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domingo, 9 de agosto de 2015

ELE SE FOI.


Hoje é dia dos pais. O meu partiu. A nós que ficamos, resta a saudade.


Esses últimos dias foquei no trabalho, nada mais me restava fazer senão digerir o vazio que uma separação destas costuma gerar. Tive que diariamente resolver aquelas coisinhas de sempre na rua, mercado, padaria, pagar boletos na lotérica. Ia sempre com passos lentos, como se tivesse envelhecido cem anos.

Meu ombro direito ainda me tortura. principalmente quando a temperatura cai.

Consegui terminar as artes do novo livro de anatomia, agora escrevo e reviso os textos.

Na tarde da sexta feira que passou fui até a casa da minha sogra levar alguma coisa para ela e na rua de chão que dá acesso à sua residencia, uns metros à minha frente um bando de cães se aglutinavam em volta de uma cadela no cio, devia ter pelo menos uns 15 cachorros. Não fiz caso, passei por eles sem dar a mínima. Um deles, um preto (o único com uma coleira) parecia ser o líder da matilha, correu na minha direção latindo ensandecidamente e arreganhando os dentes. Passei uns bons minutos suando frio, tentando me livrar das dentadas dele. A cena era patética, ele avançava para me abocanhar e eu esticava meu pé para chutá-lo e ele recuava para investir de novo. Acho que a cadela querendo se livrar de um outro, ganiu e chamou a atenção dele e assim, indeciso entre ficar atento ao bando de pulguentos e arrancar um naco da minha carne, o vira latas me permitiu afastar devagar, a distância entre nós foi aumentando lentamente, o danado ainda fazia menção de me perseguir. Felizmente nada aconteceu mas confesso que se eu tivesse uma arma naquela hora, teria dado um tiro na boca daquele filho da puta.

Planejava um texto sobre meu pai que, percebo, não vai sair como eu queria, afinal fiz rodeios comentando sobre cães vagabundos e outras amenidades. Talvez eu não esteja preparado ainda, acho que é muito particular. Mas vou dizer o seguinte, não é segredo que eu e meu pai tínhamos uma relação difícil, talvez fosse o velho conflito de gerações, ele parecia um dos últimos representantes do patriarcado. Sempre houve muita tensão entre nós, todavia eu sempre soube que com ele eu poderia contar para o que desse e viesse. Ele nunca me faltou e gostaria de exemplificar relatando dois fatos que me marcaram bastante.

Antes de ser um pretenso autor de quadrinhos eu era um colecionador de gibis e ávido leitor dos mesmos. Um dos meus autores preferidos é, e sempre será o lendário Richard Corben. Procurei ter tudo o que fosse possível deste artista no meu acervo. A Toutain, uma editora espanhola, tinha uma rara coleção de 10 volumes reunindo o que de melhor o Corben já produzira até então. Com muito custo eu consegui algumas edições - o item número 2 não tenho até hoje!
Certa noite eu estava num cine clube que ficava na Rua Augusta e entrei numa livraria...bem, não era propriamente uma livraria mas um espaço de produtos importados que ficava por ali. E no meio de uns tomos empoeirados, divisei apenas a parte de uma capa e pelos tons de colorido eu reconheci o estilo de Corben. Peguei o álbum e ali estava o que naquela época já era uma relíquia mesmo na Europa: "Bloodstar", a edição 7 da coleção Toutain, uma das obras mais famosas de Corben que havia sido publicada em capítulos na Heavy Metal. Era um texto adaptado de um conto de Robert E. Howard conhecido como "The Valley Of The Worm".
Perguntei o preço e quase cai de costas! Eu sabia que era caro, afinal a peseta tinha um valor muito maior que nossa moeda (isso foi antes do real) e vivíamos numa era de inflação galopante. Tinha noção de que se aquilo fosse parar nas mãos de qualquer outro aficionado por hqs eu certamente o perderia. Pedi ao dono do lugar que guardasse para mim, eu viria pegar no dia seguinte, embora não soubesse como.
Cheguei em casa e meu pai assistia televisão. Nosso retorno a São Paulo foi muito difícil nos primeiros meses, o dinheiro era extremamente curto. Contei a ele da minha descoberta, um item raro do Corben em espanhol. Ele perguntou o preço e eu falei. Ele não se mostrou surpreso. Acho que ele leu nos meus olhos que eu dava mesmo importância àquilo. Foi ao seu quarto, voltou e me entregou o dinheiro que eu precisava, eu sabia que aquela grana estava destinada a algo mais importante que um mero álbum de quadrinhos, ainda que fortuito, e assim agreguei mais um título à minha coleção. Acho que nunca agradeci a ele da forma devida.


