Se a memória não me trai, foi em 1969 que eu e minha avó fomos morar com meus pais. Pode ter sido também em fins de 1968, nem minha mãe está muito ciente disto, o certo é que foi logo depois da morte do meu avô e pelo que minha mãe conta, foi um período extremamente amargo na vida dela, tanto que ela não gosta de relembrar aqueles tempos, eu não forço a barra.
De início moramos na casa da dona Bárbara, uma alemã, amiga do velho Schloesser. A residência situava-se próximo à base aérea de Cumbica, ficava numa rua de chão, com uma ladeira que seria impossível esquecer pois foi ali que meu pai me ensinou a andar de bicicleta. Era uma época em que os guris não eram tratados a pão de ló e leite com pera, eu sofria minhas quedas, me ralava todo e meu pai me dizia, levante-se e tente de novo.
A casa ficava num ponto elevado da rua, subíamos vários degraus até chegar à porta principal. Me impressionou as dimensões daquele lugar. Ali eu tive contato com as coisas que viriam a fazer parte da minha vida: arte e fantasia. Haviam livros e revistas em quadrinhos. Um grosso volume de papel amarelado e espesso exibia imagens fascinantes de fábulas conhecidas como Chapeuzinho Vermelho (seriam de Doré?). O marido de dona Bárbara era um italiano, talvez por isto tivesse por ali vários volumes de Topolino, como eram conhecidas as revistas do Mickey na Itália. Claro que eu não sabia ler aquilo, mas devorava as figuras, me impressionava muito a violência de algumas histórias, principalmente a forma bruta com que um dos Metralhas tratava seus irmãos.
Não tinha ainda tido contato com televisão, havia uma por lá, de madeira e válvulas, mas sobre ela eu falo mais adiante, mas deixa eu adiantar que foi através dela que conheci o Brejeiro e o Marinheiro, mascotes de
Talvez para recuperar o tempo perdido, meu pai sempre que podia estava comigo, me ensinando alguma coisa. Uma lembrança forte que eu tenho foi numa das primeiras vezes que nos falamos a sós e ele me perguntou se eu sabia quais eram as cores da bandeira brasileira. Abobalhado, eu balancei a cabeça em sinal de afirmativo. "Não, não balance a cabeça, responda." Sim, disse eu numa voz fina e nervosa. "E quais são?" Eu que nem sabia exatamente o que era uma bandeira, fiquei mudo. Ele me ensinou isto e também todo o alfabeto. Recordo que ele e meu tio Etevaldo me fizeram decorar todos os estados e capitais brasileiras. "São Luís é capital de qual estado?" ARANHÃO, respondi. Gargalhadas. "Não, é Maranhão." Aprendi bem aquilo tudo, tanto assim que meu tio me levou certa vez a um bar onde ele costumava beber e disse aos outros bebedores: "Meu sobrinho conhece todos os estados e capitais do Brasil!" Os caras fizeram perguntas e eu não errava. Eles me presentearam com muitos doces naquele dia.
Meu pai usava uma cartilha para me ensinar a ler, eu aprendi na base de muitos bofetões. Desenvolvi, por este motivo, um medo dele que beirava a insanidade, e quanto mais o temia, mais o admirava, queria ser como ele, saber o que ele sabia, rir como ele ria (alguma semelhança com Kafka?). Ele trouxe do ministério uns enormes cadernos de folhas grossas e eu tinha que copiar meu nome cem vezes, depois os nomes de minha mãe, da minha avó e o dele próprio. Se eu não completasse a tarefa até a hora dele chegar - geralmente no princípio da noite - eu levava uma surra. Certa vez ele exagerou e me lembro bem que minha avó e minha mãe, que também morriam de medo dele, tiveram que me lavar numa bacia com salmoura.
A televisão era um escape e tanto, um dos primeiros programas que assistia passava a noite, era o do Topo
Gigio e era apresentado pelo humorista Agildo Ribeiro. Fiquei fascinado pelo ratinho italiano. Não demorou e fui estudar formalmente, não exatamente num colégio, mas com uma professora particular. Bem, também não era tão particular assim, ela tinha outros alunos em sua casa. O local ficava na base aérea e a mestra era esposa de um oficial. A casa dela ela muito aprazível. Não tem como me esquecer dela por três motivos: Um - por eu falar muito no rato italiano ela passou a me chamar de Gigio. Foi o primeiro e único apelido que tive na vida. Ao longo da minha existência tentaram me pôr outros: He-Man, Conan, Supermouse, Bronson, mas nenhum pegou por muito tempo, aliás, nem o Gigio, pra falar a verdade. Acho que desde cedo nunca me importei com este tipo de coisa, apelido pega quando ele te irrita ou quando você gosta tanto que o incorpora.
