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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

AMARGOS TEMPOS IDOS.



As dificuldades dos dias presentes me reportam aos anos 90 em São Paulo. Lá, durante quase toda a década, foram dias de muita labuta e quase nenhum dinheiro. Trabalhei como capista para algumas editoras e fiz diversas ilustrações para outras tantas, todas publicadoras pequenas (bem, com exceção da Escala, que de pequena nunca teve nada, mas pagava como se minúscula fosse), então grana para dar aquele pulo mais alto nunca foi uma realidade naqueles tempos. Fiz artes para serigrafia e criei estampas para camisetas. Pintei retratos a óleo e tentei fazer a vida com comércio arrendando uma banca de jornal (fiz um post sobre isto) mas nada deu resultado. Nem posso dizer que hoje mudou tanto. Acabei construindo um nome que me permitiu ter acesso a outras portas, em parte por causa de Zé Gatão e também por conta dos álbuns onde eu ensinava a desenhar, que me levaram ao ramo de ilustrações de livros, e isto sim me permitiram ter uma vida menos estafante, pegar uma coleção de muitos títulos dá pra fazer algum planejamento, mas acontece de alguma coisa falhar, como por exemplo mudanças de direção da empresa, ou o autor do livro quebrar o braço e coisas assim. Nem sei bem o que aconteceu nesses últimos meses, e aí é como se eu voltasse no tempo.

Em Sampa, não lembro exatamente quem me apresentou a um gringo, e até hoje não sei exatamente qual a nacionalidade do cara, se era chileno, boliviano ou uruguaio, sei lá, o cara trabalhava confeccionando placas e toldos, fazia um trampo muito caprichado. Ele tinha um personagem de histórias infantis muito expressivo e precisava que eu desse corpo às suas ideias. Fiz umas aquarelas que chamaram muita a atenção de editoras mas parece que o texto dele precisava ser burilado e a coisa deu em nada. Não vi cor de dinheiro com aquilo, exceto uns trocados que ele me levou umas duas vezes para me estimular a fazer o meu melhor. Quase tudo que eu ganhava com meus frilas eu mandava pra Samanta, minha filha. Sempre paguei os estudos dela, aliás, a única coisa que pude fazer.

No período deste gringo eu já namorava a Verônica, mas um pouco depois destes acontecimentos ela voltou para Pernambuco e o gringo me procurou para falar de um outro trabalho. Um coroa, muito distinto assumira um dos tantos cinemas de putaria do centro da cidade, reformou e tentou torna-lo um local decente (se é que dá pra chamar assim) para assistir um pornozinho, contratou seguranças para fiscalizar e impedir que os veados ficassem se pegando no banheiro ou no escurinho da sala de projeção. Nesta época muitos cinemas desta natureza não usavam mais o bom e velho projetor de 35 milímetros, mas um sistema de projeção em VHS, ou seja, numa cabine o vídeo cassete rodava o filme e de uma forma que não saberia explicar, o filme era projetado no telão.

O referido cinema (que não lembro mais o nome - me perdoem) ficava no Largo do Paissandú. Exatamente nesta rua à direita de quem vem do Anhangabaú.

O coroa planejava decorar as paredes dos corredores do cinema com figuras de mulheres bonitas e o gringo me indicou como a pessoa certa para a tarefa. Como estava precisando muito de dinheiro, aceitei a mixaria que me ofereceram. Já tinham até os modelos a serem retratados, todas de revistas eróticas. Executei, se não me falha a memória, umas dez pinturas naquelas paredes, todas entre dois e três metros. Eu misturava corantes na tinta acrílica branca, própria para pintar casas e assim ia encontrando os pigmentos. Era uma trabalheira do cacete, o gringo fazia as misturas, mas depois de um tempo vi que o cara tava perdendo o tempo dele, ele ganharia mais fazendo seus toldos, dispensei-o e fiquei lá sozinho, perdido nos meus pensamentos, me perguntando porque não virei, sei lá, biólogo, astronauta ou oceanógrafo. Minha alquimia me permitia encontrar com relativa facilidade o tom de pele, mas o mais difícil era desenhar na parede e deixar o desenho proporcional, eu subia e descia uma escada vacilante mil vezes até que estivesse do meu agrado, só então eu começava a pintura.
Sabia que ninguém se interessaria por perfeição naquelas obras, mas eu nunca consegui fazer algo que não estivesse bom o suficiente, se a arte não presta, vai pro lixo. Eu tinha que ilustrar aquelas beldades o mais próximo da realidade que me fosse possível com aqueles parcos materiais. Sem modéstia, alguns ficaram muito bons, outros não consegui, mas depois de uns dez dias (eu pintava um painel por tarde) cheguei a um ponto em que tive que me dar por vencido e não caprichar demais, não seria valorizado e o dindim não compensava.
Quando pintei as modelos próximo à entrada do estabelecimento fiquei com medo de ser visto pelo meu pai, ele sempre passava por aquela rua em determinada hora da noite quando voltava do escritório de um amigo dele, não seria legal ele me ver num ambiente daqueles, mesmo que fosse apenas a trabalho. Mas felizmente nunca aconteceu.

