O artista e também gente finíssima Emir Ribeiro sempre festejou os aniversários de sua mais famosa personagem, Velta. E a primeira vez que vi uma edição comemorativa da detetive super heroína pensei, vou fazer uma edição assim do meu personagem quando ele completar, sei lá, 10, 20 anos, como faz o Emir? NÃO, NUNCA FIZ. Queiram ou não, todos que curtem quadrinhos nacionais sabem quem é a Velta e nosso amado quadrinista paraibano sempre consegue recursos para publicar seus álbuns de forma independente (isso muito antes do financiamento coletivo virar moda). No meu caso, pouquíssimas pessoas sabem quem é o Zé Gatão e eu jamais tive dinheiro para colocar meus álbuns na praça para ir vendendo pouco a pouco através dos anos; se assim fosse teríamos não apenas seis álbuns mas talvez uns quinze ou vinte, ideias para isso nunca me faltaram conforme já comentado neste blog, o problema é que meu cansaço através do tempo e por conseguinte, desilusão, eu fui abandonando todos os argumentos que ganhavam corpo na minha mente.
Semana passada o amigo Daniel Lúcio me perguntou se eu faria pelo menos um texto para celebrar os 30 anos de concepção do primeiro livro do Felino. Caramba! pensei eu, já passou tanto tempo assim? Agradeço ao Daniel por me lembrar e sugerir pelo menos algumas palavras para não passar batido.
A princípio, devido ao meu momento atual não ser muito auspicioso (pra variar) pensei em deixar pra lá, mas sabem, hoje, pós pandemia, mais que nunca o futuro é uma incógnita. Não sei quanto tempo ainda vou estar aqui e o mundo como nós conhecemos, segundo alguns teólogos e cientistas políticos, pode nunca mais ser o mesmo até 2030. Então vamos memorar hoje.
Seria legal, uma edição solene com uma HQ inédita emulando meus traços do período e com textos e pinups de outros artistas, não é? Mas na real, sendo bem frio, quem liga para o Zé Gatão além de mim mesmo, alguns amigos e uns poucos fãs? Ninguém mais. E quando eu digo que quase ninguém dá a mínima não estou sendo um cretino modesto, é ninguém mesmo! Haja vista que enviei o PDF do Siroco para umas pessoas que seriam potenciais leitores, uma vez que curtem a minha arte e meus textos e eles nunca leram ou retornaram comentando algo. Cagaram e andaram. Tudo bem, ninguém é obrigado a gostar. Só posso dizer que eu fico feliz de ter esses escassos amigos e fãs que sempre me prestigiam e essa postagem é dedicada a eles.
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Inicialmente essa seria a capa. |
O que eu teria para dizer sobre esse álbum que eu já não tenha dito? Pouca coisa, minha memória já não é a mesma e trinta anos fazem a diferença. Ao criar a primeira história do personagem em pranchas A3 eu não tinha a menor intenção de seguir essa linha de quadrinho com animais humanizados, eu tinha em mente algo nos moldes do Jardim de Edena do Moebius, mas com uma inclinação para o terror. Mas acabei me afeiçoando a esses antropozoomorfos e Zé Gatão me soou como o porta voz ideal para meus pensamentos naquela época. Repetindo o que já disse em inúmeras ocasiões eu não sabia como compor uma história em quadrinhos, eu intuía, supunha, baseado no que lia desde moleque, mas desconhecia totalmente o que ensinavam o Scott MacLoud e Will Eisner em seus livros, ou seja, fazer quadrinhos não basta ser um exímio desenhista, tem que saber narrar os acontecimentos baseados na ciência dessa forma de arte. Mas eu fui seguindo meus instintos.
