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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

UM CONTO DE ZÉ GATÃO ( Escrito por Luca Fiuza e ilustrado por Eduardo Schloesser )



             SECA CRUEL Uma aventura do personagem de Eduardo Schloesser.
 Escrita por Luca Fiuza. / 22/08/2011.
Texto original: 20/09/1997.



     A camiseta amarelo-ouro estava ensopada de suor, tornando o contato com a pele bastante desagradável. A calça azul, velha e desbotada apertava a virilha de maneira incômoda, não havendo posição sobre o escaldante selim da moto que trouxesse algum alívio. Os pés no interior das botas negras e empoeiradas pareciam estar em brasa e apesar do vento que agitava o rabo de cavalo cinzento bem amarrado atrás da cabeça, tal aragem mais se assemelhava ao causticante e fétido hálito de um dragão resfolegante.
 Todos estes fatos, porém, não importavam a Zé Gatão. Estava preparado para suportar as intempéries do clima estoicamente, acostumado que estava mais à frugalidade do que à abundância.    Pilotava uma possante moto, própria para longas jornadas, especialmente para regiões desérticas como a que estava atravessando. Trazia consigo farta provisão de água e comida. Acelerando sempre, disparou pela enorme reta de asfalto negro a se perder em meio aquela paisagem desolada.    O ousado felino cinzento se dirigia para o leste, fugindo da seca violenta que há muito castigava a região. Morria de sede nas cidades ressequidas grande quantidade de animais, a comida rareava, tendo ocorrido em muitos lugares casos de canibalismo.
Dizia-se que nas grandes cidades do leste, junto ao mar, havia fartura de alimentos e chuvas regulares.    Muitos como ele partiram das cidades calcinadas do norte, lançando-se nas estradas que cortavam aquele imenso deserto. A maioria, no entanto, veio a morrer em meio ao trajeto, vencida pelo ambiente hostil ou assassinada por bandos de desesperados que infestavam a região, em número sempre aumentado pelas condições reinantes de penúria extrema.
Zé Gatão sabia possuir os requisitos necessários para atingir seu objetivo, além de ser um sobrevivente nato, o fato de ser mestiço de lince tornava-o capaz de resistir melhor ao deserto do que muito de seus congêneres felinos. Sua natureza híbrida permitia que suportasse relativamente bem extremos de calor e frio tão comuns naquelas plagas. Quanto à comida, se viesse a faltar não haveria criatura comestível ou não que escapasse de suas garras. A água...este seria de fato um problema.   Fazendo as paradas estritamente necessárias para comer e descansar, o gato pilotou até o fim do dia sem avistar ninguém naquela amplidão.
Pouco antes do pôr-do-sol, observou pelo retrovisor da moto que estava sendo seguido por três jipes que se aproximavam velozmente. Em seu interior estavam os temidos lagartos do deserto, conhecidos por atacarem de devorarem viajantes incautos.


Disposto a não se tornar vítima dos ferozes sáurios, Zé Gatão acelerou a moto ao máximo. Por um breve instante deixou os perseguidores à distância, mas seus jipes turbinados logo diminuíram a diferença.    Logo começaram a disparar tiros. As balas sibilavam por sobre a cabeça do gato. Desesperadamente, com os braços hercúleos retesados, Zé Gatão acionou a turbina especial que imprimiu à moto uma velocidade vertiginosa.


Como que por encanto, os veículos inimigos ficaram para trás. Contudo, antes de perdê-los de vista, viu um clarão pelo canto do espelho retrovisor esquerdo e em um instante de horror, uma explosão tremenda se seguiu à sua frente, ao mesmo tempo em que uma enorme e profunda cratera se abriu na estrada, pronta para engoli-lo. Alucinado, deu uma guinada na moto, cortando neste ínterim o funcionamento da turbina. Descontrolada, a moto tombou para a direita. Porém, antes que a máquina tocasse o solo, Zé Gatão deu um salto acrobático. O grande felino realizava seguidas piruetas no ar para reduzir a aceleração do próprio corpo. Devido à inércia, ele foi lançado para frente. Contorceu o corpo mudando a trajetória para o lado, o que o fez passar por cima do acostamento, indo precipitar-se após mais duas cambalhotas em uma duna de areia. Seu corpo enorme ficou ali estendido, enquanto a moto se arrastava pelo asfalto até ruidosamente espatifar-se naquela cratera monstruosa. Após isto, só o lúgubre silêncio reinava no lusco-fusco do poente.



