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sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

ANTIGAS LEMBRANÇAS E UM CADÁVER.



Esta semana estávamos eu e Vera almoçando e degustava ao final da refeição um delicioso suco de acerola. Sempre mexeram comigo aqui em casa porque eu bebo os sucos muito vagarosamente, sorvendo com cuidado e saboreando o paladar. Posso me dar a este luxo. Apesar das dificuldades que tem surgido vivemos decentemente graças a infinita misericórdia de Deus. Nem sempre foi assim, teve um tempo na minha infância que as coisas ficavam pretas de verdade. Bem no começo dos anos 70, em São Paulo, meu pai teve que fazer uma viagem à França para tratar de negócios referentes a umas terras que meu avô deixara para minha mãe. Não tenho os detalhes disso, afinal eu era muito garoto; o caso é que ele viajou deixando-nos, eu, minha mãe, avó e meu irmão que era bebê, sob a responsabilidade de um tio que vivia conosco. Não era segredo que esse tio era chegado numa cachacinha. Não muito tempo depois que meu pai viajou ele foi demitido do emprego e amargamos uns tempos difíceis. Houve um dia, e isso ficou bem vivo na memória, tudo o que tínhamos era um pacote de farinha de milho e um pedaço de caldo de galinha (fora o leite em pó, que era exclusivo para a alimentação do neném). Mamãe fazia um caldo misturando a farinha, água, um pouco de óleo e o tabletinho de knorr. Passamos com isso um dia ou dois, não estou seguro. Minha mãe recorreu à ajuda de uma italiana com a qual tinha trabalhado em seus tempos de solteira e foi o que nos valeu por um tempo.
Ainda hoje recordo minha mãe catando uns trocados, uns centavos de cruzeiro, sei lá qual era a moeda daquela época, para eu ir comprar uma guloseima. Havia uma loja na galeria que ficava no final da Rua Guaianazes que dava acesso à Avenida Ipiranga. Lá, dividiam em fatias um tabletão do doce de leite Zebu e eu ia comprar pra gente adoçar um pouco a vida.
Como uma lembrança vai levando a outra, me ocorre aqui um caso curioso que só me lembrei agora depois de muitos anos; vez por outra aparecia em casa um sujeito de aspecto sinistro, um tipo atarracado, calvo, com uma cicatriz no lábio superior (seria lábio leporino ou aquilo foi adquirido num acidente?). Chamava-se Juarez e era agiota. Meu pai devia grana a esse cara. Certa noite esse camarada apareceu em casa tenso com uma expressão angustiada. Meu pai quitou a dívida, lembro bem disso pois eu o ouvi falar à minha mãe como ele estava aliviado por ter pago (ou pagado?) ao cara.
Acho que uma semana depois, numa tarde, caiu uma chuva torrencial. Como meu pai tardaria, minha mãe pediu que eu levasse seu jantar. Preparou tudo numa vasilha que brilhava como prata, ela sempre poliu muito bem seus utensílios de cozinha. E lá foi o Eduardinho de shorts e sandálias pela noite que chegava.

O Ministério da Fazenda nesse tempo funcionava no Prédio Zarzur, na Av. Prestes Maia, a sala do meu pai, se a memória não me trai, ficava no trigésimo terceiro andar. Peguei o elevador e o ascensorista, um cara na casa de seus vinte anos, me perguntou: "Hei garoto, tá a fim de ver um cara morto?" Não lembro o que respondi mas no momento seguinte me vi olhando pela janela do corredor, próximo aos elevadores, que ficava na lateral do imenso prédio, diretamente lá embaixo, onde as pessoas pareciam formiguinhas. "Não tô vendo nada", disse. "Olhe, ali, na marquise" disse ele. Foi então que vi um corpo na altura do andar de número 22, todo estatelado na marquise (o prédio tinha umas marquises entre alguns andares). O ascensorista disse que o cara havia pulado daquela mesma janela e caíra naquele local. Aquele corpo me parecia torcido e tinha uma das pernas próxima à cabeça tal como alguns atletas com abertura total (não sei se consegui me explicar). Fiquei muito impressionado com aquilo.
Meu pai não estava em sua sala, o acontecido deixou todo mundo alvoroçado. Logo ele chegou, gravata frouxa no pescoço, mangas da camisa dobradas até os cotovelos.
"Lembra do Juarez, Eduardo?"
"Lembro."
"Ele morreu. Pulou por uma das janelas deste prédio."
"Eu vi. Vi ele caído lá na marquise."
"Você viu?!?"
Pelo que soube por uns amigos dele, que entraram na sala, meu pai foi a última pessoa a vê-lo com vida. O Juarez tava desesperado com alguma coisa, dívidas, talvez.
"Vá pra casa, Agildo, fique com seu filho, o que ele viu foi forte, coitado, e você está bem nervoso também". Ele nem tocou no jantar que eu havia levado, claro, colocou seu paletó e voltamos para casa em silêncio.
Em casa eu o escutei conversar com minha mãe sobre o ocorrido: "Já pensou, Francis, se ele pula pela janela da minha sala? Poderiam pensar que eu o empurrei!".

Finda aqui minhas recordações e eu desejo a todos um bom fim de semana.


2 comentários:

  1. Que vontade de empurrar esse ascensorista pela janela, Schloesser. Isso é coisa que se faça? Mostrar um negócio desses prum menino. Já é impressionante ver um estranho nessa situação, mas e se o morto fosse seu pai? Li o post duas vezes. A primeira, sozinha; a segunda, em voz alta, pro Leroy. Ele se lembrou da fase péssima da família dele (pai com dívidas, falta de comida, móveis levados embora, falta de casa) e disse que, lá pela década de 70, era comum mostrarem cenas fortes de acidentes para crianças. Disse que as fotos saíam em revistas. Espero que, nos dias de hoje, as pessoas tenham mais juízo e poupem as crianças de traumas desnecessários. Abraço!

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    1. O Leroy está absolutamente certo, Carla. Nos anos 70 ouve um acidente aéreo muito comentado em Orly, na França, e a revista Fatos e Fotos, que era vendida em bancas, como uma Quem, da vida, exibia imagens dos corpos despedaçados nos destroços do avião (não na capa, é claro). Vi a tal revista por acidente, pois a minha mãe teve o cuidado de deixa-la num lugar inascessível para mim, mas de alguma maneira foi parar nas minhas mãos, não lembro como, acho que eu sempre fui curioso como um gato. O fato é que aquelas imagens me provocaram horror. Gente morta não era novidade pra mim, minha avó me levava a velórios quando eu era miudinho (inclusive fiz textos sobre esses episódios neste blog), penso que isso teve infuência em meus trabalhos. Bem, isto pertence ao passado.
      Abraços pra você e pro Leroy.

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