Dois - certa vez ela soltou um peido, aspirou profundamente e disse: "Ah, que gostoso!"
Três - a filha dela, que devia contar com uns 16 anos, reproduzia uma figura do Pateta, da Disney, em seu caderno, era idêntico ao original. Quero fazer isto. Não foi exatamente um desejo consciente, mas uma vontade de colocar no branco do papel as coisas que me impressionavam. Aquela foi a primeira vez na vida que senti ardentemente alguma coisa: o desejo de desenhar, e desenhar bem.
Agora, nos cadernões do ministério, além de copiar cem vezes as palavras que me eram ordenadas, eu também tentava desenhar meus heróis. Alguns deles eu conheci primeiro na tv, foi o caso do Superman com o George Reeves, eu era fissurado no herói, vê-lo tirar o terno, mostrar o "S" no peito e pular pela janela do edifício, alçar voo e salvar quem precisava de ajuda era sempre uma emoção renovada. De verdade, eu
pensava que ele existia. Certa vez, na entrada da base, para ir à aula, eu teimei com dois soldados do portão que o Super-Homem existia, EU TINHA VISTO NA TELEVISÃO.
Outro que me causava deslumbramento sem igual era o Batman, com o Adam West. Aquela série marcou demais a minha infância. A cada final de episódio eu ficava louco pra saber como ele e o Robin iam escapar das armadilhas criadas pelos vilões. Julie Newmar na pele de Mulher-Gato causava em mim um êxtase inexplicável.
Não perdia também nenhum episódio de National Kid. Já comentei sobre ele em um post mais antigo.
Inesquecível também era o Zorro da Disney, cujo protagonista era o Guy Willians.
Cisco Kid e seu amigo Pancho também foi largamente desenhado (se é que aquilo podia ser chamado de desenho) nos meus cadernos.
Eram os personagens que me encheram a infância de enlevos.
Entre o aprendizado, bofetões, tentativas de desenhar e programas de televisão, eu passava meus dias em companhia de uma cadela vira-latas que ficava confinada numa área superior do quintal da casa. Tinha que subir vários degraus de escada para chegar até onde ela estava. Era a minha companheira, uma vez que não havia outra criança para brincar. Para minha vergonha evoco que eu fazia uma maldade com ela, pegava-a pelas patas dianteiras e rodava bastante e soltava num certo momento. Mas o pobre animal sempre vinha com o rabo entre as pernas pra perto de mim. Por muito tempo eu achei que todas as desditas porque passava eram mais que merecidas por brincar de forma violenta com um bicho tão meigo. Não consigo me lembrar a quem pertencia aquela cachorra, nem que fim levou.
Eu fazia muitas perguntas e torturava minha mãe com elas. E eram as questões mais idiotas. Naquela época havia um cantor da Jovem Guarda, muito popular, chamado Eduardo Araújo (sim aquele mesmo do carro vermelho e que não precisava de espelho pra se pentear), por ter o mesmo nome que ele eu achava que quando crescesse eu iria me tornar ele, e dizia pra minha mãe que queria ser eu mesmo. Mas você vai ser, dizia ela, mas eu teimava e continuava achando que ao ficar adulto eu iria automaticamente me transmutar num outro cara. Eu não conhecia nenhum outro Eduardo. Minha mãe era cantora, cantou muito em rádio e programas de tv da época, mas meu pai não lhe permitiu seguir carreira como a Ângela Maria. Ela tinha longos cabelos negros que lhe chegavam até a altura dos lombares, certa tarde ela apareceu com as madeixas cortadas nos ombros. Acho que uma nova vida começava pra ela.
Uma vez ao chegar do trabalho meu pai me trouxe a Mônica nº 1, acho que aquele foi o primeiro gibi que tive na vida.