Ao despertar, Zé Gatão viu-se acorrentado solidamente à haste central de uma imensa barraca. Lamparinas a óleo iluminavam precariamente o ambiente. Em meio aquela penumbra mal se notava o grupo de lagartos reunidos em um canto mais afastado.Apesar de estarem cochichando, a apurada audição do gato ouvia tudo. Os terríveis sáurios tencionavam assassiná-lo e em seguida devorá-lo. Realmente seu destino estaria selado naquele instante, se um irado guincho não interrompesse um dos lagartos que se aproximava de sua vítima indefesa, já com o facão erguido.
- Pare réptil! Esqueceu as ordens do chefe?! – Quem pronunciou estas palavras em tom agudo foi um pequeno e atarracado rato do deserto.
Seu manto púrpura balouçava ao sabor do vento e sua nojenta figura na entrada da tenda recortava-se contra o céu estrelado na fria noite do deserto.
- Está frio! – Retrucou o lagarto em tom ameaçador – A carne deste gato nos dará o calor que precisamos para resistir a esta noite.
- Idiota! – Os malévolos olhinhos do rato faiscavam. – Você sabe muito bem que o chefe tem planos para ele! Deixou tudo muito claro antes de se retirar após a captura do felino.
- Não sei de nada! Só sei que o chefe saiu e só chega amanhã cedo! Não sei o que me impede de te matar também e incluir você em nosso repasto noturno! – Vagarosamente, salivando abundantemente o lagarto começou a erguer o facão.
- Se me matar o chefe trucida todos vocês! Experimentem rebelar-se e verão! – A voz esganiçada daquele roedor começou a irritar Zé Gatão. Se estivesse solto, o calaria a pontapés.Após um breve momento de hesitação o lagarto guardou o facão na bainha, não sem antes soltar um sibilo agudo de raiva e frustração. Vendo aquilo, Zé Gatão sorriu ironicamente. Tendo notado o flagrante ar de deboche de sua quase vítima, o lagarto foi tomado por enorme fúria e sem refletir lançou-se sobre o gato disposto a rasgar sua jugular a dentadas. Contudo, um novo guincho de advertência o fez voltar-se contra aquele rato petulante.
- Pare! Mais um passo e arrebento seu cérebro fedorento! – Como que por encanto apareceu na mão do rato uma Magnum 44. Os outros lagartos ergueram-se. Surpresos e enfurecidos, dispostos a dar uma lição definitiva naquele mamífero abusado foram se acercando do rato.
- Parem! Eu mato vocês! Estouro a cabeça imunda de cada um de vocês! Saiam todos daqui! – O timbre de voz do rato era quase histérico.Os répteis estacaram.  Aquele que quisera matar Zé Gatão e avançar no rato retrucou – Tá bom! Nós vamos sair. Na outra tenda há bastante caldo para nos alimentar e aquecer por esta noite. Mas você ainda vai pagar, roedor maldito!
- Vá se foder, filho da puta! Suma daqui antes que eu arrebente seu cu escamoso à bala!!!! – Apesar do frio, a testa do rato estava molhada de suor. Os lagartos se retiraram bufando, deixando um rato do deserto ofegante e suarento a sós com seu prisioneiro.
- Mandou bem, nanico! Botou todas aquelas lagartixas para correr! Queria ver se não tivesse maquinado! – O tom de voz do felino era tão irônico que o roedor sentiu seu sangue ferver.
- Cala a boca! Se não fossem as ordens do chefe eu já teria te matado!
- E quem é teu chefe, dentuço?
- Amanhã você vai descobrir e vai lamentar!
- Eu já lamento não poder encher teus cornos de porrada agora mesmo! Vai! Te arranca que eu quero dormir pra amanhã  poder mijar no teu chefinho assim que ele mostrar as fuças!
- Ele vai te matar!
- Ele e quem mais ô meia-foda? Você?!
Tremendo de ódio mortal o rato sai abruptamente da tenda. Tendo ficado só, Zé Gatão procura descansar para o dia seguinte.