Zé Gatão, acreditem, já foi mais popular nos cinco primeiros anos, tive um bom feedback do segundo livro tempos mais tarde. O público daqueles tempos estava mais ligado na produção local e as matérias nos jornais e revistas (Crônica do Tempo Perdido ganhou página inteira no Correio Brasiliense), embora fossem mais difíceis de conseguir, tinham mais força e ouso dizer, legitimidade. Os leitores de HQs daquela época, se perguntados: o que você pode me dizer sobre Zé Gatão? Haverá uma resposta, qualquer que seja, ao invés de um "Zé o quê???" Teoricamente a internet com sua propagação de informações deveria ser o veículo modelo para divulgar, o problema é que, como já pontuei muitas vezes, o excesso de coisas que são despejadas continuamente na cabeça das pessoas, torna o produto invisível para a maioria (análise minha). Meu Felino não teve continuidade imediata, o terceiro livro só veio à tona anos mais tarde e ignorado pela mídia, leia-se sites e blogs, atualmente são canais de YouTube com "especialistas" em tudo.
O que tinha eu para começar a minha saga? Qual a motivação além de aparecer e tentar viver disso? DESABAFO. Eu vivia, como vivo hoje, em depressão, conceber gibis foi terapêutico, pude me expressar através das palavras e dos traços, ainda que de forma canhestra e, sim, pueril.
Quando o mundo se torna muito pesado, uma mudança de ambiente, uma viagem, costuma aliviar a tensão. Zé Gatão ganhou vida por causa de uma relação infrutífera que tive com uma mulher que amei muito, foi o fruto de um amor não correspondido. Hoje eu sei que a pessoa não valia o desgaste, mas quando a alma está doendo não é o consciente que dita as regras. Colocando o peso nas costas do personagem botei ele no selim de uma velha moto para sair do stress das grandes metrópoles e fugir das lembranças de uma fêmea ingrata que batizei de Kayleigh (isso mesmo, por causa da música do Marillion, achei o nome sonoro). Ela viria a dar as caras em Crônica do Tempo Perdido.
A história que eu queria era básica, você tenta fugir dos problemas mas os problemas te perseguem e te derrubam. Capturado, o felino é levado a lutar numa arena para delírio de um populacho acostumado a pão e circo pelo ditador da cidade, um equino que batizei de Equus Giordano, para citar Giordano Bruno, o teólogo, matemático italiano queimado pela inquisição.
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Uma das pinups que dividem os capítulos. |
Eu acho a Cidade do Medo, pra ser sincero, uma HQ muito petulante, verborrágica, com firulas desnecessárias e que faz eco, devido a minha inexperiência, àqueles quadrinhos da Marvel anos 60 onde texto e arte são redundantes, balões de pensamento reforçando o que já é visto na ação. Acho as cenas de luta bem elaboradas e talvez eu tenha conseguido transmitir a sensação de tristeza e inadequação do protagonista, eu era perseguido ferozmente pela ideia de suicídio (e ainda sou) mas poderia ter usado menos palavras. Sem que eu tivesse me dado conta, se tornou a válvula por onde escapavam meus arroubos de fúria, o que eu internalizava diariamente, expelia através daqueles rompantes de violência explicitados naquele teatro de truculência. Outro ponto a salientar é o forte erotismo existente na obra. Já fizeram leituras erradas a meu respeito por causa disso. Não sou uma pessoa que só pensa em sexo como supuseram; o Milo Manara não vive enfiando o dedo no cu das mulheres como acontece em seus quadrinhos, Serpieri tampouco, Liberatore não esfacela o crânio das pessoas como o androide que o tornou famoso ou Bernie Wrightson não violava túmulos. Muitos que conheciam o Angeli pelo Bob Cuspe achavam que ele lambia chão de banheiro público, o Marcatti é um decente chefe de família. O que acontece é que os artistas usam recursos narrativos (no meu caso, simbólicos) para dar um tempero extra e assim chamar a atenção do público. Eu confesso que queria chocar também, dar um chute no saco dos nerds que só liam gibis de heróis. Foi um tiro no pé? Talvez, mas eu não pensei no assunto naqueles dias, muito influenciado por publicações undergrounds americanas e espanholas de terror e sci fi, achei que a audiência brasileira estaria preparada para aquilo. Ledo engano.
