img { max-width: 100%; height: auto; width: auto\9; /* ie8 */ }

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

MEMENTO.


As primeiras lembranças que tenho da vida são essas: morava com meus avós maternos numa casinha em Cumbica (SP). Meu avô, o velho Schloesser, trabalhava no ramo de construção, viera da França logo depois da primeira guerra mundial, onde, segundo minha mãe, ele serviu nas colunas de seu país. Era de Strasburgo, cidade situada ao leste da França, na margem esquerda do Reno. Por causa da guerra não pode se formar em engenharia, abandonou seu país natal e veio para o Brasil, interior de São Paulo onde conheceu dona Silvéria, minha avó. Fixado na região de Ourinhos, ele construiu casas, escolas, projetou prédios, alambiques e era exímio enxadrista. É tudo que sei dele. Tinha bom porte , austero. As lembranças que tenho é de um senhor de cabelos branquíssimos, que sempre saía com uma boina azul típica usada na França antiga, terno bem cortado, sapatos pretos e uma bengala. Apesar de idade avançada e já doente, ele construía sozinho uma casa bem defronte onde morávamos, no mesmo terreno. Havia uma estrada de chão batido em frente a nossa morada, seguido de um barranco alto e mata espessa de árvores centenárias.
Minha avó era uma senhora miúda, magrinha, de cabelos acinzentados, sempre curtos, analfabeta de pai e mãe, cega de um olho devido a um infeliz acidente. Minha mãe, uma jovem mignon, de cabelos longos negros lustrosos, e meu pai um cara robusto, de compleição taurina, olhos verdes e cabelos escuros penteados com gomalina, sempre calado e ensimesmado. Na verdade ele me dava medo. Estava sempre ausente, trabalhando em algum lugar. Minha mãe também aparecia pouco, trabalhava como governanta na casa de uma italiana chamada dona Franca, cuidava em especial dos filhos desta senhora, e embora eu não os tenha conhecido, até hoje lembro seus nomes de tanto que minha mãe comentava, Flávia, Paulo, Humberto e Gigliola (esta morreu aos 15 anos de idade num acidente de carro em 1969).
Tínhamos um cachorro chamado Rintintin, de pelagem avermelhada, parecia uma raposa. Morreu por aqueles tempos, provavelmente envenenado, pois segundo minha mãe, as aves de rapina nem se aproximaram do local onde jazia o cadáver. Eu me pergunto hoje, porque meu avô não o enterrou?
Minhas recordações deste período são difusas, afinal, que idade eu devia ter? Três? Quatro anos? O único brinquedo que me lembro de possuir era uma bonequinha de um palmo de cumprimento com uma diminuta chupeta em sua boca e usava uma fraldinha de plástico quadriculado azul, o mesmo material que se usava antigamente para encapar cadernos. Sei disso pois uma noite antes de minha mãe partir para a cidade, eu tinha que fazer xixi para de me botarem na cama e eu disse que a boneca deveria fazer o mesmo, simulei com a boca o som da urina saindo do brinquedo.
Minha madre foi cantora muitos anos, se apresentava em programas de rádio, e cantava com sua voz doce de soprano músicas para me fazer dormir, uma delas,  "Luciana" interpretada pela Evinha, uma artista popular da época, tinha o poder de me fazer chorar, dada a sua comovente melodia..
Eu tinha uma sensação muito forte de tristeza e desamparo, embora a dona Silvéria fosse onipresente naqueles dias.
Eu vivia me acidentando. Certa vez fui até onde meu avô estava trabalhando e um tijolo caiu na minha cabeça. Ganhei um galo e chorei muito, mas não tanto quando coloquei pimenta nos olhos. Foi assim: minha avó punha às vezes, semente de pimenta para secar ao sol em cima de um tambor de metal bem que era bem mais alto que eu, não se sabe como (eu devia ser bastante inquieto) peguei aquilo e devo ter posto na boca e esfregado as mãos nos olhos. Gritei pra valer, minha avó veio me acudir e meu avô correu como uma bala e passou uma violenta reprimenda na pobre senhora com seu sotaque estrangeiro pensando que ela tinha batido em mim. Na verdade ela só ousava me bater ele saía e eu não parava quieto.
Lembro vagamente da Cidinha e do Paulo, meus padrinhos. Havia uma mulher com três filhos e um aleijão na perna esquerda chamada Júlia, era casada com um italiano. Aquela mulher metia medo em todos, não era boa pessoa, como tenho lembranças nefandas dela e de seus filhos, é melhor guarda-las para mim.
Minha mãe conta uma série de fatos mais ou menos pitorescos dos quais não tenho a menor recordação, coisas engraçadas que os petizes dizem ou fazem, que põem os adultos a rir. Parece que eu não gostava de andar, então quando ela e minha avó tinham que sair e eu era pesado para ser levado no colo, me levavam dentro de uma sacola destas de feira.
Quando ganhei um sapato novo, eu mostrava pras pessoas um pé e depois dizia solenemente: "olha o outro", como se não fosse uma coisa óbvia. Ao comentar sobre uma fogueira de São João, falava assim: "fizeram uma FODERONA!" Me queimei com ferro de passar roupa e eu tinha medo de chegar perto dele, mesmo quando não estava em uso. Talvez por isto hoje eu tenha tanto receio de materiais que emanam muito calor.
Foi deste período o caso em que eu e o filho da madrinha brincávamos com uma cobra coral verdadeira, já relatada numa postagem antiga.
Estas coisas todas eu poderia procurar confirmação com minha mãe, mas preferi relata-las como estão em minha memória.
Continuamos em outra ocasião.

2 comentários:

  1. Que texto incrível cara. Gostei muito, e obrigado por compartilhar fragmentos raros assim conosco.

    Grande abraço.
    PS: Gostei da ilustração^^.
    *´¨)
    ¸.•´¸.•*´¨) ¸.•*¨)
    (¸.•´ (¸.•` ** Takamura
    Takamura do blog: Tatsu Estúdio

    ResponderExcluir
  2. Não há o que agradecer amigo, eu é que sempre estou em dívida com quem tem paciência de ler e participar de minhas reminiscencias e artes.
    Querendo Deus, haverão outras.
    Abração.

    ResponderExcluir

RESENHA DE ZÉ GATÃO - SIROCO POR CLAUDIO ELLOVITCH

 O cineasta Claudio Ellovitch, com quem tenho a honra de trabalhar atualmente (num projeto que, por culpa minha, está bastante atrasado) tem...