Enquanto executei o serviço aconteceram uns fatos pitorescos. A moça que ficava na bilheteria era uma morena alta e bonitona, sempre que ela tinha um intervalo vinha bater papo comigo e me cobrir de elogios pelas pinturas, pra desespero de um dos seguranças, que mesmo sendo casado dava em cima dela. A esposa do cara tinha dado luz a uma menina e ele não sabia que nome daria à criança. Sugeri um nome comum, é melhor que ficar inventando. "Estou pensando em chamar de ANANA." disse o infeliz. "Não, cara, Anana rima com banana, não faça isso com a sua filha"- disse eu, mas foi o mesmo que falar com uma porta.
Uma noite entrei na cabine onde estava a morena, para tomar um copo de água e ela assistia o filme pelo monitor. A cena mostrava uma loirinha bombada sendo possuída por trás por um cara cavaludo, com boa dose de fúria. "Como alguém pode aguentar uma coisa dessas?"- perguntei. "Um sexo selvagem as vezes é muito bom!"- respondeu ela. Eu estava sentado ao lado dela e ela apertou o meu joelho levemente. Tentação grande, mas eu acredito em fidelidade, fiz que não percebi e voltei ao trabalho.
A garota não foi mais falar comigo. Perguntei se tinha acontecido alguma coisa e ela respondeu que estava chateada comigo porque eu não havia dito que era casado e que tinha três filhos. Meu primeiro impulso foi dizer que não tinha satisfações a dar a ela, mas apenas respondi que não era casado e só tinha uma filha que morava no Rio de Janeiro. "Ué, mas o segurança me garantiu que você era casado e traía a sua esposa!" "Bem, o cara é um puta mentiroso, mas que diferença isso faz?" Evitei contato o máximo que pude, aquilo não podia dar boa coisa.
Havia um outro segurança lá, um cara alto, gordo e imbecil, com uma voz bonita pacas. Era locutor de rádio, mas estava na merda, como eu. O cabelo do cara eu preciso descrever aqui: era comprido mas com as orelhas de fora, no topo da cabeça era como se fosse o ninho de um condor. Na boa, nunca vi um sujeito pra falar tanta bobagem. Eu o evitava como a uma praga.

Uma vez o meu empregador veio com uma foto da escultura do Príapo, aquela figura bizarra de tranças na barba e patas de bode com um enorme pênis em riste e pediu-me para pinta-lo na parede do corredor após a roleta. Era um local mais discreto. Fiz a contra-gosto. Procurei na net uma imagem da estátua pra postar aqui mas mudei de ideia por ser de muito mau gosto.
Recebi pelo trabalho e me fui com mais esta experiencia nas costas.
Não posso negar que toda vez que passava pelo Paissandú eu ia rever as minhas pinturas. Ficaram boas. E com desgosto eu notava que vândalos pichavam  caralhinhos na direção das nádegas das moças, balões de pensamento com frases obscenas e por aí adiante. O segurança devia estar pegando a morena para não ver isto. Ao fim de alguns meses, as pinturas estavam bem sujas e maltratadas.
Pena que só existe uma foto meio desfocada que o dono do cinema tirou de mim no topo da escada malemolente enquanto eu passava tintas num dos desenhos, mas ela deve estar num dos álbuns da minha mãe.

Tempos depois recebi um recado do dono do cinema para procurar uma certa mulher num prédio que ficava na Avenida São João, próximo da Galeria do Rock. Lá, todo um enorme apartamento estava sendo reformado para virar uma casa noturna, na verdade, um puteiro. Fui atendido por uma moça coxuda, de shorts curtíssimos, puta toda vida, que dizia ser a gerente do local. Queria que eu pintasse uns casais transando nas paredes. Tinha que ficar tudo pronto em três dia para a inauguração, a grana era ainda menor do que haviam me dado no cinema e eu já estava de saco cheio daquele tipo de coisa. Falei que tinha outro trabalho e não poderia atende-la. Ela perguntou se eu não indicaria alguém. Falei que não conhecia ninguém. Me mandei, pra mim tinha sido o suficiente.

9 comentários:

  1. É... baita relato!
    Me lembrou de uma certa vez (2001, creio), em que um babaca que tinha uma sala/locadora de jogos (videogames) me perguntou se eu toparia pintar um desenho na parede. Meio receoso e sem material, já que nunca tive ateliê e nem as tintas pra pintar paredes, muros ou faixas... aceitei. Mas, nunca aconteceu. Meu erro era tentar aceitar trampos pra tentar agradar e ser versátil.
    2 anos depois, a tal sala virou uma video locadora e passou pro térreo. Além de investir em venda de crepes, que era vendido por um magrão que devia adorar trash/black metal ou sei lá o que cama aqueles troços com nomes medonhos que estampam camisetas pretas. Mostrei minha pasta pra ele, que depois me disse que deveria desenhar monstros e demônios, pra não ficar tão bonzinho. QUÊÊ?! Ah, vai pra...