Outro fato, mais importante, se deu no ano de 1997. Eu já estava com o álbum Zé Gatão (que mais tarde ficou conhecido como "Cidade do Medo") pronto desde 1993 esperando uma chance de publicar, mas não havia nenhuma editora que pudessem levá-lo a publico - lembrem-se: nos anos 90 no Brasil não haviam álbuns de hqs nos moldes dos europeus, talvez alguma coisa do Mutarelli - e ficava com todas aquelas páginas guardadas em casa. Umas duas pessoas muito embevecidas com meu trabalho e carisma do personagem pensaram em usar dinheiro do próprio bolso e colocá-lo na praça. Meu sonho ia sendo alimentado a cada dia e era desmoronado como castelo de areia a cada frustração. Até que um dia meu pai me perguntou:
- E aí? Vamos publicar?
- Quer mesmo arriscar? Indaguei eu.
- Acha que isso dará certo? Dá pra fazer dinheiro com quadrinhos? Ele quis saber.
- Difícil dizer, mas eu acredito no potencial.
- Então vamos nessa! Disse ele com confiança.
Pegamos um empréstimo num banco e o resto é história.

Não fosse por ele creio que Zé Gatão demoraria muito mais para ser publicado ou talvez nem fosse.

Esses dois exemplos são duas gotas no oceano mas dá pra ter uma ideia do todo.

A vida deve seguir. Ele, assim como meus avós maternos viverão ternamente em minhas lembranças.

É bom estar com vocês novamente depois desta breve pausa.

14 comentários:

  1. É sempre um troço escroto, quando cães de rua chegam na gente, querendo morder ou só latir como se fossem reis do pedaço.

    Meu pai quase sempre comprava gibis pra meu irmão e eu. Graças a ele (que ficou fã do Wolverine), é que fiquei fã dos X-Men desde meus 12 anos. Se dependesse da minha mãe, só leria Luluzinha ou outra coisa mais infantil. Nada contra, mas... Hahaha!
    Se bem que ficava com vergonha (nem sempre) de pedir pros meus pais comprarem revistas pra mim, que nem eram caras assim, mesmo que aumentassem um mês após outro.
    E se fosse algo importado (tipo esse do Corben, tipo uma Animal) ou de um preço alto, então... imagina que cena seria.

    Meu pai andou curtindo os fanzines que fiz. Meu irmão, um colega dele e eu passeamos com ele neste Dia dos Pais. Depois de almoçarmos e caminharmos, vimos uma exposição de dinossauros mecânicos num shopping. Ele não curtiu tanto, talvez, pelo cansaço de ter ido a uma festa na noite anterior e especialmente, por não ser chegado a shoppings.

    Um amigo meu, que faz ilustrações realistas e comenta sobre games, adorou a capa do Zé Gatão, na postagem recente.
    Já li e um dia desses, vou comentar numa edição próxima do Hq"Free".
    Valeu!
    Abraços.

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    1. Salve, Anderson!

      Meu, acho que quadrinhos são o máximo desde sempre, não importa se é Pato Donald ou a Animal. Eu quando era guri curtia demais as revistas da Luluzinha e cia. Lia muito Gasparzinho, Tininha, Bolota, Riquinho e Brotoeja também. Agora depois que vou envelhecendo voltei a ler super-heróis, estou relendo a saga da Fênix Negra. Muito fera, mesmo depois de tantos anos!

      Legal que você e seu irmão tenham passado o dia de hoje com seu pai. Valorizo isso.

      Abração e apareça sempre.

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  2. Bem-vindo de volta à blogosfera, Schloesser!

    Sua cena com os cachorros me fez lembrar de minha mãe. Ela saía para caminhar, levando uma antena de carro para espantar os cachorros de rua que apareciam.

    Pelo que tenho lido sobre seu pai, creio que ele tinha orgulho de você, mas só demonstrava de forma indireta. O importante é que, no fim das contas, vocês se amavam.

    O desenho no alto do blog tá lindo e diferente dos outros que você faz. Lembra um quadro.

    Já ia me esquecendo, você é pai. Tente ser legal. A gente nunca se arrepende de demonstrar carinho.

    Abraço!

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    1. Que bom te rever, Carla!

      O problema com com os cães de rua é que quando eles formam uma matilha se tornam perigosos, minha sogra assistiu a tudo do portão da casa dela sem poder fazer nada, ela até pensou em pegar uma pedra pra me ajudar. Naquela mesma noite ela foi a igreja e viu novamente o bando e exatamente o mesmo cachorro atacou um menino. Talvez esteja na hora de uma autoridade, qual seja ela, tomar uma providência. Sua mãe deve ter muito cuidado em suas caminhadas.

      Quanto ao meu pai, acho que era isso mesmo que você falou.

      Realmente, eu desenho poucas paisagens, gosto tanto de formas físicas que tenho sempre que colocar alguma no enredo. Esta arte que você cita foi a capa que fiz para um dos livro do Machadão chamado Casa Velha, se me lembro bem.

      Quanto a Samanta, minha filha, ah, minha amiga, esta história é um pouco complicada! Ela já está com mais de 30 anos, o motivo de eu comentar tão pouco sobre nós é exatamente por respeitar o silencio e ausência dela.

