Havia pelo menos uns três anos que eu não via minha mãe, ela viria me visitar por ocasião do meu aniversário de 50 anos; normalmente quando vem a esta terra quente, ela costuma ficar de quinze a vinte dias, mas desta vez devido as enfermidades de meu pai, ela só ficaria uma semana.
Pra ser sincero era a primeira vez que eu era lembrado pra um acontecimento assim, mas como coincidiria com o pouco tempo que minha genitora ficaria comigo, pensei em recusar. Contudo, minha esposa disse que era importante, seria mais uma forma de divulgar meu trabalho e conhecer outras pessoas da área, que aconteceria nos dias 01 e 02 de dezembro, um fim de semana. Topei partilhar por um dia e optei pelo domingo.
Curiosamente, o organizador do evento não ligou mais, de sorte que eu não tinha detalhes de como chegar ao local onde se daria a coisa. Mas isso não me impediria.
Com minha característica falta de dinheiro, munido do pouco que tinha e uma bolsa pesada com álguns dos meus quadrinhos, lá fui eu, num domingo ensolarado (que logo se transmutou numa manhã nublada) pegar o metrô que me deixaria na rodoviaria. Enquanto esperava o trem, meu celular tocou. Era o Manassés:
"Mestre, desculpe a falta de notícias, mas é tanta coisa por aqui, que só hoje vi sua mensagem no Facebook, peguei seu número com sua esposa e tal e tal..."
Realmente, organizar algo deste tipo, praticamente sózinho, ainda por cima pela primeira vez, é algo pra deixar qualquer um louco. Ficou combinado que assim que eu chegasse na rodoviaria de João Pessoa eu ligaria para o número dele e ele iria me pegar.
Eu não sabia que o metrô de Pernambuco era tão lento (e tão sujo!), a mesa redonda sobre quadrinhos independentes da qual eu participaria, estava marcada para as 14 hs, cheguei ao terminal as 10:30, quase no momento do ônibus sair, dali até a Paraíba levava umas duas horas, ficaria apertado para almoçar mas achei que daria tempo.
No coletivo, apenas umas cinco pessoas, fora, um dia prometendo chuva, dentro, um ar de penumbra. Ótimo, seria a chance de dar um bom cochilo até meu destino. Puxei a cortina encardida
da janela, me acomodei na poltrona, fechei os olhos e fiquei pensando
besteira quando o ônibus parou e entrou um cara alto, de bermuda, pernas
muito brancas, camisa de banda de rock, cabelos alourados compridos
amarrados em rabo de cavalo e cavanhaque mal feito, sentou-se logo atrás
de mim. "Porra", pensei eu. Pelo visto o autocarro iria pegar
passageiros pelo caminho. Voltei aos meus devaneios e os movimentos
incertos do veículo despertaram um sono que foi chegando de mansinho.
Subitamente, uma voz com forte sotaque gaúcho me arrancou dos braços de
Morfeus, era o tal cara alto que falava no celular com estrépito. Ficou
lá confabulando com alguém que parecia ser a namorada dele. Maldita
hora que criaram esses telefones móveis, pensei, a tecnologia é uma
maravilha, mas nas mãos de um idiota, é um desastre ao bom senso.
Dormitei ainda um pouco, sempre limitado por aquele imbecil que falava ao aparelho como se a pessoa do outro lado não pudesse ouvi-lo.
Quando cheguei na Paraíba, passava das 12:30. Fui ao banheiro aliviar a bexiga e depois tentei ligar para o Manassés, chamava e ninguém atendia. Uma fome começava a dar sinais de vida. Celulares sempre aprontam, por isto comprei um cartão telefônico. Liguei. Nada. Depois de cinco tentativas, fui até um ponto de táxi gastar um pouco dos meu minguados tostões. Olhei à minha esquerda e divisei um cara me olhando, tentando me reconhecer. "Eduardo?" perguntou ele incerto. "Eu mesmo." Respondi já reconhecendo meu anfitrião pela pequena foto do Facebook.
Apertamo-nos as mãos.
"Rapaz, fiquei esperando sua ligação!"
"Ué, eu liguei várias vezes!"
"Não recebi ligação nenhuma!" Ele olhou para o celular, incrédulo.
"É mesmo, tem várias ligações aqui, mas o aparelho não tocou!"
Havia outro cara com ele, pegamos o carro e fomos para o local do evento. Garoava. Tive de João Pessoa uma ótima impressão. No trajeto falamos sobre o dia anterior do festival, hqs, artistas e coisas pertinentes.
