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sábado, 8 de junho de 2019

A LONGA NOITE ENTRE FELINOS E CUECAS.


Charles Bukowski e Zé Gatão.

Estafa: essa palavra me define. Ando outra vez com a difícil e humilhante tarefa de pedir dinheiro emprestado a amigos e conhecidos. Crise, esta velha conhecida que de tempos em tempos vem bater na porta, entra pela janela, se acomoda, esvazia a geladeira e bagunça todo o ambiente. Nunca foi diferente. Eu queria que em minha vida os momentos de bonança, paz e alegria pesassem mais na balança que os de tensão e depressão, mas não é assim.

Me recordo daqueles tempos em São Paulo, os anos 90, tudo era cinza, frio, eu quase podia ver os espíritos dos mortos vagando naquelas noites entre os arranha-céus, principalmente na primeira metade da década.

Certa noite, um conhecido que trabalhava criando embalagens, em um escritório que ficava na Rua da Consolação, me ofereceu um trabalho que ele recusou por por falta de tempo para executar. Naqueles dias eu pegava qualquer bonde que me levasse aonde tivesse alguns trocados. Ele me apresentou a um cara de aspecto delicado, eu teria que fazer uns desenhos para um catálogo de cuecas da Hering, coisa de umas duas horas de trabalho. Topei, claro, eu não tinha nada em vista. Fechamos um preço que a mim pareceu razoável. Eram umas 19 horas e marcamos para nos encontrarmos na frente daquele prédio e dali seguiríamos até a agência onde eu faria as ilustrações.

Voltei para casa e comi alguma coisa. Se não me engano meus pais estavam fora, em viagem.
No horário marcado lá estava eu, o fulano delicado e sua barbinha chegava uns minutos depois. Era uma noite muito gelada. Tomamos um táxi até um condomínio em Pinheiros. A tal agência de publicidade pertencia a uma mulher cujo nome não é possível recordar, mas chamaremos de Dark e funcionava no seu apartamento; na verdade uma quitinete. Ela vivia só, com três gatos siameses. Devia ter uns 40 anos e nos recebeu de roupão. Ela me explicou o que desejava, fazer alguns desenhos de rapazes de cueca para o catálogo de uma famosa marca, os esboços, digamos assim, era para ela montar um "boneco" do tal catálogo e ver se empresa aprovaria. Se fosse admitido, meus desenhos seriam substituídos por fotos.
Julguei que umas duas horas de trampo seriam suficientes, o barbicha delicado me pagaria o táxi de volta para casa. Tirei meu casaco e fui para um quartinho onde havia uma mesa e alguns alistamentos onde se viam rapazes de sungas dos mais variados modelos, para eu me guiar.
Rabisquei algumas coisas e Dark gostou. Você curte desenhar histórias em quadrinhos? Perguntou. Sim, respondi. Nota-se, ela disse. Muito bom, continue assim, estamos no caminho certo, falou, se afastando. Fiz uma série de desenhos a lápis de torsos masculinos de aspecto atlético procurando valorizar as sungas. Levei a ela e foram todos assentidos. Ela recortava as figuras e posicionava os desenhos no boneco do catálogo e discutia com o barbicha qual a melhor composição. Cada vez que eu fazia uma série, tentando não repetir muito as poses, ela substituía pelas anteriores e me pedia mais. Nisso, a madrugada ia alta, três, quatro horas; os felinos, de hábitos noturnos, com sua graça e agilidade, pulando do chão para minha mesa, da mesa para os armários, um atrás do outro, numa agilidade impressionante.
Haviam desenhos de homens de cuecas mais que suficiente para encher uns cinco catálogos daqueles e pareciam nunca ser suficientes. Estamos no caminho certo, quase lá, faça mais, ela pedia.
Meus olhos doíam, as costas reclamavam e minhas mãos quase não conseguiam mais segurar o lápis. O dia amanheceu e Dark, como uma louca, se angustiava por não encontrar o tom certo do que queria. Barbicha pacientemente fumava seu cigarro e dizia que já estava bom. Ela: não, isto pode ficar melhor, e se posicionássemos assim? ou assim? e se ele fizesse esses desenhos um pouco maiores pra colocar no início de cada página?
E assim prossegui, morto de exaustão, sem comer, até quase 10 horas da manhã. Eu calculo que devia ter feito perto de uns 300 desenhos, todos a lápis, com 10 cm de altura e Dark nunca estava satisfeita.
Por fim, ela disse: ok, acho que é isso, fechamos, me faça apenas mais uns 10 numa pose assim e assim para eu ter de reserva na hora de apresentar na Hering. Eu tinha chegado ao meu limite, inventei que tinha um compromisso inadiável para dali a uma hora e precisava ir embora. Me deixe pelo menos seu telefone, ela pediu, para o caso de eu precisar substituir alguma coisa. Eu falei que não tinha telefone (e isso era verdade). Pode me pagar, por favor? instei. Certo, quanto é? Falei o valor que havia combinado com o barbicha. Nossa!!! Tudo isso?!?!? ela se espantou e volutou-se ao amigo. Você definiu isso com ele??? Sim, o valor é justo, ele ficou aqui pacientemente a noite toda e fez um ótimo trabalho, asseverou o barbicha fumando languidamente seu cigarro. Concordo, falou Dark, mas eu ando com pouco dinheiro, você não podia diminuir o valor? Eu disse que infelizmente não era possível. Ela fez ar de resignada e perguntou se eu poderia segurar o cheque por uma semana. Concordei. Só queria ir embora dali. Como só tinha aquele cheque no bolso tive que pedir o dinheiro da passagem de ônibus ao barbicha para poder voltar para casa. Me despedi dos dois e ganhei as ruas movimentadas. Peguei um coletivo lotado para a Praça da República. No trajeto eu quase caí sentado de tanto sono umas duas vezes.
Finalmente cheguei em casa. Tomei um banho, comi alguma coisa e fui me deitar. Curiosamente não consegui dormir. Mas em uma semana eu teria dinheiro por algum tempo. 
 

4 comentários:

  1. Nossa! O bom é que não ouve calote dos "contratantes".

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  2. Que mulher abusada! Pagou, mas explorou o quanto pôde. Ainda bem que o cara estava do seu lado, Schloesser. Abraço!

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    1. Teve uns detalhes sórdidos que eu preferi omitir, Carla, mas essas desventuras eram (e ainda são) frequentes em minha vida. Não sei se há algo errado comigo que atraio tanta gente estranha. Como você disse, ainda bem que o cara que foi intermediário ficou ao meu lado, senão desconfio que eu teria muita dor de cabeça para receber.
      Abraço!

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