domingo, 1 de julho de 2018
MUDANÇAS.
Minha família nunca se estabeleceu em um local por muito tempo. O motivo sempre foi um aluguel mais barato. Nunca me senti situado, nunca criei raízes. Isso tem o lado bom e o mal. No meu caso, o lado mal, penso, é que isso exacerbou minha inadequação, o ponto positivo é que nunca pude me acomodar, o constante movimento me fez cortar relações com velhos fantasmas e partir para novas experiências, criar outros espectros para romper com os atuais e assim pensar que estou criando uma história, a minha história. Hoje sei que na verdade o que fiz foi tentar, como os cães, morder meu próprio rabo.
Primeiro morei meus primeiros anos de vida com meus avós maternos, depois apenas com a avó numa pequena casa que meus pais podiam pagar num local de Guarulhos conhecido como Taboão, onde vi minha primeira cena trágica, um menino esmagado pelas rodas de um ônibus. Depois residi numa chácara, ainda em Guarulhos. Não muito depois fomos morar com meus pais na casa de uma amiga alemã do velho Schloesser, chamada Bárbara, que ficava em Cumbica. Em 1970 (sei que foi este ano por causa da conquista do tri) moramos na Rua Guaianazes no centrão velho de São Paulo. Tempo depois mudamos para o bairro de Pirituba, não nos delongamos lá, voltamos para o centro, desta vez na Rua Aurora.
Em 1975 a mudança mais radical: Brasília. O impacto maior, além da geografia e clima da cidade foi no colégio. Em Sampa eu estudava no Caetano de Campos, usávamos uniformes e antes de entrar em sala de aula fazíamos fila indiana e ouvíamos o hino de São Paulo, o hino à bandeira, o hino da Independência e por fim o hino nacional. A diretora (Dona Carmela, numa sacada no segundo andar do vetusto edifício como se fosse a rainha da Inglaterra a observar seus súditos - nunca me esqueci dela) e os professores eram respeitados como nossos austeros pais. O som de entrada para as salas de aula vinha de um sino e depois fazia-se silêncio enquanto as mestras ministravam os estudos. Em Brasília, nas Escolas Classes, que ficavam entre as quadras, reinava o caos. Usávamos apenas uma camiseta com o emblema do colégio no lado esquerdo do peito, calças jeans ou de tergal e tênis (conga ou kichute), não havia hierarquia nem hinos, quase todos os dias havia uma briga antes, durante o recreio ou depois das aulas, os alunos mais violentos formavam gangues e faziam corredor polonês para os mais fracos passarem por ele na hora de entrar em sala - isso diariamente. O sinal de entrada e saída era um som que lembrava a sirene da polícia. As professoras não eram respeitadas e muitos meninos peidavam alto na sala de aula para a gargalhada de todos. Estas ações raramente tinham alguma consequência. Malgrado tudo isto eu gostei da luminosidade e dos espaços verdes de Brasília. Primeiro residi no Brasília Pálace Hotel, depois na SQN 104 e no ano seguinte fomos para a SQS 202 onde nos estabelecemos por muitos anos. É claro que eu sempre dou um jeito de ferrar minha vida e cometi o desvario de ir para o Rio de Janeiro em 1979 e ficar lá sofrendo por quase quatro invernos.
Em 1991 retornamos a São Paulo, de novo para a boca do lixo, no mesmo lugar das décadas passadas. Tudo continuava igual, os mesmos mensageiros dos hotéis baratos com seus galantes uniformes vermelho e verde, o tráfego intenso, o frio enregelante no inverno, o calor abrasador no verão, as chuvas caudalosas, a sujeira, o fedor de decadência, os pombos, das marquises, cagando nas cabeças dos passantes - na minha, inclusive, um sem número de vezes - e muitos rostos de outrora, agora cheios de rugas e desilusões. Mas, justiça seja feita, algumas mudanças ocorreram, os velhos cinemas que resistiam à pornografia cheiravam a desinfetante barato, os tapetes colavam nas solas dos sapatos, as poltronas rotas e as salas, em sua maioria, eram frequentados por pessoas que assediavam sexualmente na cara dura. Quase todas as noites nos bares das esquinas eu testemunhava uma briga, eram casais ou bêbados trocando socos e pontapés.
Se eu acreditasse em fantasmas, diria que as noites paulistas estavam infestadas deles. Espíritos uivando em agonia levadas pelos noturnos ventos frios. Almas do Joelma, do Andraus e inúmeras outras tragédias que testemunhei ou ouvi falar.
Tudo isso, de alguma forma serviu de estofo para meus quadrinhos, para criar meu universo antropomorfo, onde o protagonista, um gato mestiço, tem que lutar diariamente por sua sobrevivência e - porque não? - e sanidade. Pouco lido e compreendido, ignorado quase completamente.
E o tempo se esgota, para mim e, consequentemente, para ele. A sinfonia da vida antes comprometidas com extáticas e/ou sujeira nos sulcos agora executa notas dissonantes, confusas, mostrando finalmente que não há saída deste labirinto. Só resta tatear por suas paredes frias esperando não encontrar a inevitável besta devoradora que se espreita em algum aposento, em alguma esquina.
Nos encontraremos aqui semana que vem? DEUS SABE.
Por favor, cuidem-se!
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Nunca morei em condomínios ou prédios. Sempre em casas, mas residi numa rua e numa avenida com trânsito intenso. Moro em Alvorada, cidade limite/vizinha de Porto Alegre, vai fazer 30 anos.
ResponderExcluirBem, eu morei mais em apartamentos que em casas, nem sei dizer o que prefiro; hoje em dia, condomínios, parece, oferecem mais segurança.
ExcluirDá pra reconhecer os cenários das suas HQs, Schloesser. Você conseguiu transformar sofrimento em arte. Parece que é assim que os artistas funcionam. Parabéns pelo desenho incrível no alto do blog!
ResponderExcluirIsso mesmo, Carla. Tenho lido sobre Kafka esses dias, além de reler "Na Colônia Penal" e dá pra me identificar um pouco com ele. Um cara complicado que, como você bem observou, conseguiu transformar suas neuras em arte, um tipo de escrita que é esmiuçada até hoje, sei que meus textos e desenhos não tem toda esta força, mas com certeza é através deles que faço meus desabafos.
ExcluirObrigado por seu comentário e elogio!