Assim que chegamos, fui apresentado a Milena Azevedo (historiadora, cinéfila, sériemaníaca, colecionadora de HQs, roteirista e também piloto de joystick de xbox 360 nas horas vagas, como ela mesma se define em seu excelente blog, o GHQ (Garagem Hermética Quadrinhos)) e ao Beto Potyguara (Licenciatura e Bacharelado em História pela UFRN e em Design Gráfico pelo SENAC). Quiseram tirar fotos comigo. Não curto tirar fotos, mas tiramos. Depois disso eles foram tratar dos seus afazeres e eu, com sempre acontece nessas ocasiões, fiquei me sentindo como um peixe que caiu fora do aquário. Dei uma olhada nas revistas no estande da Comic House e depois conversei um pouco com um simpático casal gaúcho, Pedro Dario Lima Lairihoy e Anelise Knevitz Bartholdy , ele, professor de história, e fã recente de hqs, se não me engano. Após isto nos dirigimos para a sala onde se daria a Mesa Redonda que seria mediada pelo Audaci Júnior (Jornalista, quadrinista, designer e videomaker) que também tem um ótimo blog chamado Quadrinhos em Quadrinhos.
Além de mim, claro, estavam lá para dissertar, os Os professores Cellina Muniz (UFRN) e Henrique Magalhães (UFPB), Thaís Gualberto, do fanzine Coletivo WC e Jack Herbert,. artista que trabalha pra as editoras norte americanas desenhando super-heróis.
A maior parte do assunto em pauta foi sobre fanzines (algo que nunca fiz), mas as palavras do Henrique Magalhães foram muito elucidativas, a melhor da mesa. Comentei sobre a via crucis que foi parir o meu primeiro álbum (e como sempre, achei uma droga as coisas que digo). Não sabia, mas parte do que falei foi gravado e jogado no YouTube.
Avançamos no horário e ainda assim muita coisa ficou por ser abordada. Um moço que se chamava Eduardo me reteve um tempo para falar que era professor de educação física, mas dava aulas de desenho pra uma rapaziada carente, acho que era isso, não me recordo bem agora, e que meus álbuns de desenho tinham sido de grande ajuda. Enquanto conversávamos, eu procurava o Manassés para ver onde eu poderia comer algo, pois a fome já me dava dor de cabeça. Falei com ele. Olhou em volta procurando alguém que pudesse me levar a alguma lanchonete. Ele pediu ao Eduardo que me levasse a algum lugar, mas o cara estava de moto e só tinha um capacete. Um outro rapaz, que não sei o nome, foi muito solícito, se ofereceu pra me acompanhar de carro. O Eduardo veio junto, sempre falando sobre a importância de incutir arte na cabeça dos jovens e tals.
Como era domingo, a única coisa que encontramos aberta foi uma padaria de aspecto sombrio.
"Qual o maior sanduba que você tem aqui, meu bem ?" Perguntei à menina do balcão.
"É o cheesebacon salada, senhor"
"Beleza, é esse mesmo que eu quero"
"É...bem, o bacon tá em falta."
"Poxa, não diga! Tudo bem, manda assim mesmo."
"O alface também acabou"
"Ok, sem alface e sem bacon. Prepara aí."
Enquanto a mocinha colocava o hambúrguer na chapa, olhei uns doces atrás de um vidro. "Isso aqui é queijadinha?" Perguntei. "É, sim senhor." "Me vê uma." Assim que pus aquilo na boca, vi que tinha cometido um erro. "Ei, isso aqui é de hoje?" "Não senhor." "O quê, vai me dizer que é da semana passada!?!" "Não, foi feita ontem." Não disse mais nada, joguei aquilo fora e segui para a mesa onde os outros dois me esperavam, antes peguei uma coca no refrigerador. "Não é mais saudável tomar um suco de frutas?" Indagou o professor de educação física. "Pode ser, mas veneno desce melhor com outro veneno." Respondi.
Enquanto eu comia o pior cheesebancon salada, sem bacon e sem alface, da minha vida, o Eduardo me mostrava uma pequena pasta cheia de desenhos. Todos muito expressivos.
Voltamos para o local do festival, pois estava agendado uma sessão de autógrafos para as 17 horas.