    Chamei o atendente do lugar de babaca (não pessoalmente), porque era mesmo um escroto! E porque num outro dia, não tinha levado uma caneta e quando pedi emprestado a ele, me respondeu que sempre deveria ter uma por ser desenhista. E teve outro dia que ele me falou: "Tu tem vida boa. Só desenha." Não gostei nada da insinuação. Gente assim, que pensa desse jeito, é que nem deve saber fazer boneco de palitos ou por inveja do talento alheio... Brincadeira!!
    No fim, o babaca fechou a locadora após mudar de endereço e chegar a ter lan house, me dizendo que a causa era a pirataria. Imbecil! Outras locadoras mais antigas de Alvorada duraram mais tempo que a desse trouxa. Nunca mais o vi. Adeus pra ele! Já o outro cara, fã de monstros e rock podreira, vejo por aí... mas nem cumprimento, já que nunca fomos amigos.

    Acho que este desabafo vale uma postagem do Visão ANDF, né? Hehe!

    Abraço!

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    1. Pô, muito legal o seu relato também, meu amigo! Vale mesmo uma postagem no seu blog.

      Sabe, eu passei boa parte da minha vida sendo chamado de vagabundo por desenhar e no tempo que trabalhei com banca de jornal tive que ouvir de um taxista babaca que eu coçava saco o dia inteiro, pois na visão dele jornaleiros não faziam porra nenhuma da vida, só liam revistas o tempo todo.

      Sobre rock podreira, eu fui vítima desta praga um período de minha vida, meu cunhado caçula curte esta merda, e teve uma época que ele ouvia isto direto aqui em casa. Tentei faze-lo ouvir Beatles, Elvis, Rush, Pink Floyd, mas não pegou. Hoje só de ouvir aquela bateria rápida e contínua e aqueles vocais que mais parecem grunhidos eu sinto até dores nos testículos.

      Grande abraço.

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  2. Que barra pesada, Schloesser! Se fosse uma telenovela, seu pai teria te visto (seria um drama). Aí ele chamaria a Verônica pra "tirar você do mau caminho" e ela entornaria uma lata de tinta na bilheteira (Yesss!!!). Claro que, rapidinho, alguém descobriria seus desenhos geniais e você ficaria rico. Novela é triste. Banaliza todos os maus momentos que a gente supera com dignidade. Abraço!

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    1. Uma telenovela bem legal, hein, Carla! Incrível como você consegue isso, principalmente a partir de um texto tão meia boca como este meu.
      Brigadão e um abraço.

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  3. Oi, Eduardo! Apesar de já frequentar aquela região da Galeria do Rock faz tempo, infelizmente não vi suas pinturas. Mas me lembrei de um amigo que é cartazista e que bons anos atrás, fez uma pintura num cinema pornô dessa rua que ladeia a Galeria Olido (não lembro o nome). O Leo já trabalhou numa oficina que fazia aqueles cartazes gigantes nos cinemas de rua.
    Eu de minha parte me lembrei que comecei fazendo placas e faixas e vez ou outra, murais e decoração de escolinhas infantis. Sei como é sofrido. Geralmente ganhava pouco, as condições nem sempre favoráveis, tudo que vc citou na sua narrativa.
    Valeu por compartilhar.
    Grande abraço!

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    1. Como amante de cinema eu ainda na adolescência sonhava em pintar aqueles imensos cartazes e displays, tanto em São Paulo como em Brsilia, mas nunca consegui. Pobre de mim, mal sabia eu que era tão mal remunerado e tão trabalhoso!
      Eu que agradeço sua presença e comentário, meu caro.

      Abração.

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  4. Bom, esse meu amigo trabalhou algum tempo nessa oficina, e talvez não ganhasse tão mal, pois falava sempre com saudade. Mas creio que quem ganhava bem eram os donos, não me lembro bem, eram japoneses ou chineses. Essa pintura do cine pornô ele fez bem depois, quando a oficina já não existia mais. Abração!

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    1. Ah, que bom, seu amigo acho que deu mais sorte. Em Sampa, quem pintava os mega-cartazes do Marabá, Ipiranga, Cinespacial, Comodor e outros, era um senhor, muito habilidoso, que não ganhava necessariamente mal, mas estava muito aquém para o montante de trabalho, afinal, mês a mês, até semanalmente ele tinha que renovar as pinturas. Em Brasília, eu conheci o Josarte (engraçado, eu pensava que o nome dele fosse mesmo este, mas era a junção de José com arte) e ele trabalhava para uma rede de cinemas, o Karim, o Cine Lara, o Venancio Jr. entre outros e fazia um belíssimo trabalho mas este eu sei que ganhava mal mesmo.
      Da minha parte, o cine pornô que eu pintei não dá pra dizer que me pagaram ruim, mas certamente não foi proporcional ao serviço sacrificante, mas ajudou bastante na ocasião. Hoje eu até faria de novo um trampo assim, mas são novos tempos.
      Abraços.

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