos, encontrou em seu coração lugar para compaixão, mostrando ser muito superior à Cora e a Scrofa que se tornaram insensíveis ao sofrimento alheio, escravos os dois da ganância e amigos exclusivamente do dinheiro. A única coisa boa que sobrou no íntimo da gata dourada foi seu sincero amor por Zé Gatão. Concorda? E o Grande Gato por set o que era não poderia coaduna com aquelas lutas sujas e brutais, ainda que ternamente e verdadeiramente amasse estar do lado de Cora. Era uma situação insustentável. Obrigado pelo seu apreço e de sempre acompanhar Schloesser e eu em nossas idílicas aventuras artístico literárias. Grande abraço.

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RESENHA DE ZÉ GATÃO - SIROCO POR CLAUDIO ELLOVITCH

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