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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

ANTONIO.


Depois de alguns meses morando no Brasília Pálace Hotel, o apartamento funcional a que meu pai tinha direito finalmente ficara disponível, e foi com certa tristeza que mais uma vez nos mudamos, agora pra sentir pra valer as diferenças entre São Paulo e o Distrito Federal, pois no hotel sempre haviam acontecimentos um tanto peculiares que não nos deixavam submergir totalmente em uma nova e pacata rotina de vida. O tal apartamento situava-se na SQN 104, bloco "C", bem ao lado da escola onde já estudava desde o princípio do ano (os que me acompanham neste blog a mais tempo, hão de se lembrar da postagens sobre minha chegada a Brasília e meu encontro com o Raul Seixas).
Ficamos lá por cerca de um ano (fomos depois para a SQS 202) mas foram tantos fatos ocorridos ali que a impressão que dá é que foram no mínimo uns cinco anos. Eu precisaria de pelo menos mais umas duas postagens para relatar os casos mais pitorescos, sofri muito bulling aquele ano, brigava quase toda a semana, mas isto fica para uma outra vez, quem sabe; o objetivo real ao dividir com vocês estas lembranças é para falar do Antonio, um colega de sala de aula, que vez por outra vem se fazer presente em minhas reminicências, e isto por um motivo bem característico: ele tinha um problema de dicção que o impedia de proferir as letras "R" e "L" numa palavra. Analizando hoje, posso imginar que sua lingua travava, não chegando a bater a ponta no céu da boca, substituindo as referidas letras por um "V". O curioso é que só eu parecia notar isto.

O Antonio era um rapagão alto, encardido e mal-ajambrado, sempre com as roupas rotas e sujas, morador da Vila Planalto, metido a boa praça (e no fundo talvez fosse mesmo). Ele me chamou a atenção logo no primeiro dia de aula, quando entrou em sala como se fosse dono do lugar, a camisa aberta e as calças caídas deixando entrever a cueca (hoje é moda, mas não em 1975). A professora, uma moça muito bonita, de olhos verdes, fuzilou:
- Antonio, feche essa camisa menino!
- Tô cum cavor, fessova! Respondeu ele num tom debochado. E a camisa continuou aberta, ninguém ligou. Estranhei. Em São Paulo, no Caetano de Campos, isto seria inadmissível. Talvez o processo de desmantelamento da educação começasse ali, uma nova modalidade de ensino, com talvez mais "liberdade" para o aluno, teorias quiçá engendradas por educadores a la Roberto Freire e tutti quanti.
Não lembro como, mas fiquei próximo do Antonio, e cada vez que ele falava eu desatava a rir, acho que ele nunca soube o porque. Na boca dele esta frase saíria assim: " O candidato Vuís Inácio Vuva da Silva sevía um cava muito vegal se não fosse aqueva barba."
Era briguento, e cada vez que ele falava "desci o cacete naqueve cava" eu dava uma gargalhada. "Esse cava é vouco, fica rindo a toa, cava mavuco do cavalho!"

Certa vez, por um motivo fútil o Antonio parou de falar comigo "ou favar, como eve divia", e passou a andar com o Miguel, este foi o primeiro cara que se tornou meu amigo, pois ambos éramos estranhos ao Planalto Central, ele era pelo menos dois anos mais velho que nós, repetente, um indivíduo burrão e de grande porte, mulato sarará, com cabeça, mãos e pés enormes, desproporcionais ao resto do corpo, filho de militar. Ele e o Antonio não se davam por sei lá que motivo, deve ter ficado enciumado quando me via conversando com seu desafeto e se afastou. Os dois se associaram para me encher o saco. Davam ombradas quando passavam por mim no pátio, pisavam no meu pé, barravam minha entrada no banheiro e bobagens deste tipo. Depois cansaram e voltaram a falar comigo, cada um a seu tempo. Coisas de garotos.
Um fato que merece registro é que no período que ainda residia no Brasília Pálace Hotel, certa tarde, convidei o Antonio para tomar banho de piscina comigo. Como ele tinha um aspecto de menino de rua, o segurança do hotel e o maitre se manifestaram contra, eu disse que ele era um amigo da escola e a contragosto, permitiram. Apesar de ser bem maior que eu, dentro d´agua o cara pareceu encolher de tamanho, ficando sucetível às minhas brincadeiras, tinha medo de se afogar no raso.

Aquele ano acabou e eu continuei no ano seguinte na Escola Classe 104 Norte. O Miguel foi para o Colégio Militar (sabe-se lá como) e do Antonio nunca mais tive notícias. Mas o seu jeito próprio de se expressar o manteve em minha memória, tanto assim que aquele dálmata que aparece em "ZÉ GATÃO - PINTURA DE GUERRA", fala com a mesma dicção que ele.

É isto amigos e amigas, hoje não teve desenho, mas na próxima terá, se Deus quiser, como diria meu coleguinha Antonio, "a gente vai se favando, até qualquer hova". 

7 comentários:

  1. Bom recordar esses tempos, matéria prima para literatura, quadrinhos ou cinema. Acho que, além de cultivar a Biblioteca visual, como diz o Celso Mathias, temos que cultivar essa biblioteca das recordações também.
    Abração e boa semana,

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  2. Grande Gilberto! Sabe, como já foi dito tantas vezes, ninguém vai escrever sobre mim, embora seja avesso a comentar particularidades, existem fatos que, penso, merecem registro, coisas que nem msmo minha família sabe direito, então escrevo eu mesmo estes pedaços/arremedos de biografia. Alguém pode gostar, como parece que você gostou. Grato pelo retorno.
    Abraços e boa semana pra você também.

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  3. Muito legais essas lembranças da juventude Eduardo. Adorei o modo como você utilizou essa referência na história.

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  4. Issoaí, NemesisX, é legal recordar fatos pitorescos da vida, faz a gente se sentir jovem de novo. Interessante essa impressão, não é?
    Sempre que tiver tempo e inspiração, pessoas e situações marcantes estarão impressas neste espaço, se Deus quiser.
    Obrigado por seu retorno.

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  5. Também aprecio estes relatos do passado. Que legal! Me lembrou de um moleque (não era meu amigo)... colega da 1º Série (1989) que faltava muitas aulas, chamado BENHUR (!)... que andava com roupas de mangas compridas em dias quentes e vice-versa. De que planeta ou dimensão ele veio, né?
    Abraço!

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  6. Isso, Anderson, pessoas como o Antonio e esta que você relatou rendem excelentes histórias, elas são, inclusive, muito comuns no meio dos quadrinhos (aliás, no meio da cultura pop em geral). Lembro de um gordo que trabalhava num escritótio no centro de São Paulo e era fã fanático do Homem de Ferro, vivia suado e tinha um humor bipolar, figura esquisita e difícil. Se parar pra pensar, tem cara mais estranho que o tal de Alan Moore?
    Abração e obrigado.

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ZÉ GATÃO POR THONY SILAS.

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