Chegando lá, tive o prazer de conhecer o grande (literalmente) Emir Ribeiro, famoso criador da também famosa heroína brasileira, Velta. Falei um pouco com ele. Ganhei da Cellina Muniz um exemplar do fanzine Pindaíba, que na verdade tem o capricho de uma revista e comprei um fanzine do Coletivo WC.
Sentei ao lado do Emir Ribeiro e do G, G. Carsan, fã do cowboy Tex e autor do livro Tex No Brasil.
Vendi alguns exemplares dos álbuns Zé Gatão - A Cidade Do Medo e Crônica Do Tempo Perdido.
Eu e o Emir Ribeiro trocamos álbuns, o mesmo fiz com o Carsan. Gostei muito do trabalho deles, a Velta eu já tinha lido alguma coisa, agora pude conhece-la melhor, e pude entender que dá pra fazer hqs de heróis sem perder a brasilidade, o livro do Tex estou lendo ainda e tá muito bom!
Começou a chover de leve, a noite chegou de sopetão, o Emir levantou a barraca e se despediu, o mesmo se deu com G.G. Carsan.
Uma garota dos fanzines estava planejando umas cervejas em algum lugar com uma turma que tinha por lá:
"Schloesser, vem com a gente tomar umas cervejas?"
"Obrigado, mas não vai dar."
"Cê não bebe?"
"Não, meu paladar é infantil. E depois, tenho que viajar daqui a pouco."
Depois ouvi aquela moça comentar com seus amigos: "O cara faz um uns quadrinhos cheios de putaria e vem me falar de paladar infantil!!!!" Não dá pra censura-la, minhas hqs são mesmo transgressoras, mas de fato, não gosto de álcool, e depois, o que esperavam de mim? Que eu saísse por aí a esmurrar as pessoas só porque meus quadrinhos são violentos?
Bem, já passava das sete horas e eu tinha que ir pra rodoviária. O Manassés descolou uma carona pra mim. Segui com três moços muito simpáticos que infelizmente não recordo os nomes, entendiam muito de quadrinhos, leitores vorazes. Foi uma boa conversa.
Como que pra confirmar que nada na minha vida é fácil, ao chegar no terminal, as 19:40 hs, me informaram no guichê que o último ônibus pra Pernambuco tinha partido a dez minutos, outro, só as sete horas da manhã seguinte.
"Meu irmão, só comigo mesmo!" disse a um dos rapazes que me acompanharam. Já estava me conformando com a ideia de passar a noite naquela estação quando o bilheteiro informou que havia o transporte alternativo do outro lado da rua. "Ok, vamos de alternativo mesmo." Enquanto arrumava umas coisas na minha mochila, um dos moços, o que dirigia, falava ao telefone e em seguida me disse:
"Enquanto o senhor falava com o bilheteiro tomei a liberdade de ligar para o Manassés e disse a ele que não havia mais passagem. Ele disse que arruma um lugar para o senhor passar a noite."
"Mas é mesmo necessário? Me falaram que tem uns transportes alternativos do outro lado da avenida."
"Olha - ele me olhou de forma grave - não acho recomendável, esses alternativos são perigosos!"
"Perigoso porque? Assalto?"
"Também, mas o principal é que esses carros não tem segurança e os motoristas as vezes viajam até bêbados. Já deu muita merda nessas estradas. Aconteceu até do motorista estar mancomunado com bandidos e fazerem a limpa nos passageiros."
"Bem, neste caso....terei que ligar pra minha esposa informando que não chegarei hoje. Onde tem um orelhão por aqui?"
"Use meu celular." Aqueles rapazes são a prova cabal que ainda existem pessoas boas no mundo. Uma raridade maior que trevo de quatro folhas. A única forma que tive de retribuir o apreço foi dar o meu álbum de presente.
Falei com a Verônica e minha mãe, daí voltamos para o local do evento. Ainda deu tempo de conferir o final da palestra com a Marisa Furtado, diretora dos documentários "Profissão Cartunista" com o Will Eisner (tenho e recomendo), Jerry Robinson, Ziraldo e Henfil. Simpaticíssima, conversamos um pouco.