 Com a chegada do amanhecer, o frio intenso da noite foi substituído por um calor abrasivo. Durante a madrugada o leve sono do gato foi interrompido algumas vezes pelo rato que vinha experimentar as correntes que cingiam o felino e alimentá-lo com um estranho caldo que além de restaurar-lhe as forças, aquecia-lhe o corpo possibilitando que suportasse melhor as baixas temperaturas daquela tardia hora.Assim, naquele início de manhã, Zé Gatão já com o rosto molhado de suor estreitou os olhos amarelados tentando identificar as silhuetas que adentraram no interior mal-iluminado da tenda.
- Levem ele pra fora acorrentado! O chefe chegou! – Ordenou o roedor em tom incisivo. Entre silvos e rosnados, os lagartos obedeceram de má vontade.
Lá fora, meio ofuscado pela intensa claridade que havia se instalado após o nascimento do sol, Zé Gatão encarou uma figura que parecia saída de um pesadelo. Era um escorpião enorme de linhas esguias. Sua couraça preta e amarela brilhava ao sol em tons metálicos. Sua cauda maciça oscilava ameaçadoramente, enquanto quatro pernas fortes sustentavam seu corpo poderoso, e quatro braços gesticulando de forma vil.  A visão se tornava ainda mais terrível devido às enormes pinças que abriam e fechavam com um estrépito lúgubre. A cabeça inteiriça, sem pescoço cheio de olhos pretos e duros fitou o felino taciturno dardejando de ódio incontido.
A simples presença daquela bizarra criatura joga uma forte dose de adrenalina na corrente sanguínea de Zé Gatão, eriçando os pelos da sua nuca e enrijecendo sua potente musculatura ao máximo fazendo os grilhões que o envolviam estalar.
- Sua constituição física é impressionante mamífero! – Disse o monstruoso ser com uma voz de entonação estranha que feria os ouvidos - Conseguirei uma boa soma vendendo você aos ricos mamíferos do sul para entretenimento em suas arenas de luta! – O felino nada diz. Um sorriso irônico brinca por um breve instante em sua face.
- Soltem este porra de sangue quente! Se sobreviver a mim, poderei pedir um alto preço por ele a Gordus, o suídeo para que o exiba em sua arena de morte.
Logo que foi libertado, Zé gatão iniciou uma série de movimentos para reativar a circulação sanguínea nos membros dormentes. Pacientemente seu oponente aguardou o aquecimento do grande felídeo.
- Como é seu nome, mamífero? – Indagou o escorpião em um tom assustadoramente suave para uma criatura daquele tipo.
- Seu pior pesadelo, filho da puta! – Se fosse possível, o aracnídeo teria sorrido. Respondeu simplesmente:
- O meu é Tanatos.
- Foda-de.
Repentinamente, o escorpião atacou com um  golpe de cauda, apontando seu ferrão venenoso para cravá-lo na carne de Zé Gatão.Com incrível agilidade, o felino evitou o tremendo golpe desferido por Tanatos. Como uma continuação do movimento de esquiva, Zé Gatão lançou um chute brutal que veio a se encaixar na área abdominal do escorpião, no preciso instante em que ele começava a se aprumar após sua investida inócua.  A violência do impacto estourou seu exoesqueleto naquele ponto, por onde suas entranhas, expelidas aos borbotões esguichavam caindo ao solo e seu corpo enorme era projetado para trás pela fúria da pancada.Mal aquela carcaça desarticulada tocou o solo, foi coberta por botinadas fortíssimas, esmigalhando-a completamente, sem dar tempo de o infeliz aracnídeo defender-se. O grande gato estava tomado por uma fúria cega, bestial! A face transfigurada, chutando e pisando sem cessar até reduzir o até então perigoso adversário a pó.
Arfando ruidosa e penosamente, ele parou. A seus pés uma massa informe misturada à areia formava uma papa abjeta. Era tudo o que restava de um outrora poderoso e temível escorpião.Os lagartos e o rato estavam estupefatos, completamente sem ação. Neste ínterim, Zé Gatão estudava a situação, procurando meios de sair dali com vida.
De repente, tudo se precipitou. Fortes explosões se fizeram ouvir, transformando o local em uma praça de guerra. Em meio ao caos, o rato se pos a correr, não sem antes fazer um sinal para Zé Gatão que não pensou duas vezes e também começou a correr. Os dois subiram em um dos jipes parados a poucos metros dali e partiram deixando atrás de si morte, lamento e destruição.
- Não seremos perseguidos? – Indagou o felino que ia de carona.
- Não poderão! Armei estas bombas de tempo ontem à noite.  As explosões atrairão o exército de elite de Tanatos e...
- Idiota!
- Deixe-me acabar de falar, porra! Este exército é formado por tarântulas que ao depararem com o chefe morto vão chacinar os lagartos sobreviventes sem esperar explicações. – Um sorriso mal aflorou aos lábios do roedor descobrindo o grande incisivo. Daí a poucos minutos, uma gargalhada ferina e esganiçada enchia os ares. O nojo que já tinha daquele roedor maldito quase levou Zé Gatão a achatar o crânio daquele bosta ali mesmo, conteve-se, porém. Encerrado em um mutismo obstinado, ignorou as tentativas do feioso roedor em entabular conversa. O resto do trajeto foi feito em um silêncio pesado. Por fim, após uma hora o rato disse:
- Sugiro que a gente vá para Ictiópolis, uma cidade litorânea bem próspera. Tenho parentes lá. – O felino retrucou entre dentes - Então pisa fundo, meia foda! Quero chegar lá este ano, ainda!
Levaram dois dias e meio para chegar a Ictiópolis, consumindo neste meio tempo toda a provisão de água e comida que havia no jipe.
Chegando ao cais do porto separam-se sem se despedir. O rato foi embora no jipe e Zé Gatão hospedou-se em uma fétida pensão nas imediações do mercado de peixe e ali passou a noite. Dormiu um sono leve e agitado. Teve o cuidado de trancar bem a porta e as janelas do quartinho imundo, uma vez que a clientela por ali não inspirava confiança. Qualquer um deles mataria a própria mãe por alguns níqueis ou uma garrafa de rum barato.No dia seguinte foi procurar emprego nas docas. Ao meio-dia estava subindo a bordo de um velho e maltratado navio mercante cujo nome gravado na proa lhe chamou a atenção: Cloaca dos Mares. A tripulação era variada. Os oficiais eram felinos e entre a marujada tinha de tudo, a escória do mundo se concentrava ali.
O felino taciturno estava chegando ao convés quando uma hiena munida de um esfregão e fingindo limpar o piso encardido riu ironicamente enquanto vomitava as seguintes palavras:
- Hee...! Carne nova na área! – Zé Gatão se virou para ele e retrucou ameaçadoramente em tom baixo:
- O nome deste barco é sugestivo, hiena! Cê já abriu sua cloaca podre. Fica fria que ganha em saúde e conserva os dentes!
A hiena eriçou o pelo das costas, ia avançar sobre o abusado felino cinzento, mas a chegada de um oficial a fez dominar-se a custo. Em meio a olhares hostis daquela corja de marujos que enchia o convés fingindo trabalhar, Zé Gatão foi conduzido pelo imediato do barco até uma cabine com um beliche de madeira meio podre junto à vigia circular de vidro sujo. Um cheiro de arenque deteriorado inundava aquele espaço exíguo.Uma hora depois, o navio zarpou e desapareceu na imensidão azul do mar.