Um fanzine certa vez classificou o álbum branco do Zé Gatão como excelente, um autêntico herdeiro dos gritos de inconformismo dos jovens dos fins dos anos 70, um verdadeiro punk rock. Não concordo, o punk veio provar que para você formar uma banda não tem que ser erudito como os caras do Rush, basta tocar algumas notas e rugir no palco; sem modéstia, penso que meus desenhos são bem mais que isso e poderiam muito bem ser publicados na Metal Hurlant do primeiro período.
Entre o finalização das últimas páginas até a publicação e exposição nas comic shops de São Paulo e Brasília algumas memórias ternas alentam meu coração, lembro do velho apartamento onde morávamos no centrão, meus pais, André fazendo cursinho para tentar o vestibular de medicina, Samanta ouvindo suas músicas no quarto, o Rodrigo trabalhando na banca Olido. Quando o tomo finalmente entrou em gráfica eu ia quase todas as tardes lá na PKR (o bairro de Santa Cecília não ficava tão longe da Rua Guaianazes) para ver as páginas sendo rodadas. O processo naquela época era outro, fotolitos, chapas de metal e coisas assim. Aos poucos eu via o filho sendo gerado. Recordo de minha mãe numa tarde clara e quente, com Samantinha ao lado, me dizer que eu estava esfuziante como ela nunca tinha visto na vida. Pudera, eu estava realizando o meu primeiro sonho.
Houve atraso na entrega dos livros, minha mãe estava de viagem marcada para Brasília para visitar meu irmão Gil e eu queria enviar uns volumes para ele, assim tiveram que encadernar cinco unidades meio as pressas para aquele fim. Meu irmão da capital federal leu a obra umas cinco vezes seguidas, e não só ele, mais umas duas pessoas chegadas leram mais de uma vez em sequencia, mas eram suspeitas para falar o quanto gostaram. Não lembro de um álbum de quadrinhos com aquela qualidade, formato e tamanho naquela data, talvez as HQs do Mutarelli? Pode ser.
Rememoro a tarde em que a perua da gráfica chegou com todos aqueles pacotes contendo as duas mil unidades de A Cidade do Medo, parecia que não ia caber tudo no quarto onde dormíamos eu, André e Rodrigo. A Livraria Muito Prazer ficava perto de casa e eu era amigo dos donos, ainda assim eu procrastinei mais de uma semana para vender lá. Eu sabia que uma vez exposto ao público, não teria mais volta, ou gostariam ou odiariam, pois ficar indiferentes não seria possível, como não foi. A primeira leva (uns vinte, creio eu) esgotou rápido, assim como os vinte que enviei para Brasília e o Gil levou na banca da UNB que comercializavam muitos quadrinhos. Na Comix da Alameda Jaú, idem.
Matéria na Tribuna de Santos, na revista Sci Fi News e só não teve mais resenhas em publicações especializadas em BD por que alguns editores acharam o conteúdo ofensivo. Admiradores meus acharam que era inveja por parte deles. Não sei.
Tenho orgulho desse primogênito embora contenha as falhas que citei acima. Ainda é o preferido de muitas pessoas por soar bem visceral. Tá cheio de homenagens, citações (algumas ocultas) e símbolos. A única coisa que eu mudaria nele seriam os meus agradecimentos na introdução que faço do livro, estão registrados ali todas as pessoas que de alguma forma, direta ou indiretamente, negativamente ou positivamente contribuíram para que aquilo acontecesse e hoje, depois de muitos anos, alguns desses nomes foram equívocos da minha parte, me deixei levar pela emoção do momento.
Para finalizar, eu diria que NADA MAL para uma estreia.
Obrigado a todos que acompanharam o álbum branco ao longo dessas três décadas.
Gratidão, Senhor!