      Obrigado por sua amizade, atenção e comentários.
      Forte abraço.

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  3. Oi Eduardo. Sei que faz pouco tempo, mas espero que esteja correndo tudo bem pra você. Gostei da postagem, acho que entendo tu começar com algo que não fosse exatamente sobre seu pai, mas sim sobre você. Creio que você estava tentando chegar no assunto principal de forma indireta, talvez inconsciente. Meu pai continua aqui, e eu também tenho uma relação que até já foi mais conflituosa com ele. Embora as coisas andem mais calmas, as diferenças de gerações sempre pesam, não é? Sei que eu e ele temos nossos defeitos e tentamos respeitar o espaço um do outro atualmente. Gostaria muito de ter uma melhor relação com ele, mas realmente eu deveria me empenhar mais nisso. Tudo de bom pra você, cara. E cuida desse ombro. Hoje o que está me perturbando é o pulso direito, mas nem por causa de desenhos, e sim porque andei exagerando no videogame, rs. Tenho que ter mais foco. Até a próxima, mestre.

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    1. Meu caro Everton, grato por sua presença e comentário.

      Sim, acho que fui dando rodeios até entrar no assunto propriamente dito, é algo delicado, sabe. Mas deixei o coração falar, pelo menos o que eu queria que fosse público.. a generosidade e confiança que meu pai me inspirava.
      Esse tal conflito de gerações coloca mesmo uma barreira entre pai e filho, aprisiona nossos sentimentos e impõe uma mordaça nos lábios impedindo que palavras de amor e perdão quebrem as cadeias.
      Aproveite a companhia do seu pai enquanto pode e faça a sua parte para que aja uma melhor relação afetuosa. A vida passa rápido.

      Meu problema no ombro já ficou crônico, mas assim que reativar o plano de saúde vou ver se resolvo isto, estou louco pra voltar a puxar ferro. Veja este problema no pulso, bota gelo nele.
      Grande abraço e sucesso.

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  4. Puxa, nem sei o que dizer. Apesar de todas as diferenças, seu pai foi como vc disse um grande pai. Esses dois episódios mostram bem isso. Força aí!
    Fiquei sem entrar um pouco aqui, mas vamos recuperar a frequência.
    Grande abraço!

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    1. Opa, Gilberto, tudo na paz?

      Notei mesmo sua ausência aqui no meu espaço, seus comentários fazem falta, mas compreendo, a vida está cada dia mais corrida, agitada; existem muitos sites e blogs de artistas ao redor do mundo que admiro e que está cada dia mais raro d´eu visitar. Bem, a gente tenta.

      Grato pelas palavras sobre meu pai. Se não me engano você postou uma foto do seu no Facebook, não foi?

      Grande abraço e felicidades!

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  5. Sábios conselhos, Eduardo. Meu pai tem hoje 54 anos, apenas 20 a mais do que eu. Somos dois cabeças duras, mas de tanto eu insistir no desenho e ele ver que isso atualmente me sustenta, passou a ter mais respeito pelo profissional e, creio, pelo filho. Eu já tenho crescido meu respeito por ele a medida que vivencio, graças justamente à idade, alguns problemas que ele certamente já viveu e agora é a minha vez. É uma boa relação, mas sempre pode melhorar. Eu aproveitei o plano de saúde esta semana pra tentar melhorar minha respiração (operei). Malhar, só daqui a mais de um mês, e eu bem que estou precisando. Abraço, cara! Tudo de bom pra vc e sua família.

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    1. Que legal, meu amigo, fico feliz de ouvir, ou melhor, ler tais palavras. O amadurecimento nos ajuda mesmo a entender certas coisas.

      Obrigado e felicidades.

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  6. Os pais existem através de nós, de uma forma , ou outra, seja pelo DNA, seja pelas lembranças marcadas, as vezes até a ferro e fogo, as vezes a carinho e respeito. Meu pai sempre me perguntou "Quando é que você vai arrumar um trabalho de verdade?", se referindo a minha escolha em ser desenhista de quadrinhos, que tomei aos três anos de idade, e pautei toda minha vida a isso. Ele morreu sem saber que eu sabia o quanto ele,escondido da família, entre os amigos, falava aos quatro ventos, com os olhos marejados de orgulho e um largo sorriso nos lábios "Meu filho? Meu filho é um artista!". A ausência é eterna, o tempo ensina a se conviver com ela, e mesmo em meio a dor, sento um gostoso calor a me aquecer o coração ao lembrar da palavra PAI. Fica com Deus, nobre Eduardo Schloesser, pois, realmente, Nele nos confortamos, principalmente nesses momentos difíceis da vida.

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    1. Sábias palavras, Allan. Nem há o que acrescentar, só posso te agradecer pela amizade, carinho e força.
      Grande abraço.

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