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9 comentários:

  1. Fala, Eduardo! Agora ficou tudo certo. Estou sem net em casa e por isso estou levando no Pen Drive pra ler no fim de semana. Segunda comento sobre o conto. Mas desde já, os desenhos estão espetaculares.
    Bom fim de semana,
    Abração,

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  2. Opa, legal que gostou das artes. As vezes eu acerto. Tenho certeza que vai apreciar o conto também, pois o Lucão leva jeito pra coisa (pra dizer o mínimo).
    Boa leitura e um bom fim de semana.

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  3. Fala, Eduardo! Já li e achei muito bom o ritmo da aventura. O jeito da narração do Luca emula bem o seu estilo nos quadrinhos. Pensei que o escorpião seria mais perigoso, kkk.
    Mas é isso aí, sempre bom viajar um pouco numa boa aventura.
    Ótima semana,
    Abração,

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  4. Oi, Gilberto, o Luca vai gostar de ler suas palavras. Quanto a Tanatos, eu cometaria duas coisas: Primeiro, acho que Zé Gatão é muito mais letal que o infeliz aracnídeo, mais ágil, mais forte, mais selvagem. Acho também que ele não subestimou o adversário, de tão perigoso que é este bicho peçonhento, ele não deu chance de defeza ao inimigo. Bem, é o que eu penso.
    Grato pelas palavras e visitas.
    Abração.

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  5. Oi, Schloesser! O Luca escreve muito bem as cenas de ação e sabe criar antagonistas impressionantes. As ilustrações ficaram ótimas. A dos lagartos no jipe é minha favorita. No fim das contas, eu queria que o conto continuasse. Sinal de que conseguiu me envolver na história. Parabéns a vocês dois!

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    Respostas
    1. Muchas gracias, Carla.
      O Lucão ficará feliz com seu comentário.

      Sabe, na verdade este conto teria mesmo uma continuação, uma aventura dentro do barco, mas sabe como é a vida de escritor diletante, assuntos mais urgentes podem obscurecer a inspiração, mas acho que ainda está nos planos dele desenvolver uma sequência. De qualquer forma, trabalhar com antropomorfos não é tarefa fácil, é preciso desenvolver as características humanas mescladas às do animal.

      Um grande abraço.

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  6. Uau!Fico até imaginando uma HQ desse conto! Bem bacana mesmo!

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    Respostas
    1. Obrigado, Fábio, fico feliz que tenha gostado! Espere até ler a sequência deste conto.

      Grande abraço.

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