Minhas tentativas de desenhar continuaram e meus pais me deram uma ferramenta que me deu autoconfiança, um Desenhocop. Era um caderno em espiral com folhas de papel vegetal com desenhos de bichos, momentos marcantes da história brasileira e etc, os desenhos eram como carbonos, colocava-se uma folha branca por baixo e dava pra decalcar o desenho, não consigo explicar bem, mas vocês podem fazer uma ideia. Aquilo me deu motivação. Custavam muito caros na época, acho que tive uns dois ou três, se tanto.
Foi por este período que Deus não permitiu que eu morresse afogado, mas sobre este fato eu comento numa outra postagem, se tiver paciência pra tanto.
Eu vivia com medo e muito sozinho boa parte do tempo, não eram só os olhares duros do meu pai, nem as coças de minha avó, havia uma sensação de inadequação a tudo e achava que era pesado às pessoas.
Em algum momento eu soube que minha mãe estava grávida. No mês de outubro de 69 meu pai subiu com meu irmão enrolado num cobertor amarelo e o deixou em cima da cama pedindo que eu tomasse conta enquanto ele e meu tio carregavam minha mãe sentada numa cadeira por todo aquele lance de escadas.
Fiquei observando a criaturinha que dormia envolto no cobertor. Aquele era o primeiro dos três maiores presentes que Deus me daria na vida.
Fala, Eduardo! Cara, como é legal ler seus relatos! Dá uma sensação esquisita, pois vivi muitas das experiências que você viveu, devido à época ser quase a mesma (sou quase de sua idade). Lembro da TV a partir de 70, ou um pouco antes. Lembro de National Kid, de Topo Gigio, do Batman de Adam West...só lembro vagamente do Superman; acho que não vi muito. Lembro muito do Zorro também. Época boa (kkk, ficamos velhos, dizemos isso).
ResponderExcluirMas sério, valeu por compartilhar e me fazer voltar no tempo também.
Triste só esse lance de suas surras.
Um grande abraço,
Então, Gilberto, noto que vale a pena manter esse blog e relatar até mesmo coisas bem pessoais quando recebo um retorno como esse seu, alguém responde como se fosse um eco. Obrigado por se manifestar. Havia ainda uns detalhes bem interessantes sobre este período nesta casa, mas infelizmente meu tempo não permite uma postagem maior que esta (e olhe que fiquei boa parte da tarde nela), mas fica para uma outra vez, ou deixa pra lá. Haverão, se Deus permitir, outros relatos de pontos diferentes da minha vida. Aguardemos.
ExcluirQuanto as surras, confesso que me sinto mal por transmitir esta imagem do meu pai, mas foi verdade, não há da minha parte,embora possa parecer isto, nenhum ressentimento, faço parte de uma geração onde isto era comum, não havia muita tolerância. Isto foi algo que se perdeu, muitos podem achar bom, mas por outro lado, as mudanças que muitos dizem que foi para melhor, entregou nas mão dos jovens as rédeas de tudo, jovens cada dia mais fracos, maricões e calhordas em sua maioria, salvando-se uns poucos.
Grato, meu amigo mais uma vez e aguarde por mais.
Forte abraço.
Oi, Schloesser! Você teve a Mônica número 1, que legal! Sua infância, em termos de cultura pop, é bem parecida com a do Leroy porque vocês nasceram no mesmo ano. Ele é de fevereiro. Eu cheguei cinco anos depois e perdi o National Kid. Em "compensação", meu pai e o seu tinham muito em comum. Parabéns pelo ótimo post!
ResponderExcluirOla, Carla! Sim, como eu disse, a Monica foi o primeiro gibi inteiramente meu, afinal os Topolino que haviam naquela casa eram do marido da marrenta dona Bárbara.
ResponderExcluirEu arrisco dizer que o Leroy teve uma infância, senão mais divertida, com certeza mais marcante que as gerações que nos sucederam, principalmente se formos comparar com os nascidos a 20 ou 30 anos.
Obrigado por sua visita e comentário.
Eita! Faltou um "H" e acento no texto acima. Sorry. Digitar na pressa dá nisso.
ExcluirOi.Eduardo, bom post esse. Quando digo que você é inspirador é disso que me refiro, além dos seus desenhos, a forma com qual você escreve é fascinante. Você deixa o relato tão vívido, sendo ele fato ou mito. Efim, você sim, é um grande artista. Boa tarde.
ResponderExcluirBoa tarde, Adalberto. Obrigado por sua palavras gentis, elas me enchem de ânimo e inspiração para produzir mais e mais.
ExcluirGrande abraço.