O evento chegava ao fim e fomos todos a um restaurante, antes, deixamos a Marisa no hotel. Comemos, conversamos um pouco e nos dirigimos ao hotel onde a Milena Azevedo estava hospedada, eu não sabia, mas ia ficar ali também. O Manassés, pagou a diária e nos despedimos com a promessa de um convite para o próximo festival. A Milena disse que já tinha encomendado um táxi para as oito da manhã, caso eu quisesse uma carona para a rodoviária. Pessoas de bem no mundo, mais uma vez. Aceitei e fui para meu quarto. Tomei um banho e assisti um pouco do filme que estava passando na tv, O Vidente, com O Nicolas Cage. Já tinha visto. Trama mal aproveitada. Estranhei a cama. Dormi pouco. Levantei muito cedo. Tomei outro banho e fui tomar o café da manhã. Estava terminando quando a Milena apareceu. Fomos para o táxi que se antecipou e seguimos para o terminal. Comprei minha passagem para casa e ela para Natal. Como ainda tínhamos uma meia hora ficamos conversando sobre o universo dos quadrinhos, seus autores, jornalistas, leitores, logistas e tudo mais. Fiquei impressionado como ela entende da coisa e produz um material de muita classe.
Dentro do meu ônibus um caos total, gente, como sempre, se esgoelando ao celular, crianças chorando, um cara antipático, se sentindo superior no banco ao meu lado e apesar disso tudo, fechei meus olhos tentando mergulhar nos meus pensamentos. Acho que dormi. O veículo ainda passou meia hora parado na estrada, não consegui saber se foi algum acidente na pista.
Cheguei a Recife sentindo um calor dos diabos. O metrô estava lotado. Cheio de filhos da puta. Depois de duas baldeações, tomei uma van até minha casa. Lar-doce-lar. Um gostoso abraço na esposa e na mãe.
Pesando tudo na balança, valeu muito a pena.
Que bacana ver o pessoal da Paraíba se organizando para fazer mais eventos de quadrinhos, e como convidados tão ilustres!! Parabéns pela a todos, não pude ir, mas pelas fotos dá pra ver que foi muito bem organizado! Abraço, Dudu!!!
ResponderExcluirPois é, meu brother, foi legal sim. Não sei se pelo tempo (tava chovendo um pouco), ou se domingo as pessoas procuram outros programas, mas senti falta de mais gente no local. Também era o primeiro, né?
ExcluirTenho certeza que nos próximos você estará presente (dei a sugestão).
Obrigado e um abraço.
Cara, demais o teu relato deste evento. Que baita jornada!
ResponderExcluirSobre a parte de recusar bebida e a moça te censurar... Pois é... volta e meia, tem gente achando que vivemos nossas historias desenhadas (literalmente), achando que somos revoltados. Né? Haha!
Essa do "transporte alternativo" foi assustadora. Sorte a tua, não te deixarem embarcar numa fria, se arriscando a, sei lá... ser sequestrado ou pior.
Já assisti ao documentário da Marisa, no YOUTUBE (antes de lançarem em DVD). Tive conhecimento dela e de seus trabalhos, numa COMIX MAGAZINE (2001).
Ganhei do Emir o VELTA- 30 ANOS, em 2006. 3 anos antes, conheci o autor por e-mail.
Até mais...
Sim, as vezes vivemos situações verdadeiramente picarescas; comigo, talvez pela maneira como eu relate, dá um tom de tragicomédia, mas lhe afirmo que tudo aconteceu tal e qual.
ExcluirRapaz, nem quero pensar neste episódio do transporte alternativo, a gente ouve tantas coisas!
Gostei de conhecer a Marisa, gente boa. Dos documentários dela eu só assisti o do Eisner e o do Ziraldo, na casa do Gualberto Costa.
Um dos que o Emir me deu foi exatamente este, Velta 30 anos, o outro foi o mais recente, Velta contra o Conde Drácula. Grande Emir!
Grato pela visita e um abraço.
Fala, Eduardo! Demais seu relato. O trecho do paladar infantil foi hilário. O criador não precisa ser igual à criatura mesmo. Obrigado por compartilhar esses momentos com a gente. E parabéns à Verônica. O incentivo dela pra que vc fosse ao evento foi espetacular.
ResponderExcluirUm grande abraço,
Oi, Gilberto. Meu, já estou acostumado com comentários como o da moça, faz até um certo sentido. Teve um cara de um site espanhol de quadrinhos que fez um paralelo entre meu trabalho e o Tom da Finlândia, artista muito popular no passado entre os homossexuais por seus ousados trabalhos que mostrava caras saradões com membros enormes se agarrando. Outros afirmaram que eu me inspirei no Blacksad, sendo que meu personagem foi criado muito antes. É o que eu chamaria de ver a coisa de maneira superficial.
ExcluirEnfim, cada um tem sua opinião.
Obrigado, rapaz, volte sempre.